O vampiro e a cidade
Por Ramon Bacelar
Na solidão do espaço noturno, ruídos e lamentos solidificaram na escuridão: seu nome era Desejo, seu passado destruição, presente fome, futuro saciação.
Face pálida de olhos avermelhados atentaram para a realidade de sua condição: em cima o céu noturno o envolvendo como uma densa manta de piche, em baixo em contraste com a opacidade do piso de cimento, ferindo a escuridão como esculturas modernistas em alto relevo, o enfileirado brilho metálico dos caixões. Abrigos de metal como o seu, moradas permanentes para corpos e mortalidades silenciosas; e ele, imortal, desejoso, faminto, alimenta as retinas com a monotonia monocromática de lápides, postes e inscrições. De pescoço ereto, como um periscópio robótico, vasculha o cenário à caça do objetivo: à sua frente, abaixo da placa metálica com a inscrição Cemitério Santa Luzia, o portão de saída escancarava suas barras em direção a liberdade.
***
O ruído áspero das dobradiças enferrujadas castigadas pelo vento úmido, penetrou em seus tímpanos como um chamado noturno, um alerta de cautela e saciação. A fome pulsava inclemente, o pressionando, enfraquecendo-o como uma sólida ameaça externa, sutil e venenosa, penetrando na corrente sanguínea, modificando a estrutura do cérebro: fome possuindo a presa, presa a procura da vítima, vítima...
À sua frente, enfileirando o calçamento como velas esqueléticas de iluminação tímida, postes colocavam timidamente em relevo o caos urbano ao seu redor: prostitutas cadavéricas de postura ereta e vontade forte, mendigos famintos alimentados por fogueiras raquíticas, bêbados patéticos desbravando garrafas pela última gota do líquido vital, crianças perdidas, ecos rebeldes, neons cegantes, desejos pulsantes. Ao seu lado, como dinossauros metálicos no ato do ataque, arranha céus de arquiteturas vertiginosas e janelas atentas inquietavam o cenário com estridências de famílias desajustadas, traições descortinadas, segredos violados, encontros desencontrados.
A cidade o envolvia com o magnetismo de uma poesia encantatória, um feitiço hipnótico que aguçava seus sentidos e solidificava seu objetivo. Com passos lentos e olhar inquisidor, penetrava a escuridão à caça de sua presa que saciaria seu desejo, transmutaria sua fome em vítima, e ele em vencedor.
Misturado a cacofonia sonora de ecos e estridências de pesadelos urbanos, um novo som se fez presente no mesmo instante que um cobertor negro o envolveu o cegando momentaneamente : acima de sua cabeça um veículo metálico de formas arrojadas desbravava o éter com uma estridência áspera semelhante a turbinas de aviões e abaixo, fincado na calçada, um mostrador digital anunciava:
SÃO PAULO
00:59:34
10 GRAUS
20 DE AGOSTO DE 2300
***
Duzentos e noventa anos adormecido, presa da fome, fantoche do esquecimento e escuridão, agora despertado para caças e descobertas em um mundo que ele desconhecia e não pertencia. Sentiu a fome intensificar, o objetivo pulsar, apertou o passo e cruzou a avenida em direção a uma aglomeração de prostitutas e desocupados ao redor de uma fogueira. Olhares ocos emoldurados por aparências comatosas retribuíram o mesmo vazio e insubstancialidade; movimentos mecânicos e impessoais tentavam em vão solidificar algum resquício de humanidade; olhou-os de frente à procura de algo que sinalizasse a existência do líquido vital, mas o que retornou foram ausências: molduras vazias carentes do espírito da vida, cascas de carne sonambúlicas de aparência sintética e textura rugosa , compostas de irrealidade e vapor.
Tentou se aproximar, mas o cerco promovido por olhares penetrantes e inquisidores enfraqueceu seu objetivo e o obrigou a alimentar seu desejo em outro lugar: a fome pulsava.
***
Viadutos putrefatos estendidos como víboras petrificadas, túneis abandonados de gargantas saciadas regurgitando gemidos e escuridões, metrôs enferrujados carentes de vontade própria aguardando o retorno da fagulha vital, por todos os lados a cidade transmutada o possuía e o mesmo vento que inquietava outdoors e cobertores, por algum motivo, não o incomodava: impulsionava. O vampiro prosseguia em sua busca por conhecimento e saciação, desbravando avenidas, penetrando em bares e bordéis, examinando praças e ruelas, mas por todos os lados existências ocas o intimidavam com olhares que pareciam “penetrar”e violar o enganadoramente inviolável: no lado direito do peito, como um segundo coração, o Desejo pulsava e revelava as retinas sua verdadeira identidade: o segredo que não era segredo.
Corria e fugia dos olhares reveladores. Ele, no passado arauto de poder e destruição, agora paranóica caricatura dominada pelo desejo, enfraquecida pela fome; antes a personificação da maldade, agora a encarnação da fraqueza e covardia ...fugia...fugia...fugia...
***
Continuou correndo, fugindo, mas não esquecia, sabia que cedo ou tarde teria que vencer o medo, aniquilar sua fome, alimentar o desejo.
Penetrou em uma seção parcamente iluminada, olhou para os lados e notou que adentrara um beco cuja débil iluminação provinha da lua-cor-de-sebo; à sua esquerda, vasculhando um lixão no fundo de um restaurante, uma mendiga solitária despertada pelo som dos seus passos sentiu a aproximação do invasor, encarou-o e... em sua retribuição...: os mesmo olhos, o mesmo olhar e ele, com a fome o consumindo como uma piranha enfurecida, suspirou, venceu o medo e ela...
-Um v...
No choque do reconhecimento e agonia de socorro, a maltrapilha disparou em retirada proferindo aos quatro ventos sua identidade e ele, parcialmente alimentado pelo medo que a consumia, com energia renovada, correu em direção à sua presa.
Gritos de socorro e revelação costuravam a noite e retornavam como ecos caquéticos, pálidas reencarnações de sua breve existência noturna. Ela corria, gritava e ele, ria, gargalhava... aproximava: a coragem retornava.
A poucos metros de sua saciação, viu a mendiga dissolver em uma manta de escuridão que descortinava ao seu lado, mas guiado pelos ecos das estridências lamentosas, sabia que estava próximo da sua presa; penetrou no breu e foi à caça guiado pelos gritos.
O abrandar do vento e a intensificação dos ecos o fez crer que se encontrava em um espaço imenso hermeticamente fechado. À medida que avançava sentiu o ar escassear como se estivesse adentrando uma remota seção de uma mina, enquanto os gritos perfuravam seus tímpanos como mutações sonoras distorcidas por alguma arquitetura excêntrica.
Sentiu ecos e estridências de socorro o cercarem, sabia que estava próximo da presa mas a solidificação da incerteza gerada pela indefinição da escuridão o fez se sentir como um barco desgovernado guiado por uma bússola cega.
***
Continuou seguindo as estridências, desbravando o indefinido, sentiu o medo e o senso de ameaça da pedinte agindo em sua corrente como um fluido lubrificante para sua coragem. Quanto mais penetrava a escuridão, como um contraponto a solidificação de sua coragem, mais lhe dominava um inexplicável enfraquecimento físico; sentiu uma súbita intensificação sudorífica, um aceleramento cardíaco no mesmo instante que uma luz cegante invadiu sua retinas: à sua frente, iluminada por uma luminosidade diagonal, uma imensa cruz de face cadavérica o encarava em um delírio de tormento e agonia, ao seu lado, a fonte luminosa definia no confessionário dois olhos e uma cavidade labial paralisados pelo medo. Num impulso involuntário se jogou no confessionário e caiu agarrado a pedinte com os dentes mirados no pescoço: num delírio de fome e saciação penetrou as mandíbulas, mas sentiu abaixo da pele em contato com a língua uma textura lisa de toque frio, virou o pescoço e percebeu que ao seu redor quatro andróides de olhares penetrantes, munidos de batinas e crucifixos de alho, afiavam mecanicamente quatro cruzes de madeira.
FIM