Sacrifício
Sacrifício.
Havia pouco mais de 3 meses que Maria estudava na nova escola. Seus pais tiveram que mudar de cidade e ela abandonou as aulas no meio do ano.
Diferentemente do que imaginava, não foi difícil a adaptação, os novos colegas gostaram dela de imediato e vindo de uma cidade muito maior, tinha prestígios de bem informada e entrosada. Logo os pequenos trejeitos que tinha e seus sotaques, ao invés de atrair o ridículo dos colegas, eram elogiados e imitados, sendo aceita como líder natural da sua turma.
Maria realmente não era uma menina comum. O que as pessoas mais gostavam nela era que sempre sorria e tinha confiança em tudo que fazia. Quando perguntavam algo que desconhecia, ela imediatamente elogiava a pergunta, e logo esqueciam da resposta e mudavam de assunto. Muito política, sabia dosar suas ações e quando tinha que escolher entre duas coisas distintas, sempre dizia que a escolha não vinha do demérito de uma, apenas o acaso da situação ou a sorte da outra.
Mas, como em tudo na vida, definitivamente não se pode agradar a todos, e Maria possuía uma forte opositora, outra estudante de sua classe, Antonia.
Antonia era o total oposto de Maria, introvertida e dissimulada, guardava rancores e costumava falar mal de alguém sempre que podia. Freqüentemente espalhava boatos e não cansava de perseguir com difamações as pessoas de que não gostava.
Dificilmente alguém que essas ações provinham de Antonia e a ela não eram creditados as injustiças que fazia.
Foi numa manhã de agosto, pouco antes do início da aula, que cruzaram o caminho uma da outra.
Maria vinha na companhia de duas amigas, rindo e brincando, com seus livros e uma bolsa pendura ao lado.
– Quando foi que o professor falou que teria prova? – disse Carla sorrindo. – Não era hoje Clarisse?
- Ah, pode ser! Pelo menos eu estudei, você não estudou Maria? – falou piscando para Carla.
- Eu sei que não é hoje, não adianta tentar me assustar, eu anoto tudo o que diz o professor. E, além disso, a matéria não é difícil, mesmo que houvesse uma prova, acho que me sairia bem.
Continuaram caminhando distraidamente, sem perceber que Antonia vinha logo atrás, muito perto.
- Sabem, tenho quase certeza que Antonia vai ser expulsa.
Maria disse isso de uma maneira tão corriqueira que as outras amigas não perceberam se ela estava brincando ou não.
- É mesmo, por quê?
- Parece que ela espalhou um boato sobre o diretor e ele descobriu. Algo a ver com o carro novo dele. Não sei ao certo, alguma coisa sobre desvio de verba. Sei lá.
- Ah, mas eu não acredito. – disse Carla. – Tenho certeza que deve ser mais uma mentira dela!
- Como assim mais uma mentira? – Clarisse agora via que não era mais uma brincadeira das amigas, e olhava para as duas muito interessadas.
- Lembra daquela aluna, Joana Brints. Estudava na outra turma. Ela abandonou a escola por que havia engravidado?
- Foi antes de eu vir pra ca? – perguntou Maria.
- Quase um anos antes. Dizem que quem espalhou os boatos foi a Antonia.
- Mas pra que? O que ela ganha com isso?
- Não sei, mas a Joana não estava grávida e quem tinha “escutado” a história foi a Antonia.
Continuaram assim por mais um tempo ainda, sem perceber que Antonia escutava tudo, com uma calma maligna e um olhar assustador. Quando as garotas viraram a esquina, ela continuou e atravessou a rua, sem olhar para elas.
Antonia chegou atrasada na aula. Sentou-se em seu lugar e ninguém mais prestou atenção nela, como acontecia na maioria dos dias.
- Quem aqui sabe quantos anos tem a nossa cidade? – Perguntou o professor de biologia, querendo introduzir o assunto da vida marinha, pois a cidade tinha um pequeno porto, e antigamente era um vila de pescadores.
- Tem mais de 200 anos! – disse um dos alunos mais interessados.
- Isso. A nossa pequena cidade é uma das mais antigas do nosso estado, tem precisamente 237 anos. E alguém sabe como ela surgiu?
- Uma maldição que não deu certo.
Todos na sala tiveram um choque, não apenas pela declaração, mas por que foi Antonia quem a fez. Sabiam que Antonia geralmente não se manifestava nas aulas, e tambem que a avó era uma índia.
- Que bobagem é essa de maldição? A nossa cidade foi fundada por pescadores! Os índios já não viviam aqui, tinham ido para o leste por causa do inverno rigoroso que havia, voltando muito depois que os colonizadores já estavam aqui.
- Foi uma maldição que trouxe o frio, e não o inverno. Foi Xulcta M’hai, a bruxa branca do rio, invocada para espantar os invasores. Todos os índios sabem disso. Ela foi invocada por 3 velhas índias, para expulsar os barcos dos homens brancos quando eles começaram a vir do sul através do rio e destruir todas as tribos que havia.
- No momento que a invocação estava quase completa, uma das velhas caiu na água e agitou as ondas da superfície espelhada, por onde a bruxa entraria e depois sairia desse mundo. A velha começou a ressecar, mesmo dentro do rio. Toda a água que havia em seu corpo começou a desaparecer, a pele começou a repuxar mais e mais, até os olhos entrarem no crânio e com as próprias unhas a velha tentava trazer a água de volta. Era o castigo por ter invocado o espírito dos mortos sem uma oferenda. A bruxa branca tomou para si toda a água que havia naquele corpo velho e ressequido.
- Desde aquele momento, os índios não conseguiram mais entrar na água, pois eventualmente, alguns não voltavam mais. Quando muitas gerações depois, os índios tiveram que voltar, não se instalaram mais perto do rio, ficando perto dos morros e da floresta que havia. Pois nunca, até hoje, uma oferenda digna foi oferecida para a bruxa branca, e ela ainda pega o que lhe acha justo por sua vinda para esse mundo.
Claro que enquanto Antonia contava a história, muitas risadas foram ouvidas, mas, mesmo os mais céticos, ficaram com as palavras gravadas em suas mentes, e alguns com medo em seus corações. Entre eles, a mais abalada parecia ser Maria, que não gostava de histórias de terror, e morava a algumas quadras do antigo porto.
Na saída da aula, como sempre acontecia, as três amigas voltaram juntas para casa. Primeiro Carla, cuja casa ficava mais perto, se despediu das amigas e entrou, depois foi a vez de Clarisse, que morava um pouco mais para o leste, distante da direção da casa de Maria, se despedir e entrar em casa, finalmente Maria seguia sozinha para o rio, passando pela vila dos pescadores, que tinha a maioria das casas abandonadas.
Não era noite e ainda não estava escuro, mas também não havia sol e o vento não trazia conforto aos pensamentos que alguém tão jovem e suscetível criava. A cada passo que dava em direção ao rio, Maria não deixava de olhar para os lados, pensando na maldição da bruxa branca, e imagens de uma velha sendo ressecada dentro da água sempre estavam no seu pensamento agora.
Havia muitos animais domésticos, que eram abandonados pelos donos nos arredores da vila. Não era incomum encontrar gatos magros e cachorros machucados andando pelas ruas e entrando nas casas abertas. Mas agora parecia que nunca antes havia tantos animais e Maria começava a ficar nervosa com o barulho que faziam. Ficou muito alarmada quando ouviu um som metálico e forte que vinha de uma das casas, e ao olhar, viu vários animais saírem correndo dali. Começou a caminhar mais depressa, olhando agora para todos os lados quase entrando em pânico. Estacou quase completamente, quando, diante dela, vários cachorros comiam com voracidade alguma coisa no chão.
Maria não sabia o que era, mas o chão estava todo vermelho.
Transtornada, e sem querer passar pelos animais, ela entrou pelo pátio de uma das casas, pensando em atravessá-las para chegar ao outro lado. Mas sempre que havia uma abertura para a esquerda, que era o caminho que precisava ir, encontrava mais animais devorando aquele chão vermelho, e não se atrevia a seguir aquele caminho.
Foi seguindo assim, correndo, assustada e desnorteada, que chegou a um pequeno casebre que havia servido de casa para barcos. O casebre ficava ao lado do rio.
Não sabia onde estava, nem em que altura do rio ficava aquela casa. Quando pensou em voltar, viu assombrada que logo atrás dela havia uma figura envolta em tecidos brancos e molhados, com os cabelos negros na frente do rosto e as mão estendidas na direção de Maria.
Por um momento Maria ficou parada, sem acreditar no que via. Não percebeu que a figura era Antonia, pois o medo já a preparava para o que estava acontecendo e reagiu instintivamente ao ver o fantasma da bruxa.
Maria gritou e começou a correr em direção da casa.
Estava transtornada, corria desesperada, sem se preocupar com o que faria quando chegasse lá. Queria ficar o mais longe possível da bruxa. Quando passou pela porta da casa, e seu lado racional começava a ponderar o que faria a seguir, ela tropeçou em um fio que fora colocado na entrada por Antonia, caiu no chão, bateu a cabeça e desmaiou.
Quando acordou estava presa pelas mãos e pés, seu corpo muito próximo da abertura para barcos que havia no chão, onde os barcos entravam no rio.
Ouvia murmúrios baixos e escutava passos em sua direção. Começou a gritar quando viu a figura de branco segurando uma faca e se aproximando dela.
- Com esse sacrifício, eu te acalmo Xulcta M’hai, o espírito do rio. Te liberto desse mundo e das obrigações que tinha para com os vivos! Com esse sacrifício de sangue eu te liberto! TE LIBERTO!
Maria se debatia e gritava muito, e quando Antonia chegou perto, ela se atirou para frente e acabou abrindo um corte muito fundo em seu braço.
Aos poucos, uma mancha começou a se formar na manga de sua camisa, e com os braços estendidos como estavam, o sangue começou a escorrer para o rio.
Os gritos de Maria haviam parado, Antonia recuara e percebia que tinha ido longe demais.
Tirou os lençois cortados que usava por cima da roupa e começou a gritar contra Maria.
- Sua idiota, porque você se mexia tanto! Não era para eu te cortar! A CULPA É SUA! Eu so queria te assustar. Acha que eu não sei que ficavam rindo de mim com suas amiguinhas idiotas? Acha que eu não sou esperta como vocês? EU ESCUTEI VOCÊS RINDO DE MIM! Eu preparei tudo isso antes de ir para a aula. Estava atrás de vocês, EU OUVI. Sempre falei a verdade! A Joana estava grávida sim, ela me contou. Saiu da escola por que os pais a obrigaram a fazer um aborto!
E eu nunca falei nada ao diretor, NUNCA. NÀO FOI EU QUE INVENTEI!
- Eu sei que não foi você, fui eu...
Maria agora havia levantado a cabeça, e olhava para Antonia sem nenhuma expressão. Aos poucos sua pele começou a ficar mais clara, e seus olhos começavam a ficar mais escuros.
- Eu venho observando você a muito tempo, Antonia. Na verdade, toda a sua família, mesmo antes de você nascer.
Ela começava a se levantar, lentamente, de uma maneira muito estranha.
- Realmente não é dificil fazer um corpo. Depois de tantos anos, com a prática, acaba-se conseguindo ótimos resultados. - Um leve traço de sorriso passou pelo rosto de Maria.
Antonia, estava travando uma luta interna muito intensa, seu racional dizia que havia machucado Maria, e ela agora queria se vingar, mas uma parte sua, herdade de sua avó, conhecia a lenda da bruxa, era real.
- Os índios são um povo muito forte e orgulhoso, mas felizmente, como todos os vivos, quando o tempo segue pelo seu curso, é normal que comecem a esquecer que o perigo sempre esteve perto.
Maria agora estava de pé, as cordas que a prendiam caíram no chão como se nunca tivessem a prendido realmente. Estava agora completamente pálida e seus olhos, antes azuis e seu cabelo castanho, estavam ambos negros.
- Você sabia que sua avó era neta de uma das velhas índias que me invocaram? Eu tentei usar a sua avó para me libertar, mas ela era muito mais forte do que você, e perdi a minha chance. Tive que esperar você nascer, por que apenas a cada terceira geração o sacrifício pode ser feito.
- Tentei usar a forca contra a sua avó, tentei obrigá-la. Aprendi a minha lição.
A pele de Maria começou a ressecar, de maneira muito lenta, apodrecia diante de Antonia, que agora tinha certeza que todas as lendas eram verdadeiras. Sua mente enlouquecia na mesma proporção que a bruxa gelada vinha em sua direção.
- Sabia que estava me seguindo hoje de manhã. Sabia que você se vingaria e usaria uma antiga lenda para me assustar. Mas o que você não sabia, era que tudo era real. Até mesmo as palavras que você usou, o sangue na água.
Desde que nasceu, eu lhe preparei para esse momento. Sussurrava em seus ouvidos desde criança, te fazia desejar coisas que não podia ter. Sentir inveja e medo. O medo de ficar sozinha e afastar a todos de você.
Antonia estava completamente paralisada, não conseguia se mexer. A bruxa branca estendeu a sua mão e tocou no seu rosto. Imediatamente a sua pele começou a ressecar.
- Esperei você crescer, desenvolver o que eu tinha plantado em seu coração. Você começou a ficar retraída e então nasceu o ódio. Sempre através do medo da solidão. Foi perfeito.
- VOCÊ me sacrificou. O corpo que eu criei, o sangue que eu roubei, exatamente como tinha que ser, como sua avó te ensinou.
- Eu sou um espírito muito antigo, e estou longe de casa a muito tempo... Mas eu não posso ir ainda, o ritual não está completo.
Agora a bruxa sussurrava no ouvido de Antonia, seu corpo ressecava, podia sentir os líquidos desaparecendo pouco a pouco.
- Um sacrifício não pode ser forçado. Deve ser uma entrega. Eu entreguei esse corpo a você. Com a minha permissão, derramou o meu sangue no rio.
A dor era insuportável. Antonia estava perdendo a razão, logo perderia os sentidos
- Posso fazer a dor parar... tudo o que tem a fazer e me oferecer o seu corpo para eu voltar pra casa. E entao farei a dor parar.
Antonia havia perdido a sua vontade, apenas a dor tinha ficado.
- Quer que eu faça a dor parar?
Foi como se tudo o que havia não significasse mais nada. So o que importava eram aquelas palavras e o que elas significavam. Todo o resto não importava, o preço seria pequeno.
- Sem dor, sem dor... eu aceito.
Agora a bruxa sorria abertamente, abriu sua boca e colocou-a sobre o que fora a boca de Antonia. Agora era apenas uma carcaça seca.
Aos poucos o corpo voltou a vida, muito mais espetacular do que jamais seria, sua pele branca como a neve e seus olhos e cabelos negros como a noite. Arrastando o seu antigo corpo, entrou nas águas profundas e geladas do rio, com as oferendas que precisava. Em suas mãos levava a carne e o sangue, em sua boca levava o espírito.
Sua passagem estava segura, e seus senhores não ficariam desapontados.