O Encontro

Por Ramon Bacelar

Olhou para os lados e o que retornou foi um mosaico de nomes, ângulos e formas desconhecidos e ao mesmo tempo familiares: trevos, placas, pedras, calçadas, esquinas. No labirinto de curvas e ruas a cidade desconhecida o dominava e possuía, mas não o guiava nem esclarecia: confundia. A familiaridade das placas e o desenho do calçamento o fez concluir que tinha retornado ao ponto de partida pela terceira vez, mas o pedinte barbudo agora barbeado e a súbita inclinação da rua que dava para sua pensão, fazia-se supor ter adentrado outra seção, mas por algum motivo a sensação de déjà vu perdurava; sensação esta reforçada quando visualizou o mesmo canteiro de orquídeas ao lado do mesmo banco, mas quando correu os olhos notou que sua base de tijolos e cimento continuava e percorria o meio fio como uma base delimitadora. Imóvel e cabisbaixo como um fantoche sem cordas, suspendeu o pescoço mas antes de prosseguir foi impedido por um “novo” aclive na calçada semelhante a um quebra molas desgastado; suspirou, abaixou a cabeça e concluiu: estava perdido: dentro e fora.

***

“Por que não vêm? Está pronto?”

Enquanto rearranjava o mosaico visual e recobrava seu senso de direcionamento, relembrava as palavras enigmáticas da filha da dona da pensão: ela, de costas para ele, cabelos negros esvoaçantes, sussurrava para o vento ferindo seus tímpanos com a incompletude e ambiguidade de um discurso fragmentado.

De devaneio ferido pela estridência da lata do pedinte, visualizou um borrão negro semelhante a enormes asas de corvos flutuando no perímetro da esquina mas quando chegou foi inundado pela mesma vaga de monotonia labirintina das placas e calçamentos.

“Por que não vêm?”, novamente o enigma interrogatório tocou sua audição, mas a solidez do vento gélido que penetrou em seus ouvidos simultaneamente com as palavras o fez concluir que o pedido vinha de fora.

Vasculhou o cenário a procura da fonte sonora; olhou, procurou, não encontrou, persistiu, insistiu...

“Está pronto?”

Olhou para os lados indo em direção as asas que agora pairavam em outra esquina, mas não alcançou; percorreu a trajetória semicircular do meio fio e na porta de um antigo casarão vislumbrou um corpo escultural moldado por cabelos negros esvoaçantes evanescendo na realidade penumbrosa da morada.

***

-Célia!

Berrou aos quatro ventos o nome da garota-sem-face que por semanas invadia sua rotina onírica com suas palavras enigmáticas. Era como se os sonhos invadissem o universo material e transmutasse a sua realidade em fragmentos oníricos que o fascinavam mas nada esclareciam: sonhos, ruas, casas, calçadas... e agora o casarão, as vozes, as asas.

Alcançou a porta com pescoço inclinado como se para detectar fragmentos sonoros carregados pelo vento. Uma vez habituado ao silêncio adentrou o casarão e foi tragado por um universo de pó e escuridão que por um momento emaranhou seus sentidos.

- Cadê você?

Não obteve resposta.

Continuou andando com passos cautelosos até ser impedido por um degrau: olhou para cima e no último descanso da escada vislumbrou uma luz cegante ferindo a escuridão com sua luminosidade faminta.

-Célia?!

Não sabia porque gritava, porque ia em direção ao quarto mas por algum motivo...sabia e... sabendo que sabia, penetrou no casulo de luz que imediatamente o cegou com seu brilho ofuscante. Fechou os olhos e uma vez ajustado a claridade metálica teve a visão invadida por um imenso quarto adornado por tapetes persas, candelabros italianos, almofadas de sedas e uma cama de casal ocupada por cabelos esvoçantes como imensas asas de corvos que iam das orelhas as nádegas.

“ Está pronto?”

“Porque não vem?”

Paralisado pelo pedido, sentiu uma vaga de calor percorrer o seu corpo; suores prematuros brotavam de sua testa com faminta profusão, sentiu um líquido pegajoso percorrer sua virilha, veias rígidas penianas como bulbos vulcânicos em erupção; ardendo de desejo, em um delírio de rigidez e solidificação tentou definir as formas, mas a luz cegante contrastada com o negrume dos cabelos só lhe revelou a finura dos dedos e as curvaturas das nádegas. Ardendo por dentro como um caudaloso vulcão orgânico, aproximou-se da cama e tentou visualizar a garota, mas a qualidade da iluminação dissolvia os contornos a transmutando em uma disforme massa pulsante carente de definição.

Percorreu com a visão o que parecia ser a coluna e, despido da cintura para baixo, sentiu a frieza das nádegas acariciando sua genitália enquanto sua face e torso se perdiam no frenético bater de asas esvoaçantes. Acariciou o pescoço e orelha, mas quando a língua encontrou a cavidade labial, sentiu uma textura crespa e pegajosa a tocando enquanto asas se fechavam pressionado sua garganta; tentou definir os contornos mas o que alimentou suas retinas foi uma massa de carne semelhante a uma língua que se precipitava da cavidade labial como um verme obeso, uma faminta lesma grávida pulsante, revestindo suas maçãs com uma substância rançosa e pegajosa, ao mesmo tempo que inchava e esticava em direção ao interruptor de luz:

Click.

-Está pronto amor?

Foi a última coisa que ouviu antes do cobertor escuro o envolver.

FIM

Ramon Bacelar é contista, crítico e ensaísta. Mantém um blog sobre cinema, quadrinhos, literatura e cultura underground (Maquinário da Noite: www.maquinariodanoite.blogspot.com) publica contos no Recanto das Letras http://www.recantodasletras.com.br/autores/ramonbacelar e em seu site pessoal, Miragens Ofuscantes: http://www.miragensofuscantes.blogspot.com

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Ramon Bacelar
Enviado por Ramon Bacelar em 05/09/2010
Reeditado em 05/09/2010
Código do texto: T2479422
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