Ofuscação
Por Ramon “coff, coff” Bacelar
As ideias não mais jorravam com a mesma fluência de outrora. Os dedos, agora sem os mesmos movimentos frenéticos, manchavam com menos constância as teclas do seu velho PC. Sua mente, absorta que estava em meditações e devaneios, não lhe atentou para o fato que pela terceira vez nesta mesma noite, a fumaça do cigarro dominava e ofuscava o monitor. Suspirou, levantou a cabeça e com um forte sopro pertubou a ofuscação que atormentava o primeiro parágrafo do seu novo conto. Retornou ao seu estado estatuesco e meditativo, pesou e avaliou suas conquistas, vitórias e derrotas em sua breve carreira de contista.
Girou o pescoço para atender o telefone e percebeu que a névoa leitosa do lago, como uma sombra tímida e sutil, começava lentamente a ferir a harmonia da paisagem e ofuscar a vidraça.
-Quem fala?
-Adivinhaaa?!?!?-A irritante e tirânica voz do seu agente e editor feriu seus tímpanos obrigando-o a distanciar o fone do ouvido.
-Oi.- Como um balão vazio...
-Não chegou.
-O que?
-Ora, ora... O esboço do seu novo conto.
-Comecei a escrever.
-Você o que?- A intensidade e estridência se fez sentir em um leve zumbido no papelão do alto falante.
-Comec...
-Escuta aqui pseudo itelectualzinho de merda, só porque vendeu duas dúzias de textos e concorreu a meia dúzia de prêmios... Acha que sabe tudo?!!! Pode se dar ao luxo de escrever qualquer coisa sem me consultar?! Você preci...
No momento em que bateu o telefone, uma vaga de arrependimento o possuiu, imobilizando sua capacidade de reação, enegrecendo momentaneamente sua já ofuscada visão: tinha razão.
Desprendendo-se do enfumaçado cobertor cinzento que o revestia como um grosso edredom em dias de verão, apagou o cigarro e dirigiu-se a cozinha para desligar a cafeteira. No caminho, a turbulência mental provocada pelo seu editor ainda deixava seqüelas, mas uma momentânea paz de espírito lhe acenou de sua estante de livros à sua frente. No fundo sabia que tinha razão: podia não ser o “pseudo” mas...sua visão de mercado tinha a profundidade de um pires...Não passava de um merda, mas um merda... Seus dias em que se escondia sob pseudônimos esdrúxulos ridiculamente sonoros e americanizados tinham terminado, agora iria escrever o que bem entendesse... e passar fome.
Com as narinas momentaneamente confortadas pelo odor de café fresco e livre da fumaça, foi invadido pela imagética confortadora de sua estante de livros: Contos selecionados de Ambrose Bierce; Dagon e outros contos de H. P Lovecraft; Complete tales and poems of Edgar Allan Poe; O Homem de areia e outras novelas do inconsciente; E. T. A. Hoffmann and the double; Penguin Book of Victorian Ghost Stories; Pesadelos e Paisagens Noturnas-Stephen King; O País de Outubro-Ray Bradbury; e os “intrusos-que-não entram-no-clube-do-bolinha”: Transparent Things: the complete short stories of Vladimir Nabokov; A curtain of green and other stories of Eudora Welty; Selected tales of Elizabeth Bowen; A causa secreta e outros contos de Machado de Assis; Fin de Siècle Vienna: Austrian writers; The Dedalus Book of Russian Decadence: perversity, despair and collapse; Memórias Póstumas de Brás Cubas; The Opal and Other Stories-Gustav Meyrink; Tão triste como ela e outros contos de Juan Carlos Onetti.
Estendeu a mão em um gesto de quase reverência e abriu ao léu um Bruno Schulz *:
"Emaranhado na rede ramosa das árvores negras, o céu cinzento,
abafado, deitava-se nas costas dos homens: tortuosamente
amontoado, informemente pesado e enorme como um ededrom.
Os homens saíam de debaixo dele de quatro, como escarave-
lhos na umidade quente, farejando com os cornichos sensíveis
o barro doce. O mundo estava mudo, desenrolava-se e crescia
algures em cima, algures por trás e no fundo e corria
deleitosamente exânime. De vez em quando desacelerava
lembrando vagamente de algo, ramificava-se nas árvores,
fazia um transplante com a rede espessa do chileiro dos
pássaros colocados em cima do dia cinzento,e seguia para
o fundo, rumo ao serpentário subterrâneo das raízes, à
pulsação cega dos vermes e lagartas, ao estonteamento surdo
da terra negra e do barro."
Desenhado em sua face, o sorriso acenava para a beleza das palavras e retornava satisfeito e preenchido. Nessas horas sentia-se pleno e saciado; agarrava-se a palavra bem escrita, ao texto bem esculpido como se agarrasse a própria vida...”Sua vida”.
A arte, misturada ao oxigênio, com seu caráter iluminador e transformador, lhe penetrava nas narinas como um bálsamo revitalizador, uma sauna restauradora, vaporosa e ofuscante... Após um dia duro de trabalho... Arte era vida... e sem ela asfixiaria. Retornou o livro à estante, mas ao girar foi acobertado por uma realidade cinzenta e vaporosa que ofuscou sua visão e invadiu suas narinas com uma sede de território que de imediato aniquilou o efeito balsâmico. Invadida pela fumaça da cafeteira, a cozinha agora agonizava em enevoado tormento e sem sentido de visão, acobertada que estava pela inquietação acinzentada, aguardou por socorro.
Com dificuldade alcançou a porta que dava para os fundos, e em movimentos inconstantes e espasmódicos, vislumbrou pela janela a fumaça se fundindo a névoa leitosa que pulsava e se contorcia como um cão raivoso à procura de comida.
Agachado com um pano, enxugava o piso sem perceber que pela fresta da porta a realidade cinzenta em sua breve existência, agora transmutada num doentio amarelo-acinzentado pela perniciosa influência da névoa homicida, sorrateiramente invadia os espaços e clamava por território.
Triiiiiimmmm.
A estridência o obrigou a largar o pano.
-Alô?
-Cadê os monstros? O sangue?-A voz, por esta vez, tinha um verniz gozador e apaziguador.
-Estou no comecinho.
-Então diz aí do que se trata.
-O conto é sobre um escritor entusiasta...
-Quero saber do enredo...e dos monstros.
- Ainda não está muito definido.
-Como assim...-Sentiu a intensificação do tom pelos ruídos frenéticos do papelão do falante.-Escuta aqui...-Foi interrompido.
-Na verdade...
-Você começa a escrever um conto sem enredo??!!-O tom era mais de curiosidade.
-Na verdade-Continuou-O conto é sobre ofuscação.
Não percebeu que sua realidade era invadida pela chaga amarelo-acinzentada vazando pela janela ao lado.
-Que???
-Ofuscação...O-f-u-s-c-a-ç-ã-o. Ofuscação literal e metafórica.
- Escuta rapaz -Sentiu a fúria velada à caça de sua auto-estima-Vou falar em prosa plana, direta, funcional, mundana e SEM ofuscação: de ofuscado... seu cérebro oco de artista de merda!!!- O ódio agora tinha a rigidez de um iceberg.
A ausência de ruído e estridência cortou o éter e agonizou o vácuo: o Silêncio do Silêncio.
-Olha...-Sentiu no tom o iceberg se desfazer em liquidez cristalina.-Vê se esquece esse lixo pós-moderno e esses dinossauros...-Suspirou-Não tenho nada contra os espíritas...-Mais uma de suas piadinhas cortantes em direção a sua auto-estima-Mas... deixe os mortos em paz!!! Quem gosta de velho é reumatismo poorraaaaa!!!!!!!-Abaixou a cabeça e o baque do outro lado da linha se fez sentir.
***
Com a maldição dos grilhões dos enredos obsessivamente bem delineados e finais arredondados vagou, com hercúleo esforço, pelas paragens ofuscantes de sua resgatada memória adolescente e recordou a primeira vez que tomou contato com um texto fantástico: capa dura em couro avermelhado: Maravilhas do Conto Fantástico e no índice... Palavras mágicas que mudariam sua vida: O Reflexo Perdido-E.T.A Hoffmann. Leu, não entendeu (imaturidade?), mas “algo” ficou e o assombrou por anos: a idéia? O estilo ou histerismo de tom? Agora não sabia mas...sabia que sabia e sabendo que sabia, vagou e chegou ao começo de sua vida adulta, ao âmago de sua... TRIIIIIIMMMMM, TRIIIIIIMMM, TRIIIIIIMMMMM
-Vou avisar pela última vez, isso é negócio...Se tu não me entregar um conto VENDÁVEL até o final da semana...pode procurar outro agente... Olha, têm um ótimo escritor chamado Lovepoe Whitewood que me enviou um esboço sobre um conto de um Ghoul que...
-Seja breve. Suspirou
-Encurtando o papo...estava pensando numa parceria.
Só podia estar de gozação, pensou:“Lovepoe Whitewood é uma besta de quatro costados, o cocô do cavalo do bandido, um ‘hack’...VENDÁVEL”. Reconheceu com uma ponta de revolta e inveja.
-Sim, sim...-Interrompeu com um fio de irribitabilidade- Vou te dar a continuação de A Maldição do Sarcófago de graça, aí você publica Ofuscação.
Sentiu uma acidez penetrar em sua narinas, o som do falante por um breve instante...”Ofuscou”.
-Não, não... Compro a continuação e te pago adiantado, se me entregar até sábado.
-Não quero nada adiantado, só queria que você publicasse Ofusc coff coff coff coff...
Largou o fone, olhou para baixo e viu um bloco de fumaça (?) aproximando em movimentos espiralados; empalmou a garganta e sentiu as veias bulbosas se contorcendo como um rio de larva caudaloso e agonizante, seu pulmão se fechando, os olhos marejando, as pálpebras fechando, a visão turvando...”Ofuscando”. Olhou para os lados e não viu nada: a cortina homicida cercava, pressionava, “ofuscava”. Enjoado colocou as mãos nos joelhos e em resposta a um asfixiado suspiro, um refluxo vaporoso e enfumaçado descortinou em sua face que intensificou seu senso de impotência e ofuscação; ajoelhou-se e sentiu a cabeça girar, os sentidos...
Alcançou a porta que dava para os fundos e num desesperado esforço apoiou-se na parede e abaixou a cabeça; com esforço suspirou intensamente à procura de oxigênio, mas o que penetrou em seus pulmões tinha a densidade e acidez de uma acinzentada, vaporosa e borbulhante sopa de chumbo...Ofuscou e caiu.
***
Sonhou... Vagou e sonhou: letras agonizantes carentes de vontade própria se rebelando contra o Captor, enquanto o Obsessor insistentemente esculpia frases com palavras mal colocadas e pontuação inadequada, ferindo o que foi dito antes, tirando-lhes a lógica e minando certezas. Enredos claros, prosa fria, distante e impessoal, finais conclusivos, seres atormentados pelo imutável senso de catividade...Palavras sob o controle do Criador: ELE, de cima, as enxergando como meras ferramentas manipuláveis e descartáveis para auto-expressão e alimentação do ego; marionetes de nanquim zombadas e humilhadas, cujos ângulos e curvaturas eram feridos constantemente pelas cordas que Suas mãos manipulavam...
Vagou...vagou e não ofuscou:
Cavalinhos saltitantes girando em movimentos suaves e harmoniosos... girando...Girando em torno de um eixo: seu mundo girava e ele, o eixo, abandonou o centro e em meio a cegante ofuscação amarelo-acinzentada despertou da Realidade do Pesadelo para o Pesadelo da Realidade: alcançou a porta do fundo e entrou.
Atravessou a cozinha e o corredor que dava para seu quarto; olhou para os lados... cima... baixo e por todos os cantos e frestas o homicida penetrava insidiosamente, o mesmo Destruidor de Ilusões que embotava sua mente e ofuscava sua imaginação minando-lhe a auto-estima e força de vontade, transformando-o em uma insubstancial e vaporosa insignificância.
TRIM, TRIM
TRIM, TRIM
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Sentiu a visão vacilar e o que era amarelo-acinzentado agora... Cinzento-amarelado: a Ofuscação da Ofuscação.
Olhou para os livros em busca de solidez e notou que a cortina enfumaçada, no centro da estante, enegrecia, enegrecia...Agora era um negro-acinzentado no centro da estante, cercado nas bordas das divisórias de madeira pela chaga cinzenta-amarelada, que parecia “abrir espaço” para súbitas ondulações e contorções da substância enegrecida, semelhante a tinta negra, no centro: ângulos e curvas de nanquim que se fundiam e formavam letras, transformavam em palavras... Transmutavam em parágrafos...E do ofuscante limite da periferia da visão um parágrafo solidificou:
“As idéias não mais jorravam com a mesma fluência de outrora. Os dedos, agora sem os mesmos movimentos frenéticos, manchavam com menos constância as teclas do seu velho PC. Sua mente...”
Suas palavras, o primeiro parágrafo de Ofuscação que agora agonizava e estrebuchava ao seu lado como um cão fiel e agonizante aguardando a morte do seu dono.
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Sentiu a realidade vaporosa penetrar em suas narinas com acidez redobrada, sentiu-se sugado pelo vapor homicida que lhe embotou o sentido de visão e bloqueou sua criatividade e imaginação: era a anti-arte, anti-vida que o minava de sua energia física, mental e emocional e agora...Num esforço final prendeu-se a sua estante como se agarrasse a um bote salva-vidas e... como um último desejo de um condenado, uma onda refrescante num dia quente de verão, foi revitalizado pelas palavras que penetravam em suas narinas e desobstruíram momentaneamente seus pulmões, enquanto sua estante desabava o enterrando com pilhas de Lovecrafts, Bierces, Blackwoods, Poes, erigindo seu mausoléu de palavras, símbolos e metáforas, enterrando-o “vivo” e ele, em um último, regozijante e intenso delírio de felicidade e asfixia...
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TRIM,TRIM...
... ... ... ...
FIM
*Texto retirado do livro Lojas de Canela-Ed. Imago.
Ramon Bacelar é contista, crítico e ensaísta. Mantém um blog sobre cinema, quadrinhos, literatura e cultura underground (Maquinário da Noite: www.maquinariodanoite.blogspot.com) publica contos no Recanto das Letras http://www.recantodasletras.com.br/autores/ramonbacelar e em seu site pessoal, Miragens Ofuscantes: http://www.miragensofuscantes.blogspot.com
Leiam e comentem:
A Vingança do Ghoul:
http://casadasalmas.blogspot.com/2010/05/vinganca-do-ghoul.html#comments
A Bruxinha:
http://www.recantodasletras.com.br/contosdeterror/2437253
Depois da Missa:
http://www.recantodasletras.com.br/contosdeterror/2396569
Machado sem Assis:
http://www.recantodasletras.com.br/microcontos/2242441
O Vigiado:
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Saciado:
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Jogo de Bolas de Gude:
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A Prova:
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A Caminho:
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A Promessa:
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A Minhoca:
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A Felicidade é uma Cadela:
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Catividade:
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Um (quase) monólogo entre uma assombração e o reflexo assombrado:
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O cataléptico e o verme:
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A Ausência:
http://www.estronho.com.br/contos-e-cronicas/279-contos-e-cronicas/4469-a-ausencia.html
O Balanço:
http://www.arquivodobarreto.com/home/index.php?action=obra&id=103
Viagem ao Âmago:
http://www.estronho.com.br/contos-e-cronicas/279-contos-e-cronicas/4460-viagem-ao-amago.html
O Garoto que assombrava casas:
http://www.onerdescritor.com.br/2010/07/o-garoto-que-assombrava-casas/
A Miragem Inconcebível:
http://www.contosgrotescos.com.br/principal/index.php?acao=contos
A Balança:
http://www.onerdescritor.com.br/2010/08/a-balanca/
Lovepoe Whitewood vai à biblioteca:
http://casadasalmas.blogspot.com/search/label/Ramon%20Bacelar
Contos no Recanto das Letras por Ranking de leitura:
http://www.recantodasletras.com.br/autor_textos.php?id=72546&categoria=13&lista=lidos
Minicontos no Recanto das Letras por Ranking de leitura:
http://www.recantodasletras.com.br/autor_textos.php?id=72546&categoria=19&lista=lidos