O senhor da morte

O vento frio corria por minha face suja. Vagava sozinho pela noite, que poderia ser muito bela, não fosse a tormenta que estava por vir. Não me fugia a cabeça a imagem daquele velho passando num Rolls Royce. Andava devagar, e apenas me observava.

O vento gelado, que agora soprava mais forte, fazia esvoaçar minha capa. O frio fazia tornar-me pálido, e naquela noite a cidade parecia ter morrido. As primeiras gotas de chuva começavam a cair sobre meus longos cabelos e barba por fazer, piorando assim o intenso frio.

Agora corria, a procura de um lugar onde pudesse abrigar-me. Corria, mas aquela avenida parecia não ter mais fim. Durante toda a rua, não havia encontrado sinal algum de vida naquela cidade. Talvez pelo fato de estar chovendo e fazer um frio dos diabos. Caminhava há algumas dezenas de minutos, apenas sentindo a chuva caindo como agulhas em minhas costas, o que me fez desistir de encontrar um lugar onde abrigar-me. Deitei-me recolhido no chão, para que o toldo daquele bar pudesse me proteger da chuva. Bem ao meu lado, uma placa dizia: “Viva o lado Coca-Cola da vida!”

Que ironia! Será que esse é um momento Coca-Cola?

Algumas gotas que escorriam do toldo e batiam no chão, respingavam em minha face agora muito branca. O frio estava insuportável, e eu me recolhia cada vez mais para tentar fugir das gotículas. Já estava todo molhado, e não havia como me trocar. Pelo rasgo que havia na luva direita do dedo indicador, via o mesmo ficando roxo. Tremia como um convulso. Encontrava-me quase em estado letárgico. Minha semi-consciência permitiu-me apenas ver em minha frente um belíssimo carro, um velho muito bem vestido saindo dele com luvas brancas (...); lembro-me também de estar dentro do carro envolto num cobertor.

Acordei meio zonzo, e sentia meu corpo todo doer. Estava numa cama grande e macia. Minhas vestes não eram as mesmas, e sim roupas de dormir que de tão agradáveis, quase não podia senti-las. A chuva continuava, e agora a via com certo tom sarcástico.

– Boa noite, senhor! – Disse o velho que me recolhera, que agora, pelo traje, pude perceber ser um mordomo.

– Quem é você?

– Troque-se e desça, pois o Lorde deseja vê-lo.

Depois de vestir o smoking e acertar a gravata borboleta, olhei-me no espelho e contemplei o quanto ficava bem com aquelas roupas. Descia as escadas, deslizando suavemente minhas mãos no corrimão dourado.

– Boa noite, senhor Howard! – Disse um homem que me recebia de pé ao lado da mesa.

– Como sabe meu nome? – Indaguei surpreso.

– Sei de muita coisa que não imagina. Sente-se, por favor.

Sentei-me.

– Quem é você? – Perguntei um pouco receoso.

– Sou Lorde Brahm. – Fez uma pausa – Ainda não se esqueceu daquela noite, não é mesmo?

– Do que está falando? – Perguntei já ofegante e com o coração disparado.

– Você sabe do que estou falando. Permita-me contar uma história, que lhe explicará muita coisa. – Fez uma pausa e ajeitou a gravata. – Sou o Lorde Brahm, mas também sou o senhor da morte. Aquela noite foi toda arquitetada por mim. Não me leve a mal, mas tinha de ser assim. Você tinha sido escolhido, e para isso, precisava desvencilhar-te de tudo. E consegui.

Engoli seco.

– Você não deve estar entendendo muita coisa. Mas isso é normal. Vou lhe explicar algumas coisas. Eu sou o que chamam de “morte”, apesar de não vestir uma túnica e portar uma foice. Eu sou o responsável por livrar as almas das pessoas de seu corpo frágil, e libertá-las para um mundo muito maior.

– Você só pode estar brincando!

– Não. Infelizmente não estou. Alguém tem de fazer este trabalho sujo.

– E o que queres de mim?

– Como lhe disse, você foi o escolhido. Você ainda pode recusar, mas você foi escolhido por mim, e o que se tornei sua vida, não há como desfazer.

– Por que fez isso? – Dizia já com os olhos transbordando e queimando de raiva.

– Tinha de ser assim. Você não é o primeiro a me odiar. Eu sou a morte, a mais odiada e indesejada por todo e qualquer mortal.

Dizendo isso fez uma pausa, que me parecia ser para que as palavras fizessem algum sentido em minha cabeça desnorteada. Ele parecia saber o que eu sentia e pensava.

– Naquela noite, eu fui você, se assim pode se dizer. Eu tenho poder sobre as pessoas na hora da morte. Eu as controlo e faço delas minhas marionetes. E foi isso que fiz de você, uma mera marionete. Te fiz beber tudo aquilo que pensas que bebeu apenas por fraqueza. – Fez uma pequena pausa. – Nem sempre a vida é justa, meu caro. Sua esposa, com tanto amor ainda para lhe dar, e também o seu filho; admito que senti piedade, apesar de isso praticamente não existir em meu vocabulário.

– Seu maldito! Por que justo a mim? – Gritei em prantos, com a voz embargada e a garganta seca. – Por quê eles? – Minha voz quase não saíra.

– Admito que você não era exatamente o que eu precisava, mas era muito competente e determinado, e com alguma lapidação, tornou-se frio e impiedoso.

– Eu não sou a pessoa certa!

– Sim, é. Sei de você mais do que você mesmo, eu te transformei no que és. Eu fiz a vida castigar-lhe. Eu fiz com que todo esse sofrimento fosse se afogando no álcool, e tornando-se ódio. Você agora é uma pessoa odiosa, embora não tenha pleno conhecimento de toda a amargura que há em seu coração.

– Eu não sou essa pessoa.

– Você é quem eu quis que você fosse. E você será também meu sucessor. Você será o senhor da morte.

– Não, eu não serei, seu porco maldito! Eu não vou levar às pessoas o mesmo sofrimento que você trouxe a mim.

– Vai sim. Afinal, o que tem a perder? Não banque o santo agora. Eu sei de tudo que fez após o acidente.

– Eu perdi tudo. O que mais eu poderia fazer além de roubar?

– Mas você nunca se arrependeu do que fez.

Eu não tive palavras.

– Nem quando matou.

– Eu não tive escolha. – Disse num sussurro lamurioso.

– Sua vida pode melhorar, meu caro. Eu sou como um deus, eu sou a morte, e todos temem a mim. Imagine poder dar as cartas, poder decidir o jogo, controlar a vida e a morte. Imagine poder ter tudo, e ser tudo.

– Eu não posso!

– Sim, pode! – Disse o homem num tom mais alto, apesar de não gritar e jamais perder a serenidade e confiança em sua voz. – Você agora pode tudo. Só precisa me dizer que sim. Pense no poder. Pense no dinheiro, bebidas, mulheres e tudo que você poderá ter, ao invés dessa vida mesquinha de comedor de lixo e bebedor de vodca barata.

Ele me olhava nos olhos esperando a minha resposta; resposta essa que minha boca não conseguia proferir.

– Eu conheço todos os seus medos e anseios, mas conheço também toda a sua ganância.

– Eu aceito. – Minha voz quase não saíra.

– Era tudo que eu precisava. – Disse o homem com um sorriso de satisfação.

Sentei-me a mesa e comi como nunca antes, bebi um vinho tão bom que nem na melhor época de minha vida tive condições de comprar. – Acho que não vai ser difícil me acostumar com essa vida. – Pensei rapidamente.

Abri os olhos ainda meio desnorteado, não me lembrava de nada que havia acontecido depois do vinho. Levantei-me, dessa vez de uma cama imensamente mais bonita que a anterior, minhas vestes eram ainda mais elegantes que o smoking que usara antes de...

Não sei o que aconteceu comigo, mas algo mudou. Pus-me frente ao espelho e tive uma surpresa que me fez ofegar. Minha barba estava feita, meu nariz estava um pouco mais inclinado, minha boca era muito mais vermelha que outrora e meus olhos agora são claros. Eu havia mudado, meu rosto havia mudado. Não era uma mudança muito drástica, mas era o suficiente para me tornar muito mais belo. Agora eu me sentia belo. Belo e forte. Sentia dentro de mim um poder que jamais senti antes. Acho que assim que os deuses se sentem.

Minhas tarefas eram relativamente fáceis. As vezes apenas ceifar o resto de vida de um doente terminal, outras vezes promover assassinatos e os meus preferidos, os acidentes de carro.

Estou me tornando a pior espécie de ser humano do mundo, se é que eu podia ser considerado um ser humano. Mas estava gostando disso. Adoro a vida de ser o Senhor da Morte, adoro o vinho e toda a luxúria que o dinheiro pode me dar.

Agora chegou a hora de trabalhar. Preciso fazer uma certa visita. Será uma tarefa fácil. O mortal está sozinho, distraído, e eu simplesmente lhe sugarei a vida. Me aproximo lentamente da cadeira, e sussurro perto de sua nuca:

– Não olhe para trás.

Derek Mendonça
Enviado por Derek Mendonça em 24/09/2010
Código do texto: T2518200
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