Canção Marítima

Canção Marítima:

Por Giomar Rodrigues

O Rubi Sangrento singrava os sete mares silenciosamente, assombrando a todos os viajantes com sua bandeira assustadora, representada pela imagem da espada gotejante mergulhada no vazio da escuridão das velas...

Entrementes o sol refletia-se forte sob as revoltas ondas do mar e os homens reclamavam constantemente sobre a escassez de comida a mais de um dia inteiro, embora o rum se encontrasse seguramente guardado em um secreto alçapão no fundo do navio pirata. Algo tão precioso quanto a água no deserto ou reluzentes jóias para uma donzela cobiçada por muitos desafortunados pretendentes. E tudo isso unido ao calor infernal era mais que suficiente para causar revolta aos homens do navio do Capitão Sillas Jack, mais conhecido como “Jack, O Severo”. Que segundo as lendas antigas era tão carrancudo que nunca em sua vida esboçou sequer um mísero sorriso, já que nada na maltratada vida era digna de qualquer felicidade ou simples gracejo, ou quase tudo, pois embora ninguém tenha jamais mencionado o assunto, todos os marujos já haviam notado o brilho de seus olhos quando, mesmo que por um único momento, refletisse a luz dourada de belas moedas de ouro de um saque, e talvez, essa sua furtiva ambição fosse também o alvo de seus fracassos.

E enquanto o sol ardia no horizonte ao meio dia sob as ondas que doiravam quando por poucos momentos se aquietavam, os pensamentos de todos flutuavam mais alto que as próprias nuvens, e essa era a única forma de esquecerem temporariamente da fome, que devorava o interior de cada um aos curtos passos.

Recolham as velas, seu bando de imprestáveis. Vamos tentar pescar alguma coisa neste maldito mar! - gritou o severo capitão, quebrando o silêncio que durou poucos instantes, outrora ignorados pela rotina diária.

De imediato e sem nenhum questionamento todos os marujos disponíveis começaram a lançar ao mar redes e varas de pesca. A atividade já durava apenas algumas horas, porém o resultado fora muito proveitoso, em poucos momentos, duas cestas já estavam repletas de todos os tipos de peixes, quanto a repentina motivação dos homens que retornara para abastecer a auto estima diante do inesperado sucesso. E em meio aos urros frenéticos provenientes da euforia insana que agora possuía à quase todos, com exceção do capitão Sillas Jack, um dos homens que observava atento o marítimo cenário com uma potente luneta nas regiões mais altas do navio, avistou algo que lhe despertou toda sua atenção.

Capitão, Capitão. Estou vendo uma coisa realmente estranha ao mar, parece menor que um pequeno barco a remo, mas se aproxima com muita velocidade. - disse o homem do alto do navio, enquanto que o capitão, imediatamente retirava de um de seus seis bolsos do rubro casaco uma luneta retrátil para comprovar a veracidade do relato.

Realmente fala a verdade seu cão! Vamos nos preparar para o pior, vamos atacar qualquer coisa que o mar traga até nós e esperaremos um banho de sangue com as velas preparadas! - dito isso o capitão deslizou suavemente a mão sobre a volumosa barba negra, produzindo uma singular forma de apaziguar seus pensamentos, enquanto o tempo parecia passar mais devagar que o normal.

Até que finalmente o silêncio foi novamente quebrado pelo mesmo marujo anterior:

Vede Capitão! Vede com teus próprios olhos, e diga-me se estou louco ou estou mesmo vendo duas sereias se aproximando!

O capitão olhando atentamente, consentiu que o homem estava mesmo correto em sua afirmação, ou que talvez ambos já estivessem loucos pela fome, que não parecia mais perturbá-los.

Marujos vamos nos preparar para capturar estas criaturas que podem valer muito ouro em qualquer lugar da Inglaterra... - gritou o capitão com os olhos injetados em fúria, incapaz de tirar os olhos das bestas que chegariam em breve.

Está louco Capitão? Vamos sair daqui enquanto ainda temos tempo. As sereias são capazes de enlouquecer os homens com sua cantoria, não é possível capturá-las. - gritou um negro de nome Neeno, que parecia o único sensato no momento.

Seu cão! Como ousa questionar minhas ordens? Obedeça ou será servido como comida aos tubarões... - Gritou ainda mais alto o capitão como uma voz demoníaca, que fez todos terem um calafrio instantaneamente. / - Todos devem improvisar tampões para ajudar na captura das sereias, usem o algodão que dispomos naquele barril! - continuou capitão Jack enquanto apontava para um barril que encontrava-se a boroeste do navio.

Pagara por isso marujo... - murmurava baixinho o capitão com as mãos sob o cabo de seu sabre, esfregando elegantemente o adornado cabo que reluzia ao sol da tarde.

Quando as duas criaturas se aproximaram todos ficaram chocados pela horrível aparência que ambas possuíam. Sua aparência era esta, tinham o rosto muito semelhante a um peixe com grandes lábios escarlates e se fosse vistas pela frente aparentavam não possuir olhos, pois estes se encontravam nas laterais da cabeça, quase que toda coberta pelas oleosas madeixas negra e ruiva respectivamente. E seu corpo era uma deformidade total, os braços eram finos, longos e ossudos pareciam grudados a suas mãos de crustáceos anormalmente gigantescos. O resto do corpo era todo rechonchudo e aparentava possuir algumas escamas na parte superior com duas guelras laterais, mas as suas partes inferiores eram realmente idênticas aos peixes, que era raro ter uma vista, já que estas ficavam sempre submersas e em envolventes movimentos rápidos.

Os homens sob o comando do capitão Jack usaram as maiores redes que possuíam para trazer as sereias do mar e em poucos minutos, com a ajuda de toda a força de seus músculos conseguiram executar a tarefa rapidamente. Mas algo deu terrivelmente errado, quando umas das redes não resistindo as mãos crustáceas, conseguiu rebentar as grossas cordas que compunham a rede, e assim estava livre para o assombro de todos.

A sereia ruiva deslizou sobre o chão de madeira mais veloz do que muitos poderiam imaginar, como se fosse um bagre ensaboado, atingindo com a bocarra recheada de dentes pontiagudos o pescoço de um dos fortes homens, rasgando-lhe o pescoço por completo. Os companheiros ficaram assombrados com a cena, alguns esconderam-se, mas um deles correu para ajudar o amigo e com uma pequena adaga perfurou várias vezes as costas da criatura que mesmo assim, não soltou mesmo que por um segundo sequer o outro homem que tornara-se seu almoço. E Quando o braço do marujo estava sem mais forças para esfaquear a criatura que parecia imperturbável, ela simplesmente caiu ao chão sobre o primeiro homem e estava morta, as madeixas ruivas unindo-se ao sangue de ambos tornavam sua terrível fronte totalmente avermelhada.

Imbecil! Por que mataste a criatura? Agora ela não vale nada! Homens, amarrem esse traidor ao mastro e pela manhã executem-no! - ordenou Jack, o severo enquanto os homens lutavam para capturar Neeno, que lutava bravamente contra seus companheiros até desmaiar com a pancada seca de uma coronhada vinda de suas costas.

A noite caia sobre todo o mar no mesmo momento que os marujos trancavam a sereia em uma grande gaiola que era destinada aos traidores, mas naquela noite teria como hóspede a criatura marinha, até chegar a hora da venda.

Todos os homens dirigiram-se aos seus aposentos no interior do navio. Entrementes o capitão antes de ir repousar em seu aposento único, retirou os tampões de ouvido de Neeno, quando este ainda permanecia inconsciente pela pancada e só então retirou-se rumando à seu aposento com uma garrafa de rum escondida no interior do casaco.

Os marujos já em seus aposentos retiraram seus tampões para dormir, pois acham que eles atrapalhavam para pegar no sono e causavam dor de ouvido, e naquele inicio da noite o silêncio a dominou. Até que Neeno acordou como o som da jaula sendo sacudida na popa do navio, a criatura estava agitada, e quando notou que o homem acordou, ela abriu sua boca revelando seus dentes ameaçadores, antes de começar sua cantoria, fazendo Neeno entrar em uma espécie de transe, onde seu único desejo era de ir de encontro a sereia. E dotado de uma estranha força sobre-humana, suas amarraras começaram a afrouxar, até ficar totalmente livre, assim dirigiu-se ao convés e encontrou mesmo as cegas as chaves da gaiola e rumou até a prisão da criatura.

Tudo aconteceu muito rápido e no momento que a sereia foi libertada, os ouvidos do homem começaram a sangrar e este desmaiou novamente com o coração visivelmente acelerado pela cantoria que parecia não ter fim. Mas a criatura agora livre, observou-o apenas e deslizou suavemente pelo chão do navio, indo em direção da proa, onde lá permaneceu e então seu canto tornou-se diferente, era mais agudo, agitado e sinistro.

Neste momento os homens acordaram todos juntos, mas não tiver tempo de pensar, pois mesmo que muitos dissessem que estavam acordados, eles pareciam estar num profundo estágio de sono ou sofrendo algum tipo de sonambulismo. Todavia, bem próximo encontrava-se o capitão solitário com um maquiavélico sorriso nos lábios, algo que talvez fosse mais abominável que toda a situação que ocorria no navio, e talvez muitos de seus homens enlouquecessem ao visualizar a cena inconcebível.

E acometido pela inexplicável alegria que o possuía, Jack o Severo sorria largamente ao ver-se refletido em cada caneca de rum que lhe descia pela garganta. Então o agora incauto capitão tornava-se cada vez mais embriagado, que os gritos estridentes vindos da proa lhe passavam despercebidos aos seus ouvidos, enquanto todos os homens rumavam para sua sina mortal, um a um.

A noite despediu-se e o amanhecer chegou cedo, trazendo consigo uma forte e latejante dor de cabeça, oriunda da ressaca que parecia ficar cada vez pior pelo balanço das ondas, mas mesmo assim o velho lobo do mar prostrou-se de pé e colocando-se a frente de sua porta ainda fechada, tentou olhar pelo olho mágico da porta se seus homens já haviam levantado e iniciado o trabalho da limpeza. Mas nada conseguiu ver, pois o olho mágico estava entupido de sujeira e enfureceu-se já que jurava tê-lo limpada no dia anterior. Ao abrir a porta notou qual era o problema, a porta toda estava quase que totalmente coberta de uma camada de sangue seco, e não era somente a parede que estava suja de sangue como também o chão, que escorria lentamente o líquido escarlate manchando o solado de suas botas de couro.

Distraidamente o Capitão do Rubi Sangrento, acabou por retirar os tampões que cobriam seus ouvidos, e então ficou perplexo com um som que lhe invadiu a cabeça por completo, sem deixar espaço sequer para seus próprios pensamentos. Era uma melodia que vinha da voz de uma mulher, mas certamente não era uma mulher qualquer, talvez fosse um anjo ou até mesmo uma deusa, mas definitivamente não era concebível que tamanha beleza viesse da abominável criatura capturada. Mesmo assim, incapaz de conter seus atos, o capitão Jack seguiu a trilha de sangue, sem nem mesmo mais notá-la, chegando ao destino final de seus passos, encontrou diante de si algo que não esperava, algo tão estarrecedor, que se pudesse controlar sua própria vontade, esfregaria os olhos para ter certeza de que não estava diante de uma ilusão. A fonte de tão graciosa melodia, que em certos momentos parecia ser repetida em seus severos lábios, provinha de uma bela jovem nua na proa do navio deitada de costas para o visitante inesperado sob um leve tapete de flores lilases. Ao dar mais um passo em direção da ilusória visão, a jovem notou a presença do capitão e lentamente moveu sua cabeça para poder vê-lo. Então ficaram evidentes seus olhos verdes como esmeraldas levemente cobertos pelos lisos cabelos negros da garota que pareciam com a seda estrangeira sob uma noite de luar. Ela não intimidou-se com a presença do homem e sorriu enquanto cantava, levantando-se vagarosamente do solo e com sensuais poucos passos, estava diante de Jack envolvendo-o com seus longos braços pelo pescoço, as ásperas mãos da capitão deslizaram sobre o corpo esguio da jovem em um longo movimento que estendeu-se das madeixas sedosas até as nádegas de mármore da delicada criatura, seguido de um sonoro beijo apaixonado e insano que resultou no ato sexual como ápice da melodia, sob os olhares misteriosos da miríade de estrelas que compunham o céu, e do olhar de um horrorizado homem que permanecia escondido atras de alguns barris, com a boca pressionada pelas mãos evitando qualquer grito de terror que viesse a lhe escapar. Quando tudo teve fim, viu seu outrora capitão saltando ao mar ao lado da companheira, ambos nadando com fortes braçadas até uma ilha bem próxima, para enfim desaparecerem na paisagem. Colocando-se em pé, Neeno tentou não enlouquecer quando começou a lembrar de tudo que aconteceu, mas ele sobreviveu para narrar a história para muitos outros marujos, história que ainda é capaz de amedrontar os velhos lobos do mar. Todavia a lenda do terrível Capitão Jack, que como dizem, era capaz de seduzir as bestas do mar, ainda pode ser ouvida nos lábios carcomidos de todo bêbado nos cantos escuros de qualquer velho bar que se preze.

FIM

Giomar Rodrigues
Enviado por Giomar Rodrigues em 04/10/2010
Código do texto: T2537958
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