Saudade, Adultério, Amor e Pedacinhos de Você

Essa casa anda tão vazia! Só o Chico e o Bento rolando pra lá e pra cá, rasgando a cortina e me ignorando quando estão de barriga cheia. Pedi demissão lá do trabalho. Não conseguia mais trabalhar, passava o dia todo ou bebendo café ou dormindo no banheiro. Ou chorando pelos cantos. O pessoal começou a reclamar do meu cheiro também. Por que você não volta? Por que não pára de cretinice e volta? Ah é, não tem volta. Desculpa, mas não consigo acreditar. Quero que você saiba que esta é a terceira vez que tento escrever pra você. As palavras não vinham, mas eu tenho de colocá-las para fora, senão eu entro em derradeiro parafuso. Tem três dias que eu não tomo banho. É, qual a finalidade de me manter limpo por fora com a alma suja por dentro? Os gatos cismaram com o guarda-roupa. Ficam cheirando a porta e raspando com as unhas e miando feito loucos. O cheiro que sai de lá é meio podre mesmo. Mas essas garrafinhas de gim que eu comprei entopem meu nariz e não há problema. Tem três dias que eu não como quase nada e vomito metade do que como e cago a outra metade - digo, mijo pelo cu a outra metade. Só tenho bebido e lido coisas bizarras e sentido o desprezo dos felinos - menos quando eles estão com fome e vêm roçar nas minhas canelas sujas de sangue seco. Sabe, tenho saudades dos seus olhinhos puxados, do jeito que dormíamos e do jeito que você usava a mágica felativa. Tenho saudades de enfiar a lingua na sua bucetinha apertada e de torcer seus mamilos. E mais: daquele seu olhar terno, que dizia que me amava cinco segundos antes da sua voz assinalar a mensagem ocular. Espero que você me desculpe. Os gatos foram até o guarda-roupa novamente. Gostei do seu último sorriso - ficará guardado para sempre na minha mente. Só não me lembro onde ele está, agora. É o preço que se paga pela quantidade ingerida de bebida e maconha fumada; a falta de memória. Não me lembro se está no quintal ou lá naquele campo de coníferas que fazíamos nossos piqueniques dominicais. Ou se está no rio. Ai, caralho, não consigo me lembrar! Mas eu sinto saudades, essas paredes são opressoras e toda vez que olho para essas manchas vermelhas nela e para esse círculo vermelho no tapete me dá um arrependimento dos infernos. Eu não deveria ter te matado e parece que eu não tive outra escolha. Outra golada no gim, pra vida ficar menos insuportável. Tem três dias que eu bebo cachaça e urino pelo reto e os gatos me desprezam e esse sangue seco nas minhas pernas coça e o seu tronco lá dentro do guarda-roupa fede e deixa os gatos loucos por um teco seu. Bom, vou terminar essas linhas e ir pro nosso quarto. Ainda sinto sua presença lá. E sabe por quê? Porque guardei o seu coração na sua gaveta de calcinhas. É, coloquei num pote cheio de éter e deixei lá. Eu prometi, lembra?, quando te pedi em namoro, que faria o seu coração ser meu? Promessa é dívida. Eu cumpri a minha. E tive de matar você porque você não cumpriu a sua se declarando pro meu melhor amigo. Agora vou dormir. E o seu lado da cama está cada dia que passa mais frio e aterrorizante. Queria te exumar, mas não lembro onde joguei suas pernas e braços.Talvez um dia eu acorde louco! Amo você. Fica bem?

(Recomendo a leitura ao som de Misfits, com Dig Up Her Bones)

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 01/10/2010
Reeditado em 01/10/2010
Código do texto: T2530976
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