A borboleta
A multidão parecia formar uma única entidade, de múltiplos cérebros e múltiplos membros, mas com um único objetivo: divertir-se.
Allan percorreu o corredor formado pelos corpos daquelas pessoas que não paravam de gritar, de aplaudir, de cantar trechos das canções dos homens que estavam sobre o palco; os cantores deviam ser criaturas do Outro Mundo, para serem capazes de provocar tamanho encantamento e de forma tão espontânea.
Ele estava confuso. Fazia anos que não se deparava com pessoas tão estranhas, todas elas, pois tinha certeza de que a essência que pairava no ar unia todos que estavam ali como uma coisa só, de muitas faces e um só espírito.
Allan se esgueirou para longe de um grupo de homens bêbados, tropeçou sem querer numa jovem caída e ignorou quase por completo o sangue que escorria copiosamente do nariz da moça e lavava a frente de sua camiseta. Havia tantas coisas acontecendo ao seu redor, tanta confusão que ele se sentiu como a mosca enrolada na teia da aranha, seu destino parecia estar traçado e a banda de rock anunciava que ninguém ousaria escapar, que ninguém poderia fugir, que haveria um banquete antes do nascer do sol, ninguém sobreviveria à passagem do Anjo da Morte e etc. Allan não resistiu e acenou na direção do vocalista certo de que ele não prestaria atenção ao seu pequeno gesto. Para sua surpresa, o homem sorriu e acenou de volta, continuando a cantar suas mensagens apocalípticas.
A noite parecia enfeitiçada, uma noite pintada a partir do esboço de algum jardim noturno, a lua cheia iluminava o céu como um medalhão amarelo-desbotado, grande e cativante, derramando sua luz sobre o parque de árvores esparsas, sobre os canteiros de flores pisoteadas e sobre os rostos daquela gente tão quente.
Allan precisava respirar. Nunca antes lhe aconteceu de precisar se afastar dos outros, de se sentir tonto e disperso como nesse momento. Devia estar ficando sonolento. Devia estar cansado. Juntou-se a meia-dúzia de adolescentes bêbados sentados no meio-fio, eles riam frouxamente, um deles abriu a boca e vomitou nos próprios sapatos. Allan riu, os outros o acompanharam.
Havia qualquer coisa errada, ele podia sentir, mas não conseguia levantar e ir embora. Eram os malditos caras cantando, era a música, a galera - os culpados pela sua repentina confusão mental eram todos, todos eles.
- Achei você – anunciou uma beldade pálida bem junto do seu ouvido. – Finalmente eu o encontrei.
Ela tinha grandes olhos cinzentos e pele de porcelana. Allan imediatamente apostou que ela estivesse usando pó branco no rosto. Branca como a neve.
- Você é a Branca de Neve? – ele se ouviu perguntar, e riu de si mesmo. Pergunta muito idiota, claro que ela não era.
Ela se esticou, aproximando a boca vermelha do seu rosto e lançando ondas de menta e vodka dentro da sua alma.
- Posso ser o que você quiser que eu seja – ela atirou a cantada.
- Seja a minha borboleta, então – Allan sugeriu.
Eles sorriram. Todos estavam sorrindo. O cantor estava sorrindo enquanto dizia que as borboletas só caçavam à noite.
- Que assim seja, meu amor – ela sussurrou.
Allan arregalou os olhos quando ela abriu a boca, expondo fileiras e mais fileiras de pontudos dentes sujos de sangue.
- Eu... meu Deus!
Ela mergulhou o rosto em seu pescoço, dilacerando a carne e os ossos.
A multidão aplaudiu em êxtase, sangue estava chovendo e Allan achou que todos deviam estar se divertindo muito. Afinal, ele ouviu muitas risadas antes de tudo se apagar, abruptamente, num relâmpago de dor.