A CABEÇA
Ele já entrava na décima segunda hora diante do volante, sem qualquer parada para descanso. Suas costas doíam, os pés formigavam, o sono o dominava, mas, na verdade, nada disso traduzia com mais exatidão a necessidade de pegar o desvio para a pequena cidade, do que o fôlego titubeante do motor setenta e oito do velho possante.
A estrada barrenta era estreita e mal iluminada. As margens mostravam-se enfeitadas por fileiras de árvores frutíferas. Vez ou outra, surgiam trilhas transversais protegidas por imensos portões de madeiras e ladeadas por cercas de arame farpado. Provavelmente um divisor dos limites entre as propriedades, embora não fosse possível perceber qualquer sinal de residências, criações, ou mesmo, uma simples plantação, por menor que fosse.
Sua cabeça pesava imensamente, e, talvez, por conta disso, ele tivesse demorado a notar uma estranha coincidência presente na superfície amadeirada de cada um dos portões. Todos, sem exceção, ostentavam um arranjo de galhos e folhas em forma de cruz em sua parte central. Ele achou estranho, mas não seria esta a primeira vez em que se deparava com algo incomum em suas andanças pelo interior do país.
Tudo o que ele precisava era de uma boa noite de sono, nada além disso, pela manhã, com as energias recuperadas, ele poderia se dar ao luxo de questionar as peculiaridades locais.
Ao adentrar nos domínios da cidadezinha, seus olhos cansados não encontraram nenhuma viva alma. Por algum tempo, ele ficou circulando por entre as ruas, na ânsia de encontrar uma pensão, ou uma casa de hospedagem, mas suas intenções mostraram-se frustradas pelas inúmeras portas cerradas. E, para completar sua perplexidade, sobre cada folha de madeira estava preso um ramo de galhos cruzados, tal qual os percebidos sobre os portões ao longo da estrada de acesso.
Mesmo a contragosto, ele se deu conta de que não teria escolha, não havia outra alternativa que não fosse passar a noite no veículo. Assim, lentamente, ele guiou em busca de um lugar sossegado para estacionar. Enquanto se preparava para ocupar a área sob a proteção de uma frondosa figueira, ele teve a nítida impressão de, finalmente, avistar uma pessoa em meio ao deserto explícito no qual a cidade estava mergulhada.
A pessoa estava, aproximadamente, a cem metros de onde ele próprio se encontrava. O indivíduo permanecia completamente imóvel, de costas para o lugar ocupado pelo automóvel estacionado. A parca iluminação não permitia que ele percebesse maiores detalhes, tudo o que conseguia enxergar era o negro absoluto das vestes do estranho. Então, intrigado, ele acionou os faróis, mas, para sua surpresa, não havia nada, nem ninguém, ao alcance dos olhos luminosos do veículo.
Assim, mesmo sem convencer a si mesmo, ele atribuiu ao cansaço o truque pregado por sua visão. Então, vencido, se entregou ao sono, na esperança de que a noite lhe proporcionasse a força de que tanto precisava. No entanto, salvo a primeira hora, o decorrer da noite acabou por revelar uma sucessão de pesadelos intermináveis. E, em todos os devaneios, ele ouvia o som de gritos de pânico e dor. Mas a única imagem que ele conseguia se lembrar quando acordou, já com o sol a lhe queimar o rosto, era a representada por um sorriso, duas fileiras de dentes alvos e aguçados, apenas isso.
A intermitência do sono, somada às condições pouco confortáveis para um repouso adequado, colaboraram para que o cansaço se mantivesse acesso em seu corpo. Ele ansiava por um banho, uma solução para eliminar o incômodo imposto pela camada de poeira que se impregnava sobre seu rosto, obstruindo suas narinas e proporcionado um gosto amargo em seus lábios. Um café forte, para espantar o sono, e uma refeição quente, para amenizar o vazio no estômago, também seriam um alento muito bem-vindo.
No entanto, antes que pudesse sair em busca de conforto para suas necessidades, ele sentiu a ponta do pé direito tocar algo que não era o pedal do acelerador. Perplexo, ele mal conseguia crer no assombro que testemunhava. Se já era difícil conceber a possibilidade de um objeto estranho aparecer, como num passe de mágica, diante dos seus olhos, era quase impossível admitir que uma coisa como aquela pudesse surgir daquele jeito, do nada. Afinal de contas, como um crânio reluzente, de diminutas proporções, poderia ter parado ali?
Com o motivo da incredulidade nas mãos, ele examinava o espaço compreendido pelas órbitas escuras. Apesar de não conseguir encontrar nada de diferente em relação a qualquer outro crânio, ele sentia um imenso incômodo, uma profunda melancolia, ao encarar aquele rosto descarnado. Talvez fosse a inequívoca sensação de que a peça lhe oferecia um sorriso, um franco e despudorado sorriso.
Um murmurinho o trouxe de volta à realidade. Assustado, ele jogou a cabeça no assoalho do automóvel, e varreu o campo externo com os olhos. Uma espécie de procissão se aproximava. Examinando melhor, ele compreendeu que a manifestação era, de fato, uma marcha fúnebre. Muitas pessoas cruzavam a via principal do vilarejo, choro e lamento estampavam-se no rosto de cada membro da comitiva liderada por um padre muito jovem. Outro fato destacava-se em meio ao sofrimento extremo: todos aqueles indivíduos marchavam descalços, levantando muita poeira com o ato. O cortejo seguia, tendo como motivo um pequeno caixão branco erguido por braços vacilantes.
Ninguém olhou para ele, ninguém notou sua presença ao lado da árvore. Ele engoliu em seco. Definitivamente, sua estada naquela cidade não começara nada bem. Seus olhos buscaram o crânio no assoalho, mas, para uma nova surpresa, da mesma maneira enigmática como surgira, a peça de osso polido simplesmente desapareceu.
Uma pontada lancinante lhe afligiu as têmporas. O amargor nos lábios se espalhou rapidamente pelo céu da boca, língua e garganta. Ele sentiu seu estômago queimar e se contrair como num estalo. A sensação era a de que regurgitaria o pouco alimento que ingerira na noite anterior, mas o que fora expelido pela vão entreaberto de sua boca estava longe de lembrar biscoitos ou refrigerante. Um jato espesso e vivo de sangue rompeu o ar, manchando de vermelho a parte interna do pára-brisas. Uma tontura súbita o nocauteou, a imagem de uma garotinha correndo e gritando o tocou, antes que a escuridão o abraçasse.
Quando acordou, o silêncio da noite gritava em seus ouvidos. Ele estava fora do carro, mas não se dera conta disso. Era difícil perceber qualquer coisa que não fosse o frio absurdo que sentia. Chegava a doer os ossos. Mais uma vez, não havia uma só pessoa nas ruas. Então, ele caminhou. Percorreu cada canto da cidade em busca de ajuda, mas não encontrou ninguém. Ele pensou em bater nas indóceis portas, porém algo o impedia de checar a receptividade pouco provável além das pranchas lacradas.
Ele precisava continuar, não poderia ficar parado onde não era querido. Quando sentiu o gelo que lhe abraçava amenizar, percebeu a intensidade do desejo aumentar em proporção inversa dentro do seu peito. Ele enxergou alguém, enfim um fio de ajuda para lhe trazer conforto. O alívio tentou fugir quando o viu, ele tentou gritar para que esperasse, mas a pessoa que caminhava pela madrugada simplesmente correu, tomada pelo choque, ao ver o homem de vestes negras desaparecer, ao ser sugado pelas entranhas da terra.
Era preciso seguir no encalço da fugitiva, não entendia o porquê do desespero alheio. Ele não sentia mais o seu corpo, apenas a essência de sua vida fluir para além dos limites pré-estabelecidos pelo invólucro carnal. Uma liberdade jamais experimentada o dominava, era como se o mundo ao redor passasse em alta velocidade. Ele, literalmente, rolava pelo chão de barro, projetando-se vez ou outra pelo ar, lançando poeira em todas as direções quando se chocava novamente contra o solo. Ele não conseguia compreender a razão do seu sorriso causar tamanho pavor naquela que fugia. Mas ele a alcançaria, sem dúvidas a alcançaria.
Seu novo corpo projetou-se mais uma vez no ar. E, por muitas vezes, ele viu o cenário rodopiar, chão e céu em incessante alternância. Com um impacto violento, aquela que corria foi derrubada. A mulher no chão teve a lucidez chicoteada pela imagem sórdida que lhe assaltava a visão. A cabeça maldita rolava em sua direção, mas, o simples toque que a derrubara já se mostrara suficiente para que o viço de sua vida fosse expelido pelos poros dilatados de sua pele. Mover um único músculo que fosse, traduzia-se numa tarefa praticamente impossível.
O viajante, que agora atendia pelos contornos de uma cabeça errante, experimentava o outro lado do episódio vivenciado na noite anterior, quando fora vítima da aparição de vestes negras, representada, naquela ocasião, pela garotinha morta, a, até então, mais recente vítima. Ela agora descansava. Logo chegaria a sua vez, mas antes disso, precisava passar o fardo para aquela que implorava para não morrer. Mas implorar não adiantava, porque ele agora não conseguia distinguir qualquer fagulha de benevolência. Ele, agora, só pensava em aliviar a própria dor, a fome que sentia num estômago que não estava presente.
A criatura mostrou seus dentes, a caricatura de um sorriso, uma deformação de linhas aguçadas. Uma profusão de fios longos e desgrenhados adornava a cabeça sem corpo, de pele pálida e olhar perverso. Com avidez, o demônio começou a morder o corpo da entregue vítima. Mastigava, com gosto, pele, músculos, carne e nervos. Não sabia o destino que o alimento ingerido tomava, mas pouco se importava com isso. O ritmo incessante de sua mandíbula só buscava conforto, satisfação plena, uma paz que só encontraria com os nutrientes do sangue fresco que sorvia com sofreguidão...
Quando a mulher acordou, estava desorientada. Não se lembrava de como havia parado naquele lugar. Estava deitada no chão barrento, no meio da praça. Com muito esforço, se lembrou de estar perdida, de ter entrado no vilarejo para buscar informação. Então, provavelmente, deveria ter adormecido. Tentou convencer a si mesma de que fora vencida pelo cansaço. Certamente mergulhara num sono profundo, um sono revestido por pesadelos perturbadoramente reais. A imagem de um sorriso ainda estava gravada em sua memória. Os gritos de um homem, um rosto que ela nunca vira antes. Instintivamente, flagrou-se esfregando tronco e membros, como se testasse a própria integridade. Os devaneios noturnos ainda lhe causavam dor...
Entorpecida, ela se deitou novamente. Seu braço esquerdo tocou algo, era um crânio, um reluzente e bem torneado crânio. Por alguns instantes, permaneceu hipnotizada pela morbidez dos olhos vazios. O transe profundo só encontrou um fim com a movimentação ruidosa da manifestação popular que se aproximava. O homenageado do cortejo fúnebre era um visitante, como ela própria, um forasteiro cujo corpo era transportado no interior de um ataúde de entalhes rústicos.
Cada membro da procissão de pés descalços trazia no pescoço um crucifixo de galhos secos e folhas verdes...
A mulher largou, de súbito, a cabeça em osso cru. Ela gritou de dor, mas ninguém ouviu sua voz. Era como se uma lança afiada atravessasse seu cérebro por repetidas vezes. Em seguida, surgiram a ardência e o enjôo, mas ela logo perceberia que isso era apenas o começo...
Por um breve momento, ela teve a impressão de que um garotinho, que arrastava um cachorro amarrado por um fio, no final do cortejo, lhe oferecia um olhar. O menino cantarolava baixinho...
“Ela não é só assombração...
Ela é o juízo final...
A essência viva do mal...
A cabeça do Cramunhão...
Seu nome não ouse dizer...
Nem em prosa ao redor da fogueira...
Pois se quiser viver...
Só existe uma maneira...
Não saia nas noites sem lua...
Não ande sozinho na rua...
Galho em cruz carregue consigo...
Não queira sofrer em perigo...
Não brinque com a própria sorte...
Seu toque é só peste e morte...
O homem de negro acaba com a paz...
Ele traz a cabeça do Sat...”
- Cale a boca, menino! Não ouse dizer esse nome! Não ouse dizer!
O pai puxou o garoto pelo braço, enquanto o cachorro gania, fazendo coro aos gritos da mulher...
* Texto livremente inspirado na lenda homônima. Conheça as personagens do Folclore Nacional, você não vai se arrepender!