Caminhada Noturna

Caminhada Noturna:

por Giomar Rodrigues

“Quando todos esquecerem daqueles que partiram, eles retornarão.”

Naquela noite de sexta-feira, não passado muito da meia-noite, as ruas estavam desertas com exceção de um figura franzina, que caminhava rapidamente pelas escuras passarelas de uma cidade no interior da Itália, embora as passadas fossem constantes, não havia sons em seus passos rítmicos, era como se possuísse uma característica digna apenas dos felinos, essa pessoa tinha um nome, chamava-se Stevenson Parkkua, um dos últimos descendentes de uma tribo nativo americana considerada hoje já totalmente extinta. Mas o jovem não havia perdido a hora por estar tão tarde na rua, nem era um ladrão, vagabundo ou tampouco um indigente, muito pelo contrário era um sujeito trabalhador e decente, uma pessoa muito culta, apenas não tivera muitas oportunidades na vida, mas foi justamente seu respeito pela cultura que lhe motivava em sua misteriosa jornada atual.

Sua vida deu uma virada brusca no dia anterior, quando leu em seu jornal favorito, o Itallion Gazetti, que no sábado haveria uma exposição especial sobre utensílios utilizados na antiga prática da necromancia indígena Trocuah, que a principio lhe deixou muito contente, mas algo alterou totalmente sua feição serena quando olhando atentamente a foto do museu em preto e branco, pôde notar, para seu assombro, que nela havia algo preocupante. Tratava-se de um antigo amuleto, que segundo as velhas historias ouvidas ainda pequeno no pé de uma confortável lareira, sempre narradas por seu avô, diziam ser capazes de ressuscitar os mortos ou matar os vivos, era sem dúvida um objeto muito mais perigoso do que muitos simplesmente poderiam imaginar. Durante o intervalo de tempo entre esse momento e o atual, sua mente foi mergulhada em pensamentos dos mais horríveis possíveis, não houve um segundo sequer de paz em seus pensamentos até que sua decisão fosse tomada. Ele havia, mesmo que contra tudo que acreditasse, roubar na noite seguinte o maligno amuleto à meia-noite.

Agora como um verdadeiro ladrão na noite,encontrava-se nos fundos do museu, mais cansado do que inicialmente presumira estar. Tinha em mãos um enferrujado pé-de-cabra, que trouxera tão oculto dentro de sua camiseta que não notara sequer o peso ou o desconforto do objeto. E usando do mesmo para quebrar as grossas correntes e cadeado da porta, adentrou o interior do museu com uma facilidade assombrosa, pois não haviam muitos crimes naquela cidade e os itens do museu geralmente tinham um valor apenas sentimental. Precisou dar apenas alguns passos para avistar logo à sua direita um grande cartaz anunciando o evento. E entre os adereços encontrados estava o estranho amuleto que reluzia a luz escarlate de sua pedra com a luminosidade artificial de sua pequena lanterna. Segurando o amuleto, agora já em outro setor do museu sentiu a necessidade de contemplar novamente sua tão singular beleza maléfica, e retirando qualquer pensamento de sua mente, fitou o amuleto como um coelho petrificado, observando que em seu interior parecia existir a essência da própria vida, mesmo que retratada nas escarlates chamas infernais da jóia.

E foi nestes momentos de reflexão que deixou de zelar pela própria segurança e deixou cair sua lanterna, mesmo que isso não tenha lhe perturbado. Mas uma voz vinda dos confins da escuridão, conseguiu acordá-lo. Ela assim disse:

Quem está aí? Eu sugiro que se entregue, pois estou armado! - era um guarda noturno que fazia a vigia.

Merda! - sussurrou Stevenson antes de começar a correr com o amuleto ainda em mãos.

Eu avisei desgraçado! - gritou o vigia disparando um tiro no jovem fugitivo. A bala acertou em cheio Stevenson, que antes de ir de encontro ao chão atravessou uma grande cúpula de vidro que guardava um reluzente sarcófago, fazendo com que o amuleto fosse parar em seu interior graças a um único orifício presente.

Em seus últimos segundos de vida, usando as únicas forças restantes em seus lábios sussurrou algo que seu avô lhe tinha dito há muito tempo, e só agora lembrara-se.

- … uma morte por outra, traz a vida de maneira dolorosa... - Essas foram suas últimas palavras antes de ir de encontro com seus ancestrais.

E o silêncio permaneceu no museu como se agora fosse parte dele, até o vigia decidir chamar a polícia para tomar conta do ladrão ou do que restara dele. E enquanto esperava inquieto pela chegada das autoridades na entrada principal, deixou de notar algo importante, era um som que nesse momento vinha do interior da sala, era um som mínimo e estranho, parecia algo sendo sutilmente arrastado pelo chão, como um papel ou pano bem leve.

- Mas que droga, por que tanta demora? Devem estar se entupindo de rosquinhas... - murmurava o vigia na entrada do museu, recheando seus ouvidos com suas asneiras murmuradas aos quatro ventos, não percebendo a disforme figura que se aproximava pelo obscuro interior do corredor principal até ser demasiadamente tarde. Quando mãos pútridas cercavam seu pescoço com dedos que tinham mais força do que poderia aparentarem possuir. Sua garganta foi pressionada com tamanha rapidez que sua traqueia foi esmagada de imediato, e no sufocado lamento do homem ele viu, no único olho da criatura que talvez a milênios já fora humano, a mais pura maldade e emergindo em seus lábios secos, um trêmulo sorriso de vingança antes de tocar o piso gelado com o pescoço quebrado.

A criatura agora andava vagarosamente pelas ruas silenciosas da cidade na escuridão da noite sob o olhar secreto da lua cheia. E durante um longo tempo ela apenas busca qualquer vítima para aplacar seu infindável fúria vingativa desperta após milênios, e em seu fino pescoço jaz o sinistro amuleto. Enquanto caminhava silenciosamente na fria noite, aproximou-se do orgulhoso cemitério da cidade, o Golden Heaven e parou instantaneamente quando percebeu que fora notada por duas viaturas da polícia que se avolumavam cada vez mais ao seu olhar cansado. Não demorou para que os policiais notassem a estranha figura que estava estagnada nos portões do cemitério na tentativa de abri-los.

Parado aí mesmo seu maluco, esta pensando que hoje é dia das bruxas para sair pelas ruas fantasiado? - Gritou um dos policiais se aproximando pelas costas da velha múmia que aparentemente não lhe deu atenção.

É melhor responder quando eu perguntar algo, seu miserável! - disse o mesmo policial tocando o ombro da criatura, visivelmente mais furioso, enquanto ela conseguia abrir os portões entortando-os.

Mas que porra, o que pensa que esta fazendo homem? - Gritou outro policial se jogando na frente da múmia, que também não lhe dava atenção.

Mas no momento que o oficial ficou entre a múmia e seu destino, ela alterou sua decrépita feição desinteressada para uma face onde residia todo o ódio aprisionado naquele maldito sarcófago para em seguida atacar a mordidas o policial, que teve uma tira de carne arrancada de seu pescoço e tentava conter a hemorragia com as mãos banhadas no próprio sangue que tornava seu uniforme cada vez menos azul. Os seus colegas policiais começaram a atirar em seguida contra a carnívora besta milenar, que parecia não sentir os tiros disparados e somente parecia estar sendo atrasada. Mas suas balas terminaram muito antes do esperado e viram que talvez estivessem na presença de seu algoz, em seus agonizantes últimos momentos. O mais velho dos policiais entrou na viatura e fugiu em disparada congelado de medo com uma gargalhada sinistra nos lábios dominado pela loucura dos acontecimentos, enquanto que o policial ainda bem moço, permaneceu no lugar com um pequeno cassetete em mãos, demonstrando toda a coragem que lhe restara. Mesmo assim não foi suficiente para que não fosse despedaçado brutalmente pelo 'demônio egípcio'.

Agora novamente sobre o olhar da lua, a múmia ferida e desorientada, tenta retornar para os portões do cemitério, enquanto observa o brilho escarlate da jóia que reflete a fúria cega de seu único olho. Em seguida arranca-a do amuleto e a deposita em sua vazia órbita ocular, e com os braços estendidos para os céus recita uma canção rítmica, aparentemente sem sentido e esquecida pela humanidade a séculos, porém começa a cavar na terra seca do cemitério um pequeno buraco, onde deposita a pedra escarlate e cobrindo-a com a mesma terra, desenha alguns hieróglifos em cima. Segundos depois se aconchega em uma lápide próxima e permanece totalmente paralisado como se a vida deixasse seu corpo e por um minuto, som algum foi ouvido naquele local, até que de súbito a terra tremeu e os mortos acordaram. Naquela noite, Golden Heaven demonstrou ser um lúgubre jardim onde mãos apodrecidas brotavam do solo como rosas negras, que levantavam da terra para trazer do mundo dos mortos a única coisa que eles tem a oferecer, a morte para todos. FIM

Giomar Rodrigues
Enviado por Giomar Rodrigues em 20/09/2010
Reeditado em 28/09/2010
Código do texto: T2509601
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