Pouco Depois do Fim...
Vivíamos os derradeiros capítulos do fim. Desde que a chuva de horrores descera dos céus, consumindo em instantes de maiúscula dor, uma exuberante civilização, cada sobrevivente lida com o infortúnio à sua maneira; sendo a negação a forma escolhida por muitos. Acreditam, dentro dos seus fragmentos particulares de fantasia, que podem voltar a levar a mesma vida de antes, apesar dos cacos que restaram, e minha esposa é uma dessas.
Por um golpe do destino minha família e eu sobrevivemos. Nosso apartamento, grudado a um canto da periferia, resistiu ao parcial desmoronamento do edifício. Temos acesso ao térreo através da escadaria exposta como uma veia aberta. Ninguém sabe quem lançou o primeiro dardo da morte, mas quando as ogivas atômicas começaram a estilhaçar a calota azul do globo, não fazia mais sentido apontar um culpado único: a humanidade inteira pagava pela insensatez de alguns.
- Precisamos de água!
Foi o que disse minha esposa, na ordem que tentava colocar na cozinha, enquanto eu afundava nas minhas divagações sentado sobre o empoeirado sofá. Ela veio até a sala:
- Você precisa ligar para a Companhia de Água. Não suporto mais essas faltas constantes.
- Tudo bem, querida. Vou providenciar.
Felizmente consegui reunir alguns galões de outros apartamentos. Também tive sorte ao arrombar um depósito subterrâneo dos escombros de um mercado, podendo acumular algum alimento e bebidas, tento grande cuidado no transporte, furtando-me ao máximo de qualquer olhar. Tratei de ocultá-lo o melhor possível, mas acabou sendo descoberto por outros e a pilhagem logo deu cabo de tudo. No entanto, ainda teríamos o suficiente para beber e preparar uma repetitiva sopa com restos até que não tivéssemos mais como continuar.
Entrei no jogo da minha esposa, não tendo como despertá-la, para que não sofresse com a queda para dentro da amarga realidade. Não se encontrava solitária no seu asilo na loucura. Vi um homem, durante muitas manhãs e tardes, postado no que antes era um ponto de ônibus, aguardando um coletivo que não mais passaria, até que um dia não compareceu mais.
As ruas, gradativamente, vertidas em um tapete cinza, com os flocos que não terminavam de cair, ficavam completamente desertas, à medida que os últimos humanos desapareciam da face da terra. Sabia que o inverno nuclear se aproximava e, em breve, os poucos raios do sol que ainda teimavam em nos alcançar, estariam totalmente bloqueados. As noites arroxeadas se tornariam cada vez mais gélidas. Nosso completo apagar seria questão de dias.
Vi cães, convertidos nos novos predadores, avançando sobre corpos em decomposição. Aliviava-me por ainda haver corpos a serem devorados, pois, por hora, nos deixariam em paz. Ao buscar alimentos, ou algo que pudesse ser útil, andava na posse de um velho 38 que encontrei em um apartamento vizinho. Ainda conseguia levar para casa pacotes de macarrão ou de arroz, que retirava de moradas habitadas pelo abandono. Escavava em locais que abrigavam antigos comércios em busca do que poderia ser útil. E, enquanto me ocupava com os afazeres da sobrevivência, esquecia-me da dor que a radiação já provocava.
Meu corpo mudava, bem como o da minha esposa e filha na casa dos dezesseis. Os cabelos caíam, os dentes deixavam, um a um, o acolhedor abrigo da gengiva. Perdi algumas unhas. Não havia como tomar banho e a falta de higiene era outro elemento a nos acentuar a decadência. Por um tempo o que restou da defesa civil tentou organizar uma retirada da cidade, na tentativa de nos organizarmos nos campos, que foram menos atingidos, mas, com o correr dos dias, não havia mais ninguém para ser salvo. Minha esposa recusou-se a partir:
- Essa casa é minha e daqui somente vou sair morta. Não vou para lugar algum com ninguém, nem mesmo a passeio. – Vaticinou, pois tentei convencê-la de que era uma excursão. Busquei fazer com que minha filha fosse, para que talvez tivesse uma chance, mas preferiu ficar conosco. Não tive como obrigá-la. Não tinha ânimo para tanto. No íntimo, eu também não acreditava que teríamos melhor sorte em qualquer outro lugar.
Por alguns dias consegui sintonizar uma desesperada estação de rádio, até que veio a estática e, enfim, o silêncio, quando se esgotaram as baterias. Minha filha esbravejava, enquanto minha esposa, sentada no sofá assistindo a uma novela imaginária, ignorava o nosso estado de ser:
- Pai, o que será de mim? Veja como meu corpo se deteriora? Eu não tenho mais cabelos e restam somente alguns dentes. Não terei mais namorado, nem filhos, nem entrarei para a faculdade. O que será de mim, pai?
Fiquei mudo. Não sabia o que dizer. Levei a mão na cintura e senti o revólver. Meus olhos, cheios de lágrimas, decidiram que talvez fosse melhor utilizar a arma da melhor forma possível. Acabar com o sofrimento de ambas seria a solução mais piedosa. Um tiro em cada cabeça, terminando por mim mesmo, e todos estaríamos bem. Enquanto ela, diante da sacada sem vidro ou proteção, gritava para o mundo seu infortúnio, apontei com firmeza para a sua nuca.
- Pai, o que terei no futuro?
- Câncer. – Disse sem refletir, enquanto preparava o disparo. No entanto, a força da crueza daquela palavra atingiu-a mais duramente que a clava do pior inimigo. Abriu os braços e mergulhou no espaço. Segundos depois ouvi o baque do corpo beijando o solo ecoando em meus ouvidos. Ela estava livre e em paz. Minha mulher perguntou:
- Cadê a Jane?
- Saiu para pegar um ar. – Respondi, poupando-lhe o sofrimento.
- A novela hoje está boa. – Disse-me olhando para uma tela nua. Não tive coragem para eliminá-la. Sentei ao seu lado segurando-lhe a mão e deixando a arma de lado.
- Realmente, muito boa... – E ficamos ali, calmos e alheios, esperando a chegada do momento em que entraríamos para a eternidade...
(Texto criado para atender ao desafio da Comunidade Orkutiana ¨Contos Fantásticos¨. Tema: Mundo Pós-Apocalítico)
Vivíamos os derradeiros capítulos do fim. Desde que a chuva de horrores descera dos céus, consumindo em instantes de maiúscula dor, uma exuberante civilização, cada sobrevivente lida com o infortúnio à sua maneira; sendo a negação a forma escolhida por muitos. Acreditam, dentro dos seus fragmentos particulares de fantasia, que podem voltar a levar a mesma vida de antes, apesar dos cacos que restaram, e minha esposa é uma dessas.
Por um golpe do destino minha família e eu sobrevivemos. Nosso apartamento, grudado a um canto da periferia, resistiu ao parcial desmoronamento do edifício. Temos acesso ao térreo através da escadaria exposta como uma veia aberta. Ninguém sabe quem lançou o primeiro dardo da morte, mas quando as ogivas atômicas começaram a estilhaçar a calota azul do globo, não fazia mais sentido apontar um culpado único: a humanidade inteira pagava pela insensatez de alguns.
- Precisamos de água!
Foi o que disse minha esposa, na ordem que tentava colocar na cozinha, enquanto eu afundava nas minhas divagações sentado sobre o empoeirado sofá. Ela veio até a sala:
- Você precisa ligar para a Companhia de Água. Não suporto mais essas faltas constantes.
- Tudo bem, querida. Vou providenciar.
Felizmente consegui reunir alguns galões de outros apartamentos. Também tive sorte ao arrombar um depósito subterrâneo dos escombros de um mercado, podendo acumular algum alimento e bebidas, tento grande cuidado no transporte, furtando-me ao máximo de qualquer olhar. Tratei de ocultá-lo o melhor possível, mas acabou sendo descoberto por outros e a pilhagem logo deu cabo de tudo. No entanto, ainda teríamos o suficiente para beber e preparar uma repetitiva sopa com restos até que não tivéssemos mais como continuar.
Entrei no jogo da minha esposa, não tendo como despertá-la, para que não sofresse com a queda para dentro da amarga realidade. Não se encontrava solitária no seu asilo na loucura. Vi um homem, durante muitas manhãs e tardes, postado no que antes era um ponto de ônibus, aguardando um coletivo que não mais passaria, até que um dia não compareceu mais.
As ruas, gradativamente, vertidas em um tapete cinza, com os flocos que não terminavam de cair, ficavam completamente desertas, à medida que os últimos humanos desapareciam da face da terra. Sabia que o inverno nuclear se aproximava e, em breve, os poucos raios do sol que ainda teimavam em nos alcançar, estariam totalmente bloqueados. As noites arroxeadas se tornariam cada vez mais gélidas. Nosso completo apagar seria questão de dias.
Vi cães, convertidos nos novos predadores, avançando sobre corpos em decomposição. Aliviava-me por ainda haver corpos a serem devorados, pois, por hora, nos deixariam em paz. Ao buscar alimentos, ou algo que pudesse ser útil, andava na posse de um velho 38 que encontrei em um apartamento vizinho. Ainda conseguia levar para casa pacotes de macarrão ou de arroz, que retirava de moradas habitadas pelo abandono. Escavava em locais que abrigavam antigos comércios em busca do que poderia ser útil. E, enquanto me ocupava com os afazeres da sobrevivência, esquecia-me da dor que a radiação já provocava.
Meu corpo mudava, bem como o da minha esposa e filha na casa dos dezesseis. Os cabelos caíam, os dentes deixavam, um a um, o acolhedor abrigo da gengiva. Perdi algumas unhas. Não havia como tomar banho e a falta de higiene era outro elemento a nos acentuar a decadência. Por um tempo o que restou da defesa civil tentou organizar uma retirada da cidade, na tentativa de nos organizarmos nos campos, que foram menos atingidos, mas, com o correr dos dias, não havia mais ninguém para ser salvo. Minha esposa recusou-se a partir:
- Essa casa é minha e daqui somente vou sair morta. Não vou para lugar algum com ninguém, nem mesmo a passeio. – Vaticinou, pois tentei convencê-la de que era uma excursão. Busquei fazer com que minha filha fosse, para que talvez tivesse uma chance, mas preferiu ficar conosco. Não tive como obrigá-la. Não tinha ânimo para tanto. No íntimo, eu também não acreditava que teríamos melhor sorte em qualquer outro lugar.
Por alguns dias consegui sintonizar uma desesperada estação de rádio, até que veio a estática e, enfim, o silêncio, quando se esgotaram as baterias. Minha filha esbravejava, enquanto minha esposa, sentada no sofá assistindo a uma novela imaginária, ignorava o nosso estado de ser:
- Pai, o que será de mim? Veja como meu corpo se deteriora? Eu não tenho mais cabelos e restam somente alguns dentes. Não terei mais namorado, nem filhos, nem entrarei para a faculdade. O que será de mim, pai?
Fiquei mudo. Não sabia o que dizer. Levei a mão na cintura e senti o revólver. Meus olhos, cheios de lágrimas, decidiram que talvez fosse melhor utilizar a arma da melhor forma possível. Acabar com o sofrimento de ambas seria a solução mais piedosa. Um tiro em cada cabeça, terminando por mim mesmo, e todos estaríamos bem. Enquanto ela, diante da sacada sem vidro ou proteção, gritava para o mundo seu infortúnio, apontei com firmeza para a sua nuca.
- Pai, o que terei no futuro?
- Câncer. – Disse sem refletir, enquanto preparava o disparo. No entanto, a força da crueza daquela palavra atingiu-a mais duramente que a clava do pior inimigo. Abriu os braços e mergulhou no espaço. Segundos depois ouvi o baque do corpo beijando o solo ecoando em meus ouvidos. Ela estava livre e em paz. Minha mulher perguntou:
- Cadê a Jane?
- Saiu para pegar um ar. – Respondi, poupando-lhe o sofrimento.
- A novela hoje está boa. – Disse-me olhando para uma tela nua. Não tive coragem para eliminá-la. Sentei ao seu lado segurando-lhe a mão e deixando a arma de lado.
- Realmente, muito boa... – E ficamos ali, calmos e alheios, esperando a chegada do momento em que entraríamos para a eternidade...
(Texto criado para atender ao desafio da Comunidade Orkutiana ¨Contos Fantásticos¨. Tema: Mundo Pós-Apocalítico)