A porta

Eram cinco horas da madrugada de sábado. Jaire acordou se debatendo na cama, assustado após um pesadelo. Logo em seguida o telefone tocou na sala e ele, que se encontrava em seu quarto, deitado na cama e coberto até o pescoço, ficou apreensivo. Ele então, se levantou como se esperasse uma notícia ruim e foi até a sala atender.

- Alô?

- Alô. Jaire? Você está sozinho?

- Por enquanto estou.

- Posso te fazer uma visita? Estou vindo de muito longe – dizia a voz do outro lado -. Quando percebi que passava pela tua cidade, pensei que talvez você pudesse me oferecer um chá e aí nós poderíamos conversar um pouco. Como você está?

Jaire sentiu um calafrio. Falava com alguém já conhecido. Engoliu a saliva como se fosse uma pedra, hesitou um pouco, forçou um sorriso e respondeu.

- Claro que sim. Você é sempre bem vindo aqui em casa. Venha logo.

- Muito obrigado, Jaire. Você não vai se arrepender.

Desligou o telefone.

Jaire, preocupado, se pôs a caminhar pela sala como quem esperava a própria condenação. Neste momento uma buzina fina soou e uma voz gritou por seu nome no portão. Ao atender viu Carlos, um antigo amigo de trabalho e noitadas, encostado em sua motocicleta o esperando.

- Vamos, entre. Não fique aí parado – disse Jaire com uma voz meio trêmula. Você veio tão rápido que nem pude preparar alguma coisa.

Os dois então entraram e enquanto Carlos se alojou bem à vontade no sofá, Jaire foi à cozinha preparar o café. Quando ele voltou, colocou os petiscos na mesa de centro e sentou-se num outro sofá. Após um pequeno silêncio, Jaire puxou a conversa.

- E então, o que te traz por estas bandas?

- Ah, amigo. Já faz muito tempo que estou perdido, vagando por estas estradas... – disse Carlos com um sorriso um pouco irônico - E você? Como vai sua vida? Está comendo bem? Dormindo bem? Já fiquei sabendo do que aconteceu a Hick e a Oliver. Foi triste.

- É, colega. Foi triste mesmo. Eles não conseguiram agüentar por muito tempo, como eu estou agüentando... Você perguntou se eu durmo bem, pois vou te responder que ao contrário de pessoas que sofrem de insônia e dariam tudo para poder terem uma noite tranqüila de sono, eu faria qualquer coisa para não dormir. Ah, já faz um bom tempo que tento me acostumar com este tormento. Sempre preso nesta casa, eu até já esqueci como é o mundo lá fora. Afinal, todos os dias que acordo não sei diferenciar o que é real do que não é.

- Que coisa horrível Jaire. Como você é infeliz – disse Carlos -. Há quanto tempo você está assim?

- Esta é uma longa história...

- Conte-me. Afinal tenho todo o tempo do mundo.

Após Carlos dizer esta frase, Jaire o olhou seriamente e percebeu a certeza com que seu rosto se expressava e resolveu não contrariá-lo.

- Bom. Lembro de cada detalhe como se fosse hoje. Às vezes revivo tudo em um pesadelo – disse Jaire servindo o café. E então começou a narrar o princípio de sua maldição.

“Na minha juventude, por volta dos vinte anos, estava sempre com meus dois amigos a discutir e experimentar, quando possível, a veracidade de várias lendas e superstições contadas lá na nossa região. Morávamos no interior, numa cidade pequena. Por não ter muito que fazer, esta era uma de nossas diversões. Éramos todos incrédulos, racionais, e queríamos ter o que contar para as pessoas de nossa comunidade, muito supersticiosas por sinal, que havíamos enfrentado o perigo e nada nos tinha ocorrido.

"Para encurtar a história vamos direto ao caso.

"Um dia, participando de uma acalorada conversa com os colegas lá da minha rua, que por sinal tinham opiniões muito diferentes das minhas e dos meus amigos. Eles tinham sempre um caso sobrenatural para contar, casos que algumas vezes eles diziam ter participado. Na maior parte do tempo eu somente escutava, sem me meter. No fundo eu ficava pensando: ‘Mentira... mentira... Eu tenho certeza que é mentira’. Quando tinha oportunidade eu contava uma aventura minha e dos meus amigos, desmistificando algumas lendas. Na ocasião estava presente Lawrence, um garoto enérgico, cheio de certeza e que muitas das vezes não deixava ninguém falar, por ter muitas e muitas histórias para contar. Ele dava a entender ter uns duzentos primos e tios, de tantas aventuras vividas por seus parentes, desconhecidos de todos nós. Como disse, Lawrence não deixava ninguém falar e quando fiz um esforço para contar uma das minhas, ele veio com outra, que se tornaria o início de mais uma experiência para eu e meus amigos.

"A história era a seguinte. Na fazenda onde morava seu avô, como todas as fazendas do ciclo do café, existiam a casa grande e a senzala. Esta última, recentemente havia sido reformada e transformada em uma espécie de casa. Nesta residência, onde haviam morado por algum tempo alguns de seus tios e primos, acontecia coisas estranhas. Sempre que o Sol descia no oriente, quem ficasse sozinho em algum cômodo da casa, presenciava coisas fantásticas, como vozes, aparições, objetos elétricos ligando ou desligando sozinhos, etc.. O mistério estava aí. Por que estas coisas só aconteciam quando alguém ficava sozinho?

- Vocês não acreditam nestas coisas, não é? – Disse Lawrence, incomodado com minha cara de dúvida.

- Sinceramente. Estas histórias de fazenda mal assombrada, de escravos arrastando correntes... Isso já é manjado. Tem em qualquer fazenda que você for – respondi eu, e continuei dizendo -. E tem mais. Porque tudo acontecia só quando tinha alguém sozinho? É lógico que ninguém via nada e inventava uma história depois. Afinal, quem iria poder provar o contrário se não tinha testemunhas. Você parece estar vendo muitos filmes de terror.

- Então por que ninguém mais mora lá? – me perguntou Lawrence.

- Sei lá...

- Se quiserem, vocês que duvidam destas coisas, podem passar uma noite lá.

- Teu avô não ia se incomodar? – perguntei.

- Não. Lá é muito grande e como só tem ele e os empregados, ele já está acostumado a receber visitas de parentes e amigos.

- Vou ver – respondi analisando a agenda -. Tenho que falar então com os caras, para ver quem vai. Aí a gente combina.

- Então ta – finalizou Lawrence com satisfação.

"E a conversa entre o grupo continuou, tomando outros rumos noite afora.

"Sinceramente. Eu acho que todos os parentes de Lawrence são bons contadores de histórias. Gostam de ser o centro das atenções. Foi o que sempre achei, mas desta vez tinha uma surpresa preparada para eu e meus amigos.

"Quando tive oportunidade, comentei o caso com meu grupo. Eram eles Hick e Oliver. Com quem sempre tive mais contato era Oliver. Já Hick era mais caseiro e só saía se fosse chamá-lo. Marquei uma data que dava para todos irem. Foi no dia 3 de dezembro. Esta foi a data que comuniquei a Lawrence. No dia falamos para nossos pais que íamos a uma festa na fazenda do avô de Lawrence e partimos juntos. Estávamos numa daquelas semanas chuvosas. Fomos de carona em uma caminhonete, dirigida pelo pai de Lawrence, que viajava naquele dia para àquelas terras. Lawrence estava no banco do carona e nós três na caçamba. O carro ia devagar pela estrada de chão molhada. Depois de uns seis quilômetros de estrada, avistamos então o casarão principal da fazenda, onde morava o avô de Lawrence.

"Chegamos então. Fomos recebidos pelo avô de Lawrence, que parecia estar contente por ter visitas e nem um pouco preocupado com o que, ele sabia, pretendíamos de verdade. Eram quatro horas da tarde. Tomamos então um café com biscoitos na grande sala de estar, que nos foi servido por uma empregada, a mando da governanta, uma mulher gorda e carrancuda que nos observava da cozinha. Ela me parecia botar mais medo do que qualquer fantasma na fazenda.

- Vocês vão dormir no bangalô? – perguntou o velho senhor.

- Sim. Vamos – respondeu, de maneira simples, Oliver, sem querer discutir crenças com aquele homem já velho.

- É. Tem vezes que é preciso ver para crer – disse o velho após uma golada de café, com olhos de compreensão -. Vou mandar o Zé acompanhar vocês até lá, pra vocês irem se acomodando.

"Uma hora depois estava nosso grupo, Lawrence e Seu Zé, um homem negro, alto, tímido e de uns sessenta anos, caminhando por uma estrada de chão, uns com mochila outros com mala. Estávamos indo testar nosso destino.

"Chegamos então na tal residência que havia sido senzala e que agora parecia um belo repouso para hóspedes. A casa tinha uma base retangular de doze metros de largura por uns vinte e quatro de comprimento. Tinha a cor amarela por fora. Logo na fachada tinha uma varanda que ia de um lado a outro da largura da casa e por aproximadamente um metro e meio de seu comprimento. Entrava-se nesta varanda por uma pequena escada de quatro degraus que ficava no meio dela e na direção da porta principal. O teto da varanda era sustentado por quatro pilastras. Duas próximas dos corrimões da escada e outras duas nas pontas laterais. Estas pilastras eram ligadas uma a outra por um cercado de mais ou menos um metro de altura, que descia formando o corrimão. Nesta grade estava presa uma das pontas de uma rede de dormir, cuja outra ponta estava presa do lado da janela da sala. O quintal era de um capim raso e algumas árvores de fruta perto da lateral da casa.

"Entramos pela porta da frente. Eram cinco e meia da tarde e Seu Zé foi nos apresentar a casa por dentro a começar pela cozinha, que ficava no fim do corredor passando pelo centro da casa, ligando a porta da frente à porta dos fundos. Todos nós o acompanhamos, e ele foi dizendo:

- Esta é a cozinha. Tem tudo que vocês precisarem. Podem pegar – falou abrindo a despensa -. Se vocês olharem por esta janela verão uma pequena horta que eu venho cultivando.

"Olhamos pela janela da cozinha e vimos uma pequena horta como ela havia dito. Oliver perguntou:

- Você costuma então vir sempre aqui?

- Sim. É claro. Sou eu quem arruma esta casa. Sou eu quem limpo, trago o que é preciso e cuido para mantê-la.

- Você não tem medo? – perguntou Hick.

- Nenhum. Durante o dia este é um ótimo lugar. Quando é preciso, fico aqui até o Sol se por e vou embora.

- É mal assombrada a noite? – fui mais direto.

- Não acredito que sejam espíritos, sei que nesta casa os nossos sonhos se tornam reais.

- Se as pessoas têm tanto medo daqui, então por que continuar mantendo este local? – continuei interrogando Seu Zé.

"Com certeza este é um lugar bem especial – disse seu Zé com um brilho no olhar -. É aqui que o Porteiro solta a noite todos os demônios da escuridão, para então se alimentar do medo que eles causam em suas vítimas.

"Todos ficaram em silêncio com estas palavras. O que ele quis dizer com isto?

- Venham – disse ele -, vou lhes mostrar o resto da casa.

"Continuamos seguindo ele pelo corredor, no sentido da porta da frente. A primeira porta a esquerda era um enorme banheiro. Logo em frente à porta do banheiro, do lado esquerdo do corredor, ficava a porta de outro quarto, que estava aberta.

- Neste quarto vocês não podem ficar. É muito perigoso – nos disse Seu Zé.

"Era um quarto quadrado de mais ou menos cinco por cinco metros, iguais aos outros no tamanho. Porém, neste só havia uma cama de Solteiro perto da janela, que estava com alguns vidros quebrados, e uma comodazinha com um quadro em cima na parede oposta.

"Seguindo em frente, o próximo cômodo do lado esquerdo era uma sala com quatro sofás, dispostos em retângulo em torno de uma mesa de centro. Parecia uma sala de jogos ou reuniões. Do lado esquerdo desta sala tinha outro quarto.

- Este é o quarto das bonecas – disse Seu Zé.

"Demos só uma olhada rápida. Já estava escurecendo, por isso não deu para ver direito. Mais a frente, ficava por último, uma sala de estar com dois sofás formando um L e uma televisão no centro sobre um rack. Pela janela da sala podia-se ver a rede que ondulava ao vento na varanda. Do lado esquerdo desta sala, o lado dos quartos, havia o terceiro e último quarto a ser apresentado. Era um quarto simples, com duas janelas, uma com vista para a varanda e de frente para a cama de casal e a outra na parede esquerda de frente para a porta de entrada. Neste quarto também tinha um guarda roupas, entrando, a direita da porta. Ele estava mais iluminado, pela pouca luz que ainda vinha de fora.

- Vou ficar com este – disse Oliver, já entrando e colocando suas coisas.

"Para Hick tanto fazia. Poderia dormir na sala e foi ver televisão. Fui para o quarto das bonecas. Quando entrei já estava escuro. Eram umas seis horas da tarde. Somente as luzes das duas salas o do quarto de Oliver estavam acesas. Por isso entrei no quarto sem acender a luz. Dava para ver alguma coisa até meia entrada. Era o quarto do meio por isso só tinha uma janela de frente para a porta, uma cama de casal debaixo dela com dois criados-mudos nas laterais e um guarda-roupa, entrando, a direita da porta. Só ia colocar minha mochila em cima da cama, quando fui surpreendido por risadas de criança vindas de cima dela. Confesso que fui pego de surpresa. Senti um calafrio que retorna todas as vezes que me lembro. Meu coração acelerou, mas logo percebi que o som vinha de duas das várias bonecas que ficavam, algumas sobre o travesseiro e outras sobre o criado-mudo. Irritado, lancei mão sobre as duas bonecas e levei para colocar na sala, enquanto ainda riam. Disse então:

- Não quero dormir com estas porras aqui no meu quarto! Tomei o maior susto.

- Estas bonecas são assim mesmo – disse Lawrence rindo – elas riem com qualquer barulho que se faça.

- Puta que o pariu! Quase morri do coração.

"Todos riam de mim na hora. Seu Zé então tirou as pilhas das bonecas, que logo se calaram.

- Bom. Tenho que ir – disse Seu Zé se retirando -. Boa noite a todos e tenham bons sonhos.

- Eu também estou indo pessoal. Se precisarem de alguma coisa é só ligar lá para o casarão. Ali na mesa estão todos os números – disse Lawrence apontando para a mesa do telefone que ficava na sala de reuniões -. Falou.

"Despedimo-nos e ficamos os três na sala conversando e vendo televisão até uma dez horas da noite. Por que estávamos fazendo aquilo? Nunca tínhamos chegado tão longe, a ponto de dormir num local supersticioso. Eu acho que era para derrubar de uma vez a família dos maiores contadores de histórias da região e todos que acreditavam nelas. Eu pensava no que eles poderiam estar tramando. Com certeza eles não iriam deixar as coisas fáceis para nós.

"Cada um foi para seu quarto e Hick se deitou no sofá da sala e continuou a ver televisão. Entrei no meu quarto, acendi a luz e tirei todas as bonecas da cama e dos criados-mudos e tranquei dentro do guarda-roupa. Apaguei a luz e me deitei.

"Nesta noite tive um sonho. Sonhei que estava sozinho na casa e eu estava com muito medo, mas não sabia de quê. Eu procurava todos em cada canto da casa. Neste sonho o dia estava nublado. Eu fui até a janela então pude ver Hick, Oliver, Seu Zé, Lawrence, seu pai e a governanta, todos pescando em um açude na frente da casa. Lembrando que na realidade não havia açude nenhum ali. Fiquei mais calmo. Fui até a porta da sala e tentei abri-la, mas não consegui. Minha mão parecia dormente ao tocar a maçaneta. Fiz grande esforço para controlá-la, mas mesmo assim não consegui. Então o meu medo de ficar ali sozinho voltou e desesperadamente gritei pela janela para que alguém me ouvisse lá fora. Mesmo assim todos permaneceram imóveis. Neste momento aquela governanta gorda e medonha, com um movimento lento, olhou para mim por cima dos ombros, como quem me quisesse tirar todas as esperanças.

"Acordei então, sentindo aquele medo recente do pesadelo e abri meus olhos devagar. Eram duas horas da madrugada no meu celular. Tive então uma visão estranha, daquelas que só vemos depois dos pesadelos. O guarda roupas na frente da minha cama estava com uma das portas abertas e pude ver então as bonecas que olhavam para mim com seus olhos brilhantes pela luz da noite, que vinha pela janela acima da minha cabeça. Do lado direito do guarda-roupa ficava a porta do quarto que também estava aberta. Então vi a governanta passar caminhando em direção a cozinha. Levei um grande susto. Continuei olhando para a porta na expectativa de ver mais alguma coisa, mas não vi nada. Estava ainda chocado com o sonho e meu coração se acelerou. Para acabar com esta apreensão, levantei-me da cama e acendi a luz – Ah, como é bom o conforto e a coragem que a luz nos dá -. Primeiro tranquei a porta do guarda-roupa, que jurava já ter trancado antes. Depois olhei pela porta, para esquerda e para a direita, direção da sala onde Hick dormia e direção da cozinha, respectivamente. A televisão ainda estava ligada e do outro lado a luz do banheiro estava acesa e sua porta aberta. Fui então caminhando em sentido ao banheiro. Surgiu nesta hora um vulto saindo pela porta e eu não me segurei e dei um grito.

- Porra, Hick! Você me assustou.

- Você que me assustou. Eu saio do banheiro e de repente você grita na minha cara.

- Foi mal. Eu só ia “mijar” – falei disfarçando e entrando no banheiro.

"Depois deste susto e de ter urinado, voltei para meu quarto, fechei a porta e dormi com a luz acesa. O medo que sentia quando tinha sonhado ainda estava fresco em minha mente.

"Quando acordei eram uma e meia da tarde, pois tenho hábito de dormir bastante quando estou fora de casa. O Sol brilhava lá fora. Levantei da cama e fui até o banheiro. A casa estava totalmente silenciosa. Na volta do banheiro percebi um bilhete na mesa do telefone. Nele dizia:

“Fomos com Lawrence no mercado, comprar material pro churrasco hoje à noite na fazenda. Você pode almoçar no casarão.

Oliver, 04/12/2009, 08h37min”

"Pela hora em que o bilhete foi escrito, eu deveria estar apagado em sono, por isso não me chamaram, mas como já eram quase duas horas da tarde achei que já deveriam ter voltado. Fui para sala, liguei a televisão e fiquei meditando no que poderia ter acontecido com eles. Não tenho fome quando acabo de acordar, por isso não almocei. Quando foi chegando três horas, as nuvens cobriram o céu. Não tinha nada passando na televisão, por isso fui para a varanda deitar na rede. Por volta de quatro horas da tarde começou a chover. Se ninguém tinha chegado até àquela hora, agora que não ia chegar mesmo. Quando chovia a estrada ficava puro barro. Fiquei então assistindo a chuva cair, deitado na rede. Aquele som hipnótico das gotas caindo no telhado, o cheiro de capim e terra molhada e o vento frio e úmido que anestesiava a pele. Isso tudo misturado com a Solidão e o balanço da rede me fizeram adormecer. Dei-me conta disso quando tive um daqueles espasmos repentinos, que aparecem após aquela sensação de queda livre quando dormimos na rede. O céu já estava escuro, mas não chovia mais. Então me levantei da rede e vi que todas as luzes da casa estavam apagadas. Ninguém havia chegado ainda. Ao entrar pela porta da sala, joguei a mão no interruptor e percebi que não havia energia elétrica. Meus olhos já tinham se acostumado à escuridão, por isso pude ver, quando estava caminhando pelo corredor, um vulto negro que se levantava da mesa do telefone e caminhava em direção ao quarto desabitado, e “perigoso”, segundo seu Zé.

- Hick?... Oliver? – perguntei sem obter respostas – se forem vocês, podem parar com essa brincadeira.

"O vulto então se adentrou no tal quarto. Com as mãos na parede fui me apoiando até meu quarto que ficava uma porta antes para pegar minha lanterna. Seria fácil, pois já sabia onde estava minha mochila ao pé da cama. Estava preparado para bater no primeiro que fizesse alguma brincadeira sem graça comigo. Parecia-me ser Hick ou Oliver ou até mesmo Lawrence, por que não? Só poderia ser ele tentando me assustar e fazer com que eu desse crédito as suas histórias. Todos já deveriam estar na fazenda preparando o tal churrasco e ele, vindo me chamar, me encontrou dormindo e quis se aproveitar. Foi o que eu pensei. Liguei a lanterna e fui ao outro quarto, pronto para dar uma coça naquele garoto. Afinal tinha vários motivos para me justificar.

"Ao entrar no quarto não vi ninguém.

- Quem está aí? – perguntei seriamente.

"Não obtive respostas. Procurei então pelo quarto e não encontrei ninguém. Procurei no banheiro, e nada. Fui até a cozinha e também não encontrei ninguém. Ao sair da cozinha vi pela porta da sala, que estava aberta, o vulto passar e descer a escada da varanda. Lembro a você que o céu noturno estava parcialmente coberto de nuvens e a escuridão era considerável. Peguei então um soquete que estava em um pilão na cozinha e fui atrás dele. Ao chegar à varanda, vi que ele estava em pé no extenso gramado lá em baixo. Não quis gritar pelo nome de ninguém, preferia fingir que era um estranho para pelo menos ter uma justificativa depois de acertá-lo com o porrete. Fui me aproximando, e mesmo com a luz da lanterna não pude distinguir-lhe os detalhes. Não passava de um vulto negro. Quando estava a dois passos dele, perguntei:

- O quê você quer?

"Então ele se virou rápido como um piscar de lhos. Assustei-me, e meu susto maior foi quando pude ver seu rosto. Era uma criatura de forma humana, mas simplesmente negra como se estivesse pintada. De seus olhos, nariz, boca e olvidos emanava uma luz vermelha como brasa. Joguei-me para traz e deixei cair a lanterna, que se apagou. Na escuridão, sentado no chão, só pude ver aquelas luzes como fogo, que saiam de sua cabeça, se aproximarem do meu rosto como se fossem me engolir. Fiquei paralisado então, ao sentir uma mão fria envolver minha nuca. Aquilo me deu um calafrio que correu toda minha espinha.

- Que pena que te deixaram sozinho – disse com voz grave aquela boca luminosa -. Eu me mantive por muito tempo longe de você, a pedido do “Anjo da Iluminação”, mas você não me respeitou e entrou no meu caminho, tirando o meu sustento, desarmando as armadilhas que me mantém vivo...

"Não esperei nem mais um segundo. Nem sei de onde tirei forças. Com um movimento só, golpeei aquele demônio na cabeça. Então a escuridão voltou a tomar conta do ambiente e senti algo pesado cair do meu lado. Apalpei o chão tentando encontrar a lanterna e antes de achá-la, lembro que toquei várias vezes sem querer aquele corpo frio. Levantei rapidamente e corri para casa. Com muita dificuldade, pois estava somente com a luz da lanterna, corri freneticamente para trancar todas as portas e janelas. Ao entrar no quarto proibido e ao se aproximar da janela, me deparei com aquela criatura do lado de fora me olhando furiosamente. Sua raiva era tanta que ele começou a esmurrar a janela e quebrar os vidros. Até hoje posso me lembrar dos seus gritos. Eram como gritos de medo vindos das “profundezas”. Corri para meu quarto, e ao bater a porta aquelas malditas bonecas começaram a rir de mim. Peguei todas, que estavam dentro do guarda-roupa, e as lancei pelo corredor. Logo em seguida tranquei a porta e me escondi como criança debaixo do cobertor.

"Fiquei horas acordado, sem descobri a cabeça, e atento a cada som que pudesse surgir daquele silêncio atormentador que tomava conta da noite. Meu coração bateu mais forte de repente, quando depois de um tempo, ouvi as bonecas rindo lá fora no corredor da casa. Passos se aproximavam da porta. Quando estamos cobertos, escondidos em algum lugar e não podemos ver o que é real a nossa volta, nosso medo aumenta. Meu medo era tanto que comecei a chorar. Esperava que talvez a porta fosse arrombada, mas em vez disso, imediatamente senti sobre mim um peso como uma mão que corria subindo pelas minhas pernas e uma voz que dizia baixinho perto do meu rosto coberto:

- Eu estou aqui.

"Dei então um grito e comecei a me debater como um louco, socando e chutando para todas as direções. Isto fez o cobertor cair e vi então que não tinha ninguém lá. Era dia e a luz do Sol entrava pela janela. Fiquei um pouco confuso. Peguei meu celular e vi que eram exatamente 08h37min do dia 4 de dezembro de 2009. Fiquei mais confuso ainda, porém, levantei confortado com toda aquela luz – Ah, a luz... Ela nos mostra o caminho e nos livra de todo medo -. Quando saí do quarto vi que Oliver conversava com Hick na varanda. Primeiro fui ao banheiro, depois fui até eles. Quando eles me viram pararam de falar e começaram a disfarçar. Vi que Oliver tinha um papel na mão.

- O que houve? – perguntei.

- Nada... Hick e eu tivemos o mesmo sonho. E olha só o que eu encontrei na mesa do telefone – disse Oliver me mostrando o papel.

- Como assim mesmo sonho?... Exatamente o mesmo sonho?... Que sonho? – perguntei.

- Olha o que está escrito no bilhete.

No tal bilhete dizia:

“Quando tiverem pesadelos, seus olhos serão a porta.

O Porteiro”

- Eles me mostraram também a janela do quarto vazio, que estava totalmente quebrada. Quando me contaram o sonho deles, vi que tinham sido exatamente como o meu. Acabou ali a nossa estada naquele lugar. Depois que fomos embora, nunca mais tocamos no assunto e não falamos com ninguém o que tinha acontecido. Paramos também de desafiar o medo. E com relação ao bilhete? Nossas vidas viraram um pesadelo. Meus dois amigos não agüentaram o tormento e hoje, como você pode ver, já não estão mais entre os vivos. Eu ainda estou aqui para contar a história. Toda vez que durmo aquele íncubo põe sua mão na minha nuca e tenho sempre os piores sonhos, e quando acordo, já não quero mais abrir os olhos, porque por incrível que pareça, meus sonhos me visitam – concluiu Jaire, olhando parta Carlos.

- Olha amigo, você é um ótimo contador de histórias – disse Carlos. Já pensou em escrever sobre isto?

- Você não acredita em nada que eu falei, não é?

- Não é que eu não acredite. Foi só um sonho... um pesadelo...

- Então como você explica o fato de três pessoas terem exatamente o mesmo sonho, como se fosse um aviso?

- Sei lá... Eu acho que você ficou muito abalado com a morte de Hick, e depois de Oliver... Você precisa de ajuda, rapaz.

Jaire sem dizer mais nada, levantou-se tirou as coisas da mesa e levou para a cozinha. O cesto de biscoitos ainda estava pela metade e o bule de café como se tivesse perdido somente uma xícara. Quando ele voltou, encontrou Carlos em pé na porta.

- Bom amigo, o Sol já vai nascer, está na minha hora de partir. Agradeço-te muito por esta conversa e pelo café. Procure se acalmar. Procure companhia. Não fique preso a esta casa, isto está te fazendo mal. Então até... Sinto que em breve nos veremos de novo.

Carlos se despediu de Jaire, que o acompanhou até o portão. A motocicleta de Carlos seguiu avante e então desapareceu como uma miragem ao surgir os primeiros raios do Sol.

- “O Sol já vai nascer, está na minha hora...”. Lembro que ele disse isto aquela madrugada de sábado, antes de sair bêbado daquele bar e se envolver naquele acidente. Ele sempre foi tão racional, por isso ainda não consegue enxergar sua condição. Eu descobri que neste mundo a razão nos esconde verdades que muitas das vezes são assustadoras. E o medo, como porteiro do inferno, nos trás a vista todos os demônios criados pela mente ignorante. Cedo ou tarde chega o dia em que um acontecimento inexplicável faz de nossos olhos a porta. E depois deste dia nunca mais veremos o mundo da mesma forma.

Fim

ToWo
Enviado por ToWo em 14/09/2010
Reeditado em 17/09/2020
Código do texto: T2496822
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