CANTO DA LUA
"A música na sombra
O ritmo no ar
Um animal que ronda
No véu do luar
Eu saio dos seus olhos
Eu rolo pelo chão
Feito um amor que queima
Magia negra, sedução"
C.Rouge/G.Mende/J.Rush/M.S.Applegete/ C.Rabello
O ponteiro do painel indicava que a gasolina no tanque emitia seus últimos suspiros. Por sorte, a imagem do que parecia ser um velho posto de abastecimento se mostrava no final da estrada empoeirada.
A proximidade, no entanto, não proporcionou um alento completo, pois precisei verter uma boa quantidade de suor para empurrar a motocicleta por cerca de um quilômetro até a maldita parada.
Quase sem fôlego, fui recepcionado por um senhor cujas dores do tempo estampavam-se no rosto deformado. O velho ostentava um cigarro de palha pendurado num dos cantos da boca, um tom excessivamente cinzento nublava a área ao redor de sua cabeça. A catarata avançava de forma predatória sobre seus olhos, mas, ainda assim, era possível perceber que não havia o menor vestígio de surpresa em seu semblante, ao deparar-se com um forasteiro naquelas paragens. A irrelevância quanto a minha presença vinha acompanhada por uma despudorada falta de hospitalidade, na verdade, o velho fazia questão de negar-me um mínimo de cordialidade, como se fizesse uso de tal artifício para desencorajar qualquer tipo de visita.
Ele cuspiu no chão e esfregou o dorso da mão nos ressequidos lábios, deixando uma grossa camada de sujeira impregnada nos fios grisalhos da barba. Em seguida, dirigiu-me a palavra:
- Escute aqui, estranho. Seja lá o que você estiver procurando em Canto da Lua, fique sabendo que não vai achar. Sugiro ao moço que aproveite essa última parada, abasteça sua moto e volte por onde veio.
- Ora, boa tarde para o senhor, também. Queira me perdoar, mas tenho um compromisso inadiável na cidade, coisa de família, sabe? Mas agradeço a sua preocupação. Infelizmente, terei de dispensar o seu conselho.
- O senhor é quem sabe, moço. Mas, o advirto: Tenho visto muitos forasteiros cruzando o barro desse chão, mas não posso afirmar que os vejo retornando. Será que eles gostaram tanto assim da cidade? Será que se apegaram tanto que desistiram de voltar?
- Isso eu não sei dizer, meu amigo. Mas posso te assegurar que meus negócios não duram mais do que dois dias, três no máximo. Venho só para visitar uma velha tia, praticamente minha mãe. Fui criado por ela em Sombreiro, no norte do estado. Assim que parti, a fim de ganhar a vida, ela se mudou para Canto da Lua. Por conta disso, tem mais de duas décadas que não a vejo. Mas ela está muito doente, e eu não poderia ignorar um momento difícil como esse. Poderia?
- Entendo sua situação, seu moço. Entendo mesmo. Não acho sensato, ou mesmo inteligente de sua parte, mas entendo. Bom, que o moço tenha em mente que foi advertido. Canto da Lua não é um lugar comum. Aquela terra é muito diferente da capital ou de qualquer outro ponto que o moço tenha visitado ou vivido.
- O senhor está exagerando. Na capital, por conta da minha profissão, tenho visto muita coisa e...
- Esqueça, seu moço. Esqueça tudo o que seus olhos e ouvidos tenham experimentado. O que corre além daqueles morros não pode ser compreendido por sua mente acostumada à civilidade. Eu vejo que há convicção em seus olhos, eu sinto a determinação em seu coração. Com isso, nada do que eu disser servirá para alterar as suas intenções. Então, o que posso lhe oferecer é uma maneira de retornar, caso encontre oportunidade para isso. Tome, leve esse vasilhame extra de gasolina na garupa de sua moto. Não sei se você tem ciência, mas não há como conseguir uma só gota de combustível na cidade. Você não teria como voltar. Resolva o que tiver de resolver e volte o mais rápido possível, se puder.
- Eu não consigo entender, senhor. Se é tão perigoso nos arredores dessa cidade, então, por que o senhor não vai embora daqui?
Por alguns instantes, os olhos cansados do velho pareceram plenos de luz. Sua voz, que até então se mostrava arrastada e vacilante, tornou-se firme e grave.
- É importante que saiba, moço. Cada um tem uma missão nessa vida, a minha é permanecer aqui, aconselhando os viajantes, para manter a chance de equilíbrio. Sou grato por essa chance. Aqui tenho a proteção que não encontraria em nenhuma outra parte desse mundo de Deus. Saiba, moço, que os demônios caminham, eles podem se mover mais rápido do que as pernas dessa sua máquina. Não há motor que se compare ao coração acelerado de um deles, não há combustível que queime mais preciso do que o sangue em suas veias. Temo que, longe daqui, minha vida não durasse mais do que uma noite. Ninguém entra em Canto da Lua contra a própria vontade, estou aqui para assegurar isso. Essa é a minha missão, e como pagamento recebo um novo dia de vida. Cada um é dono do próprio destino, seu moço. Que o senhor encontre o seu.
Um silêncio perturbador perdurou por alguns instantes, até que senti desaparecer, como num estalo, a dormência que me dominava dos pés à cabeça. Sem demora, girei o punho direito, fazendo o potente motor gritar alto no fim de tarde.
Antes de deixar o posto, ainda pude ouvir, ao longe, a voz do velho frentista: “Evite a noite, moço. Mantenha-se na estrada. E, boa sorte, se isso for possível”. As últimas palavras soaram como um sussurro em meus ouvidos.
Por algum tempo, o único ruído que ouvi foi o produzido pelo motor do veículo. Até mesmo o encontro dos pneus com o solo irregular demonstrava uma enigmática mudez. Não havia nada nas margens da estrada que serpenteava a serra, apenas a monotonia fornecida pelo verde queimado pelo sol. Os arbustos, com coisa de dois metros de altura, estendiam-se em todas as direções, a trilha descrevia uma longa cicatriz na face fechada do morro.
Após iluminar fartamente aquele pedaço de terra esquecido pelos mapas, o astro rei buscava repouso no fim das encostas. Não sei explicar, mas nunca um por do sol me causou tamanha melancolia. Senti uma profunda pontada de tristeza no coração, ao vislumbrar tão belo espetáculo. Talvez fosse a vermelhidão viva no firmamento, ou quem sabe as palavras daquele louco no posto, mas confesso que flagrei a mim mesmo torcendo o punho com mais veemência. O motor roncava forte, como se tentasse abafar os ecos da minha vergonha.
A estrada começava a insinuar o declive final rumo ao meu destino, quando percebi algo a quebrar a palidez esmeralda das folhagens: Uma casa, de dimensões bem superiores ao que eu julgava ser capaz de existir num fim de mundo como esse, estava fincada numa das paredes do vale, como se observasse o vai e vem do vilarejo logo abaixo.
Definitivamente, Canto da Lua parecia vigiada pelos olhos daquela casa. Mas, aquela residência não foi a única surpresa que tive na derradeira parte de minha jornada. Na verdade, algo maior ainda estava reservado para mim. Quando eu me preparava para descer a encosta, fui brindado por uma visão que certamente eu guardaria para o resto de minha vida: Uma jovem, cuja beleza não poderia ser descrita com precisão, arrastava um cesto pelo jardim. Ao notar minha passagem, ela parou o que estava fazendo e me lançou um olhar de feiticeira. Digo que havia algum tipo de feitiço naquelas órbitas negras porque, simplesmente, tive a sensação de flutuar, de perder a noção de tempo e espaço.
Meus olhos mantiveram-se fixos em seu semblante, e continuaram a acompanhá-lo mesmo quando a fachada da casa ficou para trás. Com o queixo apoiado no ombro direito, eu havia esquecido completamente onde estava, mas o percurso ainda permanecia no mesmo lugar. Irregular e traiçoeiro. Imprevisível e impiedoso. Um cascalho ardiloso colocou-se no caminho da roda dianteira, o impacto fez a motocicleta projetar-se no ar, a perda do equilíbrio fora inevitável, a queda, uma conseqüência.
Cambaleante, o veículo desceu pela encosta, levantando terra e arremessando pedras. Não consegui dominar a máquina, e também rolei pelo barranco. Agradeço muito aos arbustos, pois sem eles, fatalmente a motocicleta e eu seríamos lançados precipício abaixo.
O couro da jaqueta havia sido rompido por uma pedra na altura no meu braço direito, um talho profundo fazia verter muito sangue pelo local. Coloquei-me de pé, minha mochila havia ficado no alto da encosta. Notei que o tanque de combustível da motocicleta vazava os últimos traços da gasolina. Felizmente, o recipiente extra estava intacto. Fora arremessado longe, mas resistira ao impacto.
Com muito custo, consegui resgatar meus pertences e o veículo. A roda dianteira estava totalmente deformada, assim como a tampa de combustível e algumas engrenagens. Despejei um pouco de anti-séptico na ferida, e envolvi uma atadura no braço. Sempre trago um kit na mochila. Estranhei o fato da mulher não ter vindo em meu socorro, ela fora testemunha do acidente. Na verdade, fora um fator determinante para tal.
Seria preciso empurrar a moto até o vilarejo. Certamente minha estadia no local perduraria por mais tempo do que eu havia planejado. Lembrar das palavras do velho fora inevitável, tomara que suas insinuações terminassem nesse episódio.
Quarenta e cinco minutos depois, eu cruzava o portal de entrada de Canto da Lua. O querosene queimava farto no alto dos postes de madeira. As ruelas eram compostas por pedras arredondadas, o encaixe entre elas fora executado de maneira meticulosa. Um quarto crescente enfeitava o céu estrelado, mas não havia uma viva alma na rua. Para me recepcionar, apenas o ladrar de alguns cães, entrecortado por um ou outro uivo mais acentuado, provavelmente produzido por algum par mais distante.
Não foi difícil encontrar a casa de minha tia. Uma grossa vela incrustada numa lanterna iluminava a pequena varanda da residência. Não foi preciso bater, a porta estava aberta e, mesmo sem me anunciar, minha presença já havia sido percebida. E, de um quarto localizado no final de um longo corredor, uma voz chamava meu nome.
Minha tia estava entrevada no leito, totalmente entregue à doença. Não pude conter as lágrimas ao vê-la daquele jeito. Um turbilhão de lembranças invadiu-me de súbito.
Mesmo coberta por um lençol, não pude deixar de notar a horrenda ferida que se estendia por seus ombros e pescoço, certamente dominava todo o corpo. A magreza e debilidade em nada lembravam a imagem daquela mulher altiva da minha infância. Antes que eu pudesse emitir qualquer palavra, ela se antecipou:
- Sinto cheiro de sangue em você, filho. E isso é algo muito perigoso por essas bandas. Como você se feriu? Você se deparou com algum problema durante a viagem?
- Não se preocupe, mãe. Não foi nada grave , apenas um arranhão superficial.
- Uma reles gota de sangue já é mais do que o suficiente para lhe causar muitos problemas em Canto da Lua, menino. Como foi que isso aconteceu?
- Bom, eu encontrei uma casa muito vistosa no alto do morro, e, defronte a ela, notei uma moça ainda mais vistosa. Ao que parece, me distraí com sua presença e perdi o controle da motocicleta, o que me causou um leve ferimento. O que me preocupa mesmo é o estado do veículo e...
- Fique longe daquela mulher! Você não tem idéia do mal que aquela família pode causar a todos nós. Eles são detentores de artifícios maléficos e querem o nosso mal, o mal de todos aqui nesta cidade. Eles são a perversão da nossa espécie, uma aberração da natureza. Uma verdadeira afronta aos costumes locais. Ela mesma, aquela bruxa maldita, me causou essa chaga que consome até meus ossos.
- Como assim, mãe? Como assim ela lhe causou essa doença?
- Esqueça, meu filho. Esqueça isso. Esqueça aquela família. O que importa é que você está aqui, ao meu lado. E eu tenho a oportunidade de realizar um último desejo antes que a Dama da Foice venha me buscar. Vinte anos se passaram. É um período muito longo, não é mesmo? Pavimentei o seu caminho, criança, mas tenho ainda tanto para lhe ensinar.
- Mas, mãe, isso não é...
- Silêncio! Por favor, meu filho, não se apegue a estas incertezas. Temos pouco tempo, faça o que te peço. Esqueça a imagem que encheu seus olhos no alto daquele morro. E, por toda consideração que você nutre por mim, não saia às ruas durante a noite. É perigoso. Muito perigoso. Pelo menos não até eu terminar de prepará-lo. Aí sim, você poderá enfrentar os desafios que certamente virão até você. Agora, me deixe descansar.
- Está certo, mãe. Está certo.
Tudo soava muito estranho para mim. Era como se eu fizesse parte do enredo de alguma história envolta por mistérios. Não dava para calcular até que ponto o cérebro da minha tia tinha embarcado nos próprios devaneios que criava. Mas uma coisa era certa: A completa ausência de transeuntes nas ruas era algo, de fato, anormal. Mesmo para uma cidadezinha perdida no mundo. E, se tem uma coisa que caminha lado a lado em minha vida, tanto no lado pessoal, quanto no profissional, é a incessante busca pela verdade. Em todos esses anos como investigador da polícia metropolitana, nunca deixei escapar um detalhe em minha apurada percepção.
Assim, não senti remorsos em contrariar as recomendações feitas com tanto afinco por minha tia. A noite estava agradável e limpa, afinal o que eu poderia encontrar de tão terrível naquelas vielas, travessas e ruas estreitas? Um arruaceiro? Um bêbado inveterado? Um maníaco? Pouco provável. Quando cheguei, não permaneci por muito tempo por entre as praças e becos locais, mas uma coisa pude sentir: Nunca presenciei nada mais enfadonho em toda a minha vida. Nem mesmo a pequena Sombreiro dos meus tempos de criança era tão monótona. Mas, mesmo assim, não abri mão de levar meu fiel amigo de trabalho comigo, afinal, nunca se sabe.
Os primeiros minutos de passeio pelas ruas de pedra transcorreram sem quaisquer anormalidades. O ar muito limpo preenchia meus pulmões de vitalidade. Vez ou outra, um cão vadio cruzava meu caminho, eles surgiam como assombrações ocultas pela intermitência proporcionada pelo bruxulear da parca iluminação dos lampiões.
Percorri quase toda a cidade sem encontrar uma única viva alma. Apenas os cães me faziam companhia, e foi justamente um que me chamou a atenção ao ponto de quebrar o marasmo no qual eu estava mergulhado.
Começou como um ganido tímido. Parecia originar-se de um beco entregue às trevas. No início, tive a nítida impressão de que o cachorro emitia um lamento, como se fosse um choro ou algo do tipo, não sei bem como explicar, mas essa foi a minha impressão.
Conforme eu me aproximava do local, o som de uma respiração ruidosa invadia meus ouvidos, ao passo que um odor nauseante maculava a pureza do ambiente. Aos poucos, o ganido não era mais perceptível, e em seu lugar ecoava as sombrias notas de um rosnar ameaçador. Engoli em seco, pois eu nunca havia testemunhado nada parecido com aquilo. Mesmo com a arma engatilhada, confesso que, por alguns segundos, hesitei em perscrutar a escuridão, pois tive medo do que nela se escondia.
Precisei enfrentar o medo e prosseguir. Pé ante pé, fui vencendo a distância até o beco. Deslizei o polegar sobre as ranhuras do isqueiro e fiz brotar uma chama tímida. Com o auxílio do fogo, arrisquei uma olhadela na direção do vão espremido pelas paredes de tijolos crus.
O que vi era algo grande. Algo muito grande e indecifrável. Não sei o que aquilo fazia, mas parou de repente e puxou o ar com vontade, pois pude ouvir o som produzido durante processo. Eu não sabia o que era aquela criatura, e juro que estava pouco interessado em saber, mas seja lá o que fosse, ela se virou para me olhar, pois eu vi todo o horror do mundo estampado em dois círculos amarelados e vivos.
Eu não sabia como era a face da morte, mas de uma coisa eu não tinha dúvidas: Ela tinha aqueles olhos.
Sem esperar por qualquer atitude por parte da criatura, despejei o conteúdo da pistola em sua direção. Não tive certeza se fui feliz em minha investida ou não, só posso afirmar que o meu alvo saiu da mira, saltando por sobre o muro, nublando por alguns instantes o céu noturno, enquanto executava a improvável manobra.
Corri para o fundo do beco, meus pés afundavam em poças no chão. Perplexo, percebi que o líquido que espirrava em minhas pernas era sangue, e que junto a parede que lacrava a viela estavam amontoadas muitas carcaças caninas. Mais uma vez, com o auxílio do isqueiro, percebi que em boa parte delas não era possível enxergar qualquer vestígio de vísceras. Os animais mortos ostentavam um enorme buraco na altura do estômago, uma entrada para um espaço completamente vazio.
Eu estava tão desnorteado com a situação, que demorei a perceber um sintoma óbvio. Como nunca na vida, torci para que eu estivesse errado, desejei que a maldita criatura não tivesse tramado o que eu acabava de constatar, o inevitável fato de que eu estava encurralado.
Minhas pernas tremeram. Senti um arrepio percorrei minha espinha, enquanto meus pêlos se eriçavam. Lentamente, girei o corpo e deparei-me com a verdade: Mais uma vez, eu estava certo.
Eu nunca vi um quarto crescente brilhar com tamanha intensidade, o luar realçava cada detalhe do demônio. Com horror, percebi que a criatura de pé na entrada do beco ostentava quase o dobro do meu tamanho, e eu não me considero um homem de baixa estatura.
A fera arfava diante de mim, balançava os membros superiores de modo intimidador. Eu sempre confiei no chumbo da minha arma, mas duvidava que as balas pudessem surtir algum efeito diante daquela carcaça hedionda de pêlos e músculos.
A criatura olhou para o céu e soltou o poder de sua garganta num uivo aterrador. Um novo pente de munição já estava acoplado na pistola. O conflito era inevitável.
Comecei a disparar enquanto ela ainda estava ereta, mas foi só os primeiros projéteis começarem a rasgar o ar, para que, num só salto, a fera ganhasse alguns metros já sobre as quatro patas.
Continuei a investir contra seu corpo, mas pouco ou nenhum efeito nocivo consegui produzir em sua couraça. As órbitas amarelas avançavam em minha direção. Não sou acostumado a fugir de uma luta, mas o duelo que eu travava não era justo.
Tomei impulso, na ânsia de projetar meu corpo por sobre o muro. Desajeitado, despenquei no outro lado, batendo as costas no chão com tamanha violência que o ar me faltou.
Arrastei-me pelo barro sem perder o foco no alto da parede. O olhar maligno logo surgiu. Apontei o cano da pistola para espaço entre o brilho que me encarava, mas um clique seco foi tudo o que consegui obter da arma.
O rosnado da besta anunciava que ela estava pronta para dilacerar minha carne, não havia como fugir. Mas, a partir do momento seguinte, passei a acreditar em milagres. Pois, sem qualquer razão aparente, o demônio simplesmente desistiu de mim. Com um novo salto, ele retornou para a viela e desapareceu na noite.
Aos poucos o ritmo cardíaco foi voltando ao normal em meu peito. Levantei-me da melhor maneira que pude, e tomei o rumo de volta à casa de minha tia.
O ritmo apressado converteu-se rapidamente numa desabalada corrida, não havia motivos para esconder o pânico que me dominava. Meu único desejo era alcançar a segurança a qualquer custo, mas algo chamou minha atenção antes que a cobiçada tranqüilidade pudesse ser obtida.
Em meio aos arbustos que margeavam a estrada principal, estava depositado o que parecia ser um vestido. Aproximei-me, mas não muito, apenas o suficiente para confirmar minhas suspeitas. E, de fato, era realmente uma peça de roupa atrelada às folhagens.
Algo não estava certo, fui invadido pela nítida impressão de que eu estava sendo observado. E, mais uma vez, eu estava certo. Uma mulher, a mesma que embaralhara minha percepção horas antes, lançava-me um olhar a certa distância. Notei que nenhum tecido revestia seu corpo. O fenômeno proporcionado pelo inexplicável luar permitia que eu identificasse a natureza daquilo que manchava toda a extensão de sua pele. Rosto, tronco e membros, tudo estava revestido pela poeira avermelhada do solo barrento, mas não era só isso, havia sangue. Muito sangue em toda parte!
Imediatamente, as palavras proferidas por minha tia me abraçaram. Não só as dela, mas as do velho frentista também. No entanto, a pior de todas as vozes era a lançada por meu próprio instinto de sobrevivência. Ela gritava com todas as letras: Corra!
Venci a distância até a casa sem olhar para trás. Ao cruzar a porta, ouvi meu nome ser pronunciado com veemência.
- O que você fez? Eu não deixei claro que era proibido oferecer sua presença sob o domínio da noite? Você não tem respeito pela minha condição? É pedir muito? É demais para você?
- Mãe, por favor, me desculpe, eu não fazia idéia...
- Silêncio! Tudo bem. Está tudo bem. Mas, escute, meu filho. Escute o que a sua velha tia, sua mãe, tem a lhe dizer, se aproxime. Sente-se aqui ao meu lado.
- Sim, mãe.
- Meu filho, você já deve ter ouvido falar que cada ser tem um papel a desempenhar na vida. Mas, aqui em Canto da Lua, essa certeza apresenta algumas particularidades.
- Mas, mãe, a senhora não sabe o que eu passei, o que eu vi e...
- Eu sei, meu filho. Não há nada de novo que você possa me contar. Apenas ouça. Ouça com atenção. Quando a noite cai, os demônios caminham livres, na ânsia de amenizar a tortura causada pela fome e pela sede.
- Como assim? Demônios? Existem outros além do que eu vi?
- Sim, meu filho. Mas, nem todos podem caminhar sob a mesma lua. Apenas durante a plenitude lunar as feras caminham livres. Mas, não se engane, como você pôde constatar, mesmo durante as outras fases, a besta caça. Os mais fortes podem exibir sua presença mesmo diante da palidez da Nova, da hesitação da Minguante ou da incerteza da Crescente. A força não é a mesma da Lua Cheia, mas não subestime nunca o apetite insano da fera.
- Desculpe-me por interrompê-la, mãe. Mas, eu vi muito mais do que um demônio em meio à escuridão. Eu vi a garota, mãe! Eu vi a mesma garota da casa no alto do morro. Seu corpo nu estava lavado em terra e sangue. Terra e sangue!
- Não! Fique longe dela! Fique longe de todos daquela família. Escute, meu filho, eu já te pedi uma vez e te peço novamente: Fique longe de todos daquela casa, só o mal pode surgir de lá, só o mal.
- O que eles podem fazer, mãe? O que eles são? Diga-me! Diga-me!
- Na hora certa, menino. Na hora certa, você vai se preparar para eles. Vai saber como lidar com cada um daqueles malditos. Vai aprender como se livrar dos feitiços, principalmente o lançado pela menina. Ela é perversa. É impiedosa. Não se iluda, pois se ela tiver uma chance, por menor que seja, ela não hesitará em matá-lo. NÃO HESITARÁ EM MATÁ-LO!
- Mãe! Mãe!
Não sei exatamente até onde os habitantes daquela casa estavam envolvidos no terror com o qual me deparara. O que posso afirmar, no entanto, é que a pessoa responsável por minha criação acreditava plenamente no que estava falando, disso não tenho dúvidas. A exaltação com o próprio relato fora tamanha, ao ponto de fazê-la desfalecer ao término da exclamação final.
Após chegar seus sinais vitais, achei por bem deixá-la descansar. Eu precisava encontrar a serenidade, porque o desafio que a lógica me lançou agredia com veemência qualquer sinal de lucidez. O calendário à minha frente emitia um sinal de alerta, um aviso em forma de círculo, uma esfera amarela marcada para a noite seguinte.
Passei toda a manhã concentrado no conserto da motocicleta, algo me dizia que eu precisaria dela bem antes do que eu imaginava. Foi difícil amenizar os danos, o reparo provisório daria, no máximo, para chegar ao posto de abastecimento do velho. Pelo menos, o tanque estava cheio, e ainda sobrara pouco mais de um quarto do reservatório, o qual já estava devidamente atrelado novamente à garupa do veículo.
O sol estava quase se pondo. Minha tia pouco se manifestara durante todo o dia, tempo este em que uma idéia insistia em não se dissipar nas turbulências dos meus pensamentos. Nunca gostei de assuntos pela metade, por conta disso achei por bem tirar a limpo toda a história que ouvi.
Um novo pente municiava a arma em minha cintura. O horizonte oferecia um tom avermelhado em seus domínios. Girei a chave, quiquei a motocicleta e torci o punho. O motor esperneou, mas não fraquejou. Deixei um rastro de fumaça azulada pelo caminho.
Em alguns minutos, eu já estava nas cercanias da casa, no alto do morro. Um exagerado, porém belo, plenilúnio derramava seu esplendor sobre Canto da Lua. Segui pela trilha arborizada que rodeava a residência. Da melhor maneira que pude, averigüei cada recanto escondido, tentando produzir o menor ruído possível. Na parte dos fundos, percebi uma iluminação suspeita oriunda do que seria um cômodo no subsolo.
Desci da moto e me aproximei do local, numa tentativa de desvendar o que acontecia naquela espécie de porão. As frestas pouco revelavam e, por alguns minutos, só percebi vultos circulando de um lado para o outro. Entretanto, o silêncio, que até então imperava, foi quebrado por um grito aterrador. Eu conhecia a dose de agonia e desespero que preenchia o tom daquela voz, em minha vida não era incomum essa experiência. Achei por bem retirar o vasilhame com gasolina do veículo. Coloquei-o, em seguida, na mochila em minhas costas. Se houvesse algum tipo de sordidez no interior daquela casa, eu colocaria fogo em tudo.
Um novo e mais acentuado grito fez despertar em mim o sentimento de que eu precisava agir imediatamente. Com uma coronhada, destrocei o cadeado que lacrava o alçapão, e abri caminho pelos degraus de madeira. Cheguei num amplo e bem iluminado salão, mas não tive tempo para apreciar os detalhes do ambiente, pois o horror me assaltou de súbito.
Uma jovem, com não mais do que vinte anos, estava amarrada pelos punhos e tornozelos numa enorme cruz. Nenhuma peça de roupa revestia seu corpo. No seu rosto havia dor. Sobre sua pele, as marcas da tortura estavam expostas. O sangue escorria pela madeira, formando uma hedionda poça no chão.
Um homem de cabelos e barba grisalhos, e um rapaz de músculos desenvolvidos, espetavam lanças metálicas no corpo entregue da menina, a qual gritava em desespero a cada investida. Violência explícita num ato bárbaro. Um pouco mais atrás, estava uma senhora, que segurava uma bacia, também metálica, e que vez ou outra, lançava o conteúdo líquido do recipiente na prisioneira. E, ao lado dela, aquela moça, a mesma que eu vira no dia que cheguei, e que voltei a encontrar no dia do ataque.
Sou um homem da lei, meu dever me impede de ser omisso. Assim, fui impelido pelo instinto do ofício. Saquei a pistola e, com dois disparos certeiros, abati os homens que torturavam a jovem. Ouvi novos gritos, mas estes foram proferidos pelas mulheres. A mais velha se apossou de uma das lanças e partiu em minha direção, não hesitei nem por um instante. Apertei mais uma vez o gatilho, fazendo o chumbo cortar o ar para, em seguida, se instalar na testa da agressora.
Eu estava ofegante, nunca senti tamanha aflição no cumprimento do dever. Apontei a arma para a última do bando, eu estava preparado para encerrar, naquele momento, a onda de violência. A lua estava alta, eu sentia que aquela menina, com feições de anjo, estava prestes a ser invadida por novos e bestiais contornos. Logo, o demônio que cruzara meu caminho mostraria sua verdadeira face. Era preciso paciência, eu queria ver a transformação. Meu dedo dançava sobre as ranhuras da vírgula de aço, mas eu não poderia titubear, não mesmo, não naquele momento.
A garota se aproximava cada vez mais, ao passo que minhas mãos não paravam de tremer. Ela meneava a cabeça incessantemente, mas nenhum sinal da fera. A dúvida açoitava minha mente, pela primeira vez na vida eu não sabia o que fazer.
- Atire! Atire em mim, maldito. Acabe de uma vez por todas com essa triste sina que persegue a mim e aos meus. Vamos! Onde está a sua coragem? Vamos, homem da lei, libere sobre mim a fúria da sua ignorância!
- Cale a boca! Cale a boca, garota! Quem você pensa que é? Não me desafie! Não me desafie! Eu quero ver o seu verdadeiro rosto, mas não me tente, pois eu ponho uma bala em sua cabeça!
- Ora, você não sabe nada, policial. Eu sei tudo sobre você. Tudo sobre a tarefa que lhe aguarda, mas você não sabe nada a respeito dessa cidade, não conhece nenhum detalhe da minha família, ou mesmo, da sua. Você, que se orgulha da sua capacidade, perspicácia e civilidade, não entende nada sobre si mesmo. Você não se conhece, policial, não se conhece.
- Do que você está falando, demônio. Minha tia me contou tudo que preciso saber sobre você e sua família, bruxa. Conheço suas artimanhas, seus feitiços.
- Contou? Contou mesmo? Ela lhe contou que eu a feri? Contou?
- Lógico! E você pagará por isso!
- Não nego, homem da cidade grande. Eu a machuquei bastante, queria tê-la matado! Mas ela é forte. A maldita é forte. Mas sabe por que eu a ataquei? Ela te falou tudo mesmo?
- Porque você é um demônio! Uma criatura dos infernos que se alimenta da carne e do sangue das pessoas.
- Posso ser um demônio sim, policial. Aos olhos dela e de todas as outras pessoas de Canto da Lua, era exatamente assim que parecíamos. Minha família e eu somos todos demônios. Quer saber o motivo? Quer ouvir a verdade?
Meu silêncio a levou a continuar, mesmo sem anuência.
- Nós somos demônios porque os caçamos. Eles nos vêem assim porque espalhamos o pânico em seus corações perversos. Essa é a minha sina, não tive escolha. Cada um tem sua missão na vida, senhor. A minha é essa. Um triste destino, uma caçada sem fim. Você me deixou só nessa luta, selou a vida dos meus pais e irmão. Sendo assim, atire. Ponha um fim nesse sofrimento. Vamos! Atire, infeliz!
Confesso que fiquei atordoado com o feitiço da menina, exatamente do jeito que minha tia alertara. A dúvida já lançava suas carícias sobre mim, mesmo antes daquele discurso. Mas eu não poderia me dar ao luxo da fraqueza, não mesmo, afinal, eles torturaram uma menina. E como se adivinhasse meus pensamentos, ela falou...
- Aquela que você poupou com sua misericórdia, é um deles. Veja, ela escapou. E posso lhe assegurar que ela e a besta que cruzou seu caminho são a mesma pessoa. Você se lembra de ter me encontrado, não lembra? Naquela noite, ela estava prestes a lhe destroçar, mas, para a sua sorte, eu a caçava. E, por conta disso, eu consegui atrair sua atenção com a minha presença. Esses seres não são bestas irracionais, ao perceber que eu estava na área, ela escolheu acabar com a ameaça, ao invés de devorar uma presa. Assim, preparei uma armadilha com o meu cheiro e roupas. O sangue que você viu em mim era dela.
- Isso, isso é loucura. O desespero é tanto que você está delirando, menina.
- Então, atire! Se você está tão certo disso, atire e acabe com essa história.
Apertei, com vontade, o cabo da pistola. O ódio me consumia. Mas, ao contrário do que eu gostaria, o sentimento nefasto não se dirigia contra a garota diante de mim. Eu me sentia de mãos atadas, completamente entregue e sem saber o que fazer.
- Então, me diga uma coisa: Por que estou aqui? Por qual motivo fui chamado para Canto da Lua?
- Viu como você não sabe nada, policial. Você será um deles. Sua tia não lhe contou nada sobre o momento certo? Não lhe disse nada a respeito de força e conhecimento para nos enfrentar? Pois bem, senhor. Logo você se tornará um escravo da lua, um demônio sanguinário. Em breve você será convertido, homem da lei, você será o herdeiro da maldita líder da alcatéia. Você será o alfa, e quanto a isso, não há como lutar.
- Não! Você está mentindo! Está mentindo!
Em meio ao meu tormento interior, um baque estrondoso fez espirrar sangue em todas as direções, bem diante dos meus olhos. Não sei de onde aquilo surgiu, mas com rapidez e eficiência tratou de dilacerar a menina que usou seus últimos instantes de vida para abrir meus olhos.
Disparei com afinco na direção da fera. Mas uma voz às minhas costas sobrepujou os estampidos secos que logo surgiram na arma.
- Poupe suas forças, meu filho. Você vai precisar.
Minha tia surgia na entrada do recinto. A fera que eu alvejara, a menina crucificada, tratava de escoltar a chegada da mulher que eu reconhecia como mãe. E ela não estava só. Muitas outras criaturas se aproximavam, todas rosnavam e uivavam para a noite. A única que mantinha a humanidade era justamente a minha tia.
- A prata que a maldita lançou em meu organismo ainda queima, criança. Mas ela encontrou seu destino, e você, logo, também encontrará o seu. Eu desejo que esse velho corpo resista a mais essa provação, espero que suporte a dor desse veneno metálico, e que, assim, eu possa apreciar a sua ascensão. Mas, caso eu não resista muito mais, pelo menos terei realizado o sonho de contar com um herdeiro para colher as sementes que plantei em Canto da Lua.
- Não, mãe! A senhora não pode, não pode fazer isso. Não está certo. Eu não quero, não quero.
- Não se preocupe, meu amor. Eu mesma terei a honra de lhe passar o dom. Lembra-se de quando você era criança e tinha medo de injeção? Lembra-se do que eu lhe dizia? Não vai doer, meu filho, eu prometo. Não vai doer...muito.
Meu Deus! Eu nunca poderia supor que um dia seria capaz de testemunhar um espetáculo tão repugnante, tão cruel e devastador. Meus olhos já presenciaram todo tipo de barbaridade e violência, mas jamais viram tamanha afronta à criação divina.
Minha tia arrancava a própria carne a dentadas. Ela cuspia os nacos no chão, enquanto tufos de pêlos surgiam das feridas ensangüentadas. Seu corpo disforme se contorcia involuntariamente. As bestas rosnavam como em gargalhadas demoníacas.
Eu via a maldade nos olhos da mulher. Aquelas órbitas de brasas vivas queimavam, sim, abastecidas pelas chamas dos infernos, mas deixavam transparecer a personalidade da pessoa humana por trás da fera. No entanto, a humanidade revelada era tão ou mais perversa que a própria besta. E, se as dúvidas me dominaram por muito tempo, naquele momento elas se converteram numa inabalável certeza: Eu não desejava ser aquilo. Nunca, nem nos mais terríveis pesadelos, eu poderia admitir dividir o corpo com algo tão nocivo, tão pecaminoso.
Era preciso agir rápido, pois eu não teria uma segunda chance. Minha tia já se postava em quatro patas, assim como todo o seu séquito. Minhas mãos ávidas buscavam o instrumento para o caminho da redenção. Tenho os céus como testemunha de que sempre busquei fazer o bem, mas naquela noite eu havia causado a desgraça de uma família. Assim, rezo para que eu encontre conforto e, quem sabe, clemência divina no ato que eu estava prestes a cometer.
Eu preferia a morte a ter de viver como um demônio. Desta forma, alcancei o vasilhame na mochila e, rapidamente, despejei a gasolina sobre meu corpo. As feras saltavam em minha direção. Retirei o isqueiro do bolso da calça, não havia muito tempo. Mesmo depois de muitas tentativas, o objeto se recusava a fornecer o fogo salvador. Eu via um futuro negro através daquela garganta nefasta, um vão de tormentos oferecido pela boca escancarada da besta que seguia na vanguarda.
Já era possível imaginar a dor de mil lanças rasgando a minha carne, o desespero era incalculável. Tentei chorar, mas as lágrimas me faltavam, tentei gritar, mas onde estava a voz? Tentei desistir, mas a chama amarelo-azulada não deixou. Senti, com alívio, o sofrimento das labaredas consumindo meu corpo. Gargalhei naquele recanto desconhecido, mesmo com o abraço quente da morte a me apertar, pois vi um desespero maior do que o meu nos olhos da minha tia-fera.
Ela não realizaria o sonho de ter um herdeiro de sangue, afinal. Sua linhagem terminaria ali. Nos meus últimos instantes, dividido pela insanidade e pela dor, eu pedia para que a prata conseguisse limpar as impurezas de sua alma. Eu implorava aos céus para que ela encontrasse seu fim, para que encontrasse a paz. Meu carinho e gratidão por ela seriam eternos, apesar de tudo.
Havia, de fato, a possibilidade da morte estender seus braços sobre ela. No entanto, eu sabia que mesmo que ela se fosse, as criaturas da noite continuariam a marcar sua presença naquela terra esquecida. Todos têm uma missão, todos têm um papel a desempenhar. Os uivos lançados na noite nunca deixariam de dizer, com a nitidez das águas de uma nascente, que aquele lugar não ostentava um nome tão peculiar à toa, afinal, o que se pode esperar de uma cidade chamada Canto da Lua?
Minha visão nublou-se em chamas...