NA PONTA DA FACA - Giselle Sato
Laura sabia, com absoluta certeza, que só os apaixonados possuem, que aquele era homem da sua vida. E desta forma, passou a respirar Antonio, deixando de lado qualquer outra coisa que atrapalhasse sua concentração.
Claro que no início foram flores e encontros no meio da tarde, mensagens no celular a todo minuto, ligações sem motivo apenas para ouvir o som da voz um do outro. Depois ela recuou, fazendo que ele a procurasse, Laura era mestra no jogo do gato e rato, fazia dos meandros da sedução atos irresistíveis. Finalmente Antonio estava em suas mãos, feito um ratinho dócil, alimentado com bocadinhos de queijo Brie, não por acaso seu favorito.
Sexo foi o encontro dos mesmos gostos: a fome intensa, o completo despertar da gula para depois, saciar parcialmente a luxúria. E completando o ciclo de pecados, cada vez mais fortes e exigentes, exibia o ciúme como fraqueza, aparentemente a única no meio de tantas qualidades:
- Antonio, nunca senti isso por homem algum.Desculpe, mas tudo com você é diferente.- O namorado ainda tinha nas mãos o celular, com toda a agente feminina deletada.
- Você sabe que o que sentimos é forte demais, não dá pra controlar mas eu sei que estou errada.- E chorava copiosamente. Balbuciando desculpas entre soluços cada vez mais fortes, como sempre esperava o namorado com um roupão leve, banho recém tomado e nada além da pele cheirando a hidratante.
- Amor! Não estou zangado, só que todas estas mulheres são clientes importantes. Tudo bem, esqueça tudo. - Ele ligou o laptop e digitou a senha pessoal de acesso.
- Viu? Fico imaginando o que há nestes arquivos, emails, pra você não deixar aberto e bloquear meu acesso. Eu nunca senti isso antes, eu te amo tanto! - Já não chorava quando começou a reclamar sobre senhas e segredos, o pano acetinado da roupa deslizou deixando um ombro à mostra.
- Laura, tudo aqui está relacionado ao meu trabalho, não há nada com que se preocupar, nenhuma ameaça ao nosso relacionamento. – Antonio era extremamente calmo, a fala mansa e tranqüila.
- Não penso assim, meu laptop não tem senha. Se quiser pode olhar a vontade, não tenho nada que você não conheça! - Abriu o computador e praticamente jogou na mesinha ao lado do namorado.
Dois meses morando juntos e ela praticamente não desgrudava de Antonio quando ele colocava os pés em casa. Toda a noite eram ceninhas e ele parecia deliciado em ser o centro das atenções. Laura percebeu e passou a caprichar nas implicâncias:
- Eu jamais faria isso, respeito sua privacidade e não há razões. - Antônio passou os braços sobre os ombros da moça e a envolveu em um abraço forte. Depois foi até a sacada do apartamento e acendeu um cigarro.
- Droga! Você é tão perfeito e eu só faço besteiras. Desculpe amor, juro que não vou mexer nas suas coisas. Prometo. – Laura caminhou até Antônio, ele ainda olhava as luzes da cidade quando ela começou a se esfregar. A sensação de estarem na sacada, praticamente à vista do vizinho, caso este fosse tomar um ar, mexia com o imaginário da moça. Perigo, libido e a sensação de estar sendo observada. Laura estava muito excitada e gemia baixinho... o roupão caiu no piso frio e ela riu baixinho.
- Laura, está louca? Ah! Você não tem jeito, vamos entrar amor. – Ela deu uma risada divertida e lambeu a nuca do namorado, as mãos movendo-se por todo corpo de Antônio, em segundos estavam na cama fazendo as pazes.
No mês seguinte, ela já tinha sua própria gaveta na cômoda da casa do namorado, chinelo e escova de dente. As frutas e geléia preferidas na geladeira.
Uma opinião ali, um quadro de presente, o edredom com pouco uso que ficou perfeito com a cor do quarto de Antonio, que um dia se pegou tomando banho e usando o xampu de Laura com naturalidade. Ela era tão sutil, pensou Antonio, em tão pouco tempo já não reconhecia a própria a casa.
Na sala todos os porta retratos exibiam fotos de Laura,haviam vasinhos de violetas espalhados pela varanda, e almofadas bordadas no sofá de couro preto.
Percebeu a presença de Laura no banheiro, enquanto a água quente escorria entre os amantes ele pensou que há muito não ficava sozinho.
Naquela semana, ela se mudou de vez e Antonio dividiu o closet com um mundo de sapatos, bolsas e roupas que caberiam em um magazine. Mesmo assim, apenas separou as camisas amassadas pelos vestidos de Laura e mandou passar tudo novamente. Decidiram que seria melhor que ela ficasse em casa, até que alguma boa oportunidade de emprego surgisse. Assim, não iria mais às entrevistas em agencias nem passaria o dia perambulando de escritório em escritório:
- Afinal só servem como desculpas para as mesmas cantadas.- Laura instigava o ciúme do homem.- Sou obrigada a me livrar de todas as formas de assédio, pura perda de tempo, não agüento mais passar por tantos transtornos. Fui uma modelo famosa, agora com a idade...
- Querida, você só tem vinte e seis anos e ainda pode estudar e fazer um concurso público. Até lá o que ganho nos sustentará sem problemas, fique tranqüila e aproveite o tempo para cuidar do nosso amor.- Laura detestava trabalhar e mais ainda estudar, tudo que desejava era casar rapidamente e garantir o futuro.
Antônio era rico, diariamente saía bem cedo para o escritório de advocacia e só retornava à noitinha. Tempo suficiente para que ela vasculhasse gavetas e pastas procurando segredos sobre o passado de Antonio.
Definitivamente eles formariam uma família imponente, Laura olhou a foto dos pais de Antonio com atenção, o casal transpirava poder e dinheiro . Imaginou seu próprio álbum de retratos e sentiu ciúmes por ainda não fazer parte daquela estrutura.
Sabia que os futuros sogros viviam praticamente isolados em uma fazenda no interior, tinham por hobby o cultivo da lavoura orgânica para consumo próprio e nunca vinham à capital. Antonio os visitava quinzenalmente, desde o início da relação Laura desconfiava quando ele passava o final de semana fora de sua vigilância. Apesar do namorado haver explicado que os pais eram um pouco arredios e não recebiam visitas, Laura decidiu que precisava inverter a situação.
Imeditamente traçou um plano para quebrar a resistência do amante, enquanto tomava um longo banho e vestia a melhor lingerie para esperar Antonio, sentiu orgulho da própria inteligencia. Ele não tardou a chegar, trouxe rosas vermelhas como sempre fazia quando ia viajar:
- Amor! Sei que estou pedindo muito, mesmo assim quero conhecer a fazenda e ser apresentada aos seus pais. Minha família toda já te conhece, sei que eles vão gostar de mim, todo mundo me adora!- Laura aproveitou a pausa após o sexo gostoso.
Comendo sorvete direto do pote, fazendo pose, exibindo do corpo bem feito, era a imagem da sedução. Recostada nos travesseiros altos, olhou o amado no lado oposto, brincando com seus pés, o esmalte vermelho era o fetiche que mais o agradava. Laura gostava muito de receber e mais ainda, dar prazer, o que para muitos era complemento, para ela era o ponto mais forte da relação.
Laura perdeu as contas de quantos homens havia literalmente deixado de quatro, prontos a obedecer, ceder, e fazer qualquer coisa por ela. Foram viagens, carro do ano, jóias, desde os tempos da faculdade, onde teve um caso com o diretor e formou-se, sem jamais ter lido qualquer livro. Com o tempo, eles perdiam o interesse ou ela enjoava da cara do amante. Nem precisava se esforçar, os homens sempre apareciam em sua vida.
Companhia nunca havia sido problema, amigas nem tanto, não tinha nem queria competição e inveja. Engatava um caso em outro, alternando empresários, negociantes, atores, todos com dinheiro suficiente ou poder. Bandido ou mocinho, Laura queria ser bajulada, passear e se divertir sem preocupações. Algumas vezes metia-se em apuros. Uma ou duas vezes as coisas ficaram feias e ela conseguiu contornar e sair ilesa, para isto contou com a ajuda do pai.
De qualquer forma para Laura era normal manipular os homens, eles se apaixonavam em tão pouco tempo e com tanta facilidade. Melhor ainda, todos eram descartados sem esforço.
Com o namorado atual, não foi diferente, fácil demais, muito fácil mesmo! Ele havia acabado de mudar para o mesmo flat, eram vizinhos de porta e freqüentavam a academia no mesmo horário, viviam se esbarrando no elevador e trocando olhares.
Quando conheceu Antônio sentiu uma atração imediata e inexplicável. Acompanhou os horários do homem e planejou os encontros casuais para puxar assunto sobre qualquer coisa, neste meio-tempo detalhes como os ternos perfeitos, o relógio caríssimo e o poder que o homem exalava, deixavam-no ainda mais atraente.
Ele tinha um quê de intimidade que ela não conseguia entender, sentia-se completa quando conversavam sobre coisas triviais, sempre assuntos que ela adorava tagarelar horas a fio e ninguém tinha muita paciência para escutar. Ele parecia adivinhar seus desejos, o chocolate preferido, a cor das rosas e a generosidade nos pequenos presentes caríssimos.
Durante um mês apenas conversaram e Antônio conquistou de vez o coração de Laura, ele a tratou com respeito e não tentou qualquer intimidade. Nunca havia acontecido antes, ser tratada como um mulher especial e decente era novidade.
O início do namoro aconteceu após uma sessão de cinema, neste dia Laura entrou pela primeira vez no apartamento de Antônio e sentiu que não queria mais sair daquele lugar. Era bem decorado e feito sob medida para seu gosto. Além do mais parecia rico o suficiente, bonito o bastante, amante regular e completamente mão aberta.
Laura contou que o pai mandava uma mesada e eram de uma excelente família. Mentiras e mais mentiras. A família falida vivia do que Laura depositava na conta da mãe, pois o pai era viciado em jogo, sempre viveu com os sogros, e nunca foi nada além de um golpista.
Laura aprendeu muito com o pai, secretamente seu maior incentivador e único amigo. Ele que tinha a mesma frase na ponta da língua, havia ensinado:- Sempre há um otário e um vigarista, o mundo é dos espertos.- Ela concordava e deixava que ele a abrasasse um pouco mais forte, dando-lhe a impressão de ser a melhor coisa que havia em sua vida. O bem mais precioso.
Em uma visita rotineira aos pais, anunciou o casamento derradeiro: - Desta vez encontrei a pessoa certa, vocês irão conhecer em breve o homem da minha vida. Rico o bastante e completamente apaixonado por mim. Obedece todas minhas vontades e compra tudo que quero.- Ela rodopiou, exibindo o vestido de uma griffe caríssima e mostrou as mãos cobertas de anéis.
- E você o conhece bem minha filha? - A mãe parou de assistir a novela e olhou Laura com carinho.- Odiaria que saísse magoada, ele a conquistou de verdade.
- Claro! Não temos segredos, ele é perfeito!- Mas não era bem assim e uma ponta de receio fez com que Laura reavaliasse a situação.
Antonio nunca apresentou qualquer amigo, alegou que ninguém era intimo o suficiente e tinha ciúmes dela.
Não falou sobre o passado, para ele tão comum quanto aborrecido. Nem na empresa onde gerenciava um posto alto, Antonio participava de festas ou saía após a jornada para um drink.
Laura não havia descoberto absolutamente nada importante, apenas que ele era muito rico e poderoso. Um homem generoso o suficiente para partilhar com ela seus cartões de crédito, com carta branca para suas compras ilimitadas.
Foi assim que desculpou a primeira regra quebrada: Jamais confiar em um estranho.
Antonio tocou o tornozelo e subiu até as coxas da mulher, a pele suave e macia sob suas mãos tremeram. Laura soltou um gemido fraco e num impulso, derramou um pouco do doce entre os seios, o sorvete de chocolate escorreu para a barriga e ela com um dedo traçou um desenho até o umbigo e sorriu.
Ao final da tarde, estavam fazendo as malas e pegando a estrada, quase oito horas de viagem até a fazenda, mas Laura estava exultante:
- Amor, eles sabem que eu estou indo? Ficarão contentes em me conhecer?- Ela apoiou uma das mãos na perna de Antônio e com a outra, mexia no som, trocando as estações sem gostar de nada.
Antonio dirigia concentrado na estrada movimentada, Laura continuou os carinhos, tentando abrir o zíper do jeans com as pontas dos dedos:
- Por favor, não quero provocar um acidente, pode ficar quieta um pouquinho?- Imediatamente ela se empertigou e fechou a cara, respirando pesadamente.
Duas horas depois, a música suave tocava em silencio absoluto e Laura avaliava se estaria valendo a pena agüentar o mau humor de Antonio. Pela primeira vez as feições duras, as linhas sulcadas no rosto expressivo e forte, deixaram-na entrever um homem que nada tinha de maleável e submisso. Um jogador reconhece o perigo e ela começou a se preocupar:
- Amor, porque não paramos na próxima cidade e procuramos um hotelzinho romântico? Vamos deixar para conhecer seus pais para outro dia? – A voz saiu trêmula, ela tentou fazer o beicinho que antes ele adorava.- Antônio demorou tempo demais para responder, com uma simples negativa movimentou a cabeça e fez
um muxoxo.
- Desculpe se eu fiquei insistindo. Nao fiz por mal.
- Dá pra você ficar quieta? Esta serra é cheia de curvas, não consigo dirigir com teu miado irritante.
- Amor, está me assustando, nunca me tratou assim. Era para ser um passeio romântico e virou um pesadelo.Vamos voltar para casa.
- Você está me tirando do sério. Cale a porra desta boca! – Ele falou baixinho.
- O que? Está louco? O que está acontecendo? Vou sair desta merda agora, não tenho nada a ver com sua doideira, aqui não fico!- Laura tateou a maçaneta do carro ignorando a velocidade que trafegavam, estava realmente preparando-se para pular sem medir as conseqüências.
O carro foi jogado no acostamento e Laura não teve tempo para reagir ao soco no rosto, a última coisa que viu foram os olhos injetados de uma fúria até então, desconhecida. Desmontou como uma boneca de pano, Antonio abriu o porta luvas e pegou uma corda fina bem resistente, principalmente depois dos nós apertados que imobilizaram as mãos da mulher.
Mais para revidar as ofensas do que propriamente garantir que Laura escapasse, deu alguns tapas fortes no rosto bonito e sorriu. Notou as manchas roxas que já começavam a surgir na pele claríssima, e sorriu novamente. Da boca machucada de Laura, um filete vermelho confundia-se com o batom borrado. Tornou a rir mais alto e quase aliviado.
Reclinou o banco e apertou o cinto de segurança, ajeitou a cabeça de forma que ela parecesse estar dormindo. Mentalmente refez as contas e calculou que em mais duas horas estariam na fazenda. A noite estava bonita e a lua iluminava a estrada deserta, enquanto dirigia pensava no quanto gostava daquela calmaria, do silencio da madrugada e do cheiro do campo. Aumentou o som e cantarolou uma de suas canções preferidas.
Castigo
Laura sentiu dor nos pontos inchados onde havia sido socada, depois ódio de si e do homem que a enganou. Em seguida olhou ao redor, procurando alguma coisa além da cadeira onde estava amarrada, a sala grande e bem iluminada exibia as paredes nuas e o chão de cimento queimado. Não havia janelas, apenas uma porta de ferro e o sistema de refrigeração ligado no mínimo, renovando o ar sem qualquer ruído.
Fechou os olhos, estava com medo e não podia perder a razão. Lembrou que já havia sido presa com um namorado traficante, ele negociou a liberdade oferecendo Laura aos marginais. Foi obrigada a fazer sexo com vários homens ao mesmo tempo, apanhou e terminou em um hospital público tratada como prostituta. Era o passado que ela escondeu de todos, nem a família soube o quanto esteve perto da morte.
Abandonou a vida de festas quase diárias, onde todos os amigos viviam drogados.Voltou para a casa dos pais e passou um tempo quase reclusa.
Completamente refeita um ano após o incidente, mudou-se para um bairro bom e começou vida nova, tudo parte de um plano para conhecer algum tolo com dinheiro.
Ela escolheu Antonio como aposentadoria, fim de carreira em que ele seria seu golpe derradeiro. Nunca desconfiou que ele agiu como um joguete em suas mãos. Com raiva, admitiu que não seguiu seus instintos quando escolheu aquele homem, agora ela estava a mercê de um completo estranho em que apostou tudo em menos de três meses de convívio.Ouviu passos nos degraus e finalmente a chave girou na fechadura.
Antonio e um casal entraram em silencio e durante algum tempo a observaram, finalmente Laura sussurrou:
- Por favor, eu não sei o que está acontecendo. Porque estou amarrada?- Reconheceu a senhora da foto vista no apartamento, só que ele parecia muito mais velha, percebeu que o homem era mais idoso ainda.
-Fique quieta!- gritou o homem com a voz rouca e cortante. -A boca retraída e ligeiramente torta, sinal claro da seqüela de um derrame. As mãos agitaram-se nervosas e ele começou a chorar copiosamente. Imediatamente foi amparado por Antonio e retirado da sala, antes de sair a mulher olhou Laura com firmeza:
- Você vai pagar tudo que fez com minha família, gostaria de assistir cada minuto da sua agonia mas meu marido precisa de mim. Esperamos muito por este dia.
- Mas porque tanta raiva? Eu não os conheço, nunca os vi antes e há muito pouco estou com seu filho. Não me deixe com este louco. - Laura chorava. A senhora aproximou-se e ambas respiravam profundamente:
- Você teve piedade de Julio? Você não se lembra, estava mais preocupada com os fotógrafos. Durante o velório do meu filho, vi sua frieza, ouvi seus comentários com as amiguinhas que te acompanhavam. Eu estava lá, mas não fiz parte daquele circo de maldades. Meu filho suicidou-se com um tiro na cabeça em um cortiço imundo, um jovem cheio de vida e com um futuro inteiro pela frente.
- Não lembro de nenhum Julio.
- Como não? Esqueceu do quanto usou meu filho para pagar suas contas? Julio seu monstro! Era um rapaz decente até te conhecer.
- Julio! O médico? Julio Guedes? Isto foi há três anos. Eu era uma idiota que não tinha a menor noção do que estava fazendo. Isto não pode estar acontecendo!- Laura enfrentou o tapa no rosto, a mão da velha eram fracas demais para machucar, encarou os olhos frios com ódio.
- Julio Guedes. Meu filho tirou você das ruas , deu tudo que você pediu e sonhou, quis te dar uma vida decente. -A mulher acentuava o você, apontando o indicador para o rosto de Laura.- Você o deixou morrer sem socorro, naquele buraco cheio de drogados enquanto fugia com seu cafetão. E ainda foi ao enterro com a cara mais cínica do mundo. Se não fosse a idade, eu mesma te daria uma lição! – Neste momento Antonio aproximou-se e retirou a mãe da sala.
- Mas não entendo, seu nome é Viegas e não Guedes. Como eu poderia saber que era seu irmão? Por favor, pare com isso Antonio, eu larguei esta vida, não é justo!
Laura começou a chorar e sentiu o corpo tremer de medo e frio. Havia conhecido Júlio em uma festa de um grande laboratório químico, imediatamente ela se informou com conhecidos e como era rico o bastante, terminaram a noite em um apartamento no melhor bairro da cidade.De repente lembrou que ele havia dito que os pais eram cirurgiões conceituados, da alta sociedade paulista e trabalhavam em um hospital famoso.
Julio queria que ela freqüentasse bons lugares, brigavam porque Laura só se interessava por baladas e tomava qualquer porcaria alucinógena. Apaixonado e com dinheiro suficiente para bancar suas loucuras, Laura foi enredando Júlio completamente, arrastando-o para seu mundo podre.
Fez com que ele experimentasse as drogas que usava na época, induziu o consumo ao máximo e foi tirando o lucro com o traficante que também era seu amante. Laura havia colocado esta fase da vida em um lugar bem distante da memória, mas agora ela retornava com força total e não eram imagens bonitas.
Quando Júlio começou a pressionar para que fosse somente dele, Laura resolveu terminar tudo. Não acreditou nas ameaças de suicídio nem quando ele fez a última ligação pedindo ajuda, seu nome nunca foi relacionado à morte do jovem médico.
Como a família havia descoberto o que ela havia feito, era um completo mistério.
Laura começou a gritar que precisava ir ao banheiro, depois chorou sentindo a urina escorrer pelas pernas nuas, o vestido leve de verão grudado de suor começou a exalar um odor acre. Ele a olhou com repulsa e com auxílio de uma tesoura arrancou as roupas sujas da mulher.
Laura sentia sede e o estomago vazio doía, uma risada nervosa escapou quando pensou nos chocolates que deixou de comer por causa de dietas. Calculou que estava sentada há pelo menos dez horas, havia perdido a noção do tempo e a única coisa que importava era encontrar uma forma de sair dali viva. Os olhos de Antonio eram duas bolas de fogo sem o menor resquício de emoção.
Ele ficou algum tempo parado analisando o corpo da mulher, depois começou a traçar com uma caneta várias linhas e rabiscos. Laura não conseguiu gritar quando ele mas o horror aumentou quando ele saiu rapidamente da sala. Voltou minutos depois empurrando um carrinho com instrumentos de corte, facas, bisturis e outros que ela jamais havia imaginado ser possível construir:
- Você não sabia que Júlio queria ser cirurgião como nosso pai? Claro que não, estava mais interessada em gastar o dinheiro dele. Infelizmente te conheceu e o final foi nojento. Seis meses e ele perdeu a vontade, a decência, os valores e finalmente a vida. Eu segui meu irmão nas noitadas, tentei tudo para traze-lo de volta, até mandei oferecer dinheiro pra você deixar o coitado em paz.
- Eu não aceitei. Lembro que um amigo dele quis me dar um cheque em branco, mas eu recusei porque gostava de Júlio. De verdade. Ele era viciado, nunca obriguei seu irmão a consumir nada. Ele era um maldito drogado! Que merda!
– Mentirosa, você usou meu irmão como usa todos que passaram na sua vida.Laura, você não ama nada nem ninguém porque não é capaz de sentir qualquer sentimento. É uma mulher nociva e não merece viver.
- Eu estou grávida! Eu estou grávida! Era isso que eu ia contar para sua família, seu idiota.
Antonio começou a socar a mulher com toda raiva, no início ela reagiu com gritos e xingamentos, depois foi perdendo as forças. Aos poucos parou de chorar e passou a aceitar o castigo em silencio. Quando as mãos de Antonio pressionaram o pescoço frágil , Laura escutou o pai de Antonio mandando que ele parasse:
- É mentira desta bruxa! E eu jamais ia querer ter um filho com ela. Pai vamos acabar logo com isso, o senhor prometeu que iríamos nos livrar desta vagabunda.
- Filho, não posso sacrificar mais um inocente.
Laura sentiu uma picada no braço, em seguida a sala começou a rodar e a sensação era conhecida. Finalmente ela relaxou. O pai de Antonio reclinou a cadeira ao máximo, imediatamente a esposa trouxe soro e eles cuidaram de Laura, coletaram sangue para exames e limparam os ferimentos.
Laura estava com o rosto enfaixado, a dor no maxilar era insuportável ela começou a gemer. Alguém checou seu pulso, um analgésico foi administrado e logo a dor diminuiu e ela voltou a dormir:
- Gostaria de ver esta mulher morta! – Antonio olhou o corpo da moça com desprezo. Apesar do ódio que nutria, em nada adiantaria pedir aos pais que a matassem.
Era assunto encerrado, eles haviam decidido com muito cuidado cada passo e ele não podia interferir.
Antonio voltou para casa naquela noite, deixou Laura com os pais e iniciou a segunda parte do plano. No dia seguinte a firma de mudanças chegou cedo ao apartamento e em pouco tempo tudo que tinham foi encaixotado e levado para um depósito.
No trabalho Antonio era o retrato da felicidade, animado com a transferência para o exterior, não escondia o entusiasmo e a todo momento recebia ligações da namorada. Em vinte dias partiria para a matriz, ocuparia um cargo superior e a promoção daria um novo impulso à sua carreira. Antes que a família de Laura a procurasse, Antonio marcou encontro com o sogro em um restaurante e entregou um pacote volumoso:
- O que significa isso Antonio? Porque minha filha não veio?
- Estamos de partida para Londres e não quero que vocês continuem explorando minha mulher. Aceite isso como um presente de despedida, estou sendo generoso até demais.- Ato contínuo, empurrou o envelope com cem mil reais.
- Quero falar com Laura, isto é ultrajante!- O homem discretamente conferia o dinheiro sob a toalha da mesa.
- Vai ser impossível, ela escolheu manter nosso relacionamento e a sua péssima reputação em nada contribui. O senhor é um homem sujo na praça, conhecido por seus golpes e cheio de dívidas de jogo. Use este dinheiro como quiser, mas não nos procure para pedir mais nada, é nossa última ajuda.
- Você tira vantagem por ser rico e faz o que quer, espero que minha esposa não adoeça com tanta ingratidão.
- Dê lembranças à sua esposa e em breve Laura mandará um email contando as novidades. Estamos indo morar fora do país, portanto longe das suas garras, nem ouse aparecer sem ser convidado.
Antonio deixou o sogro falando sozinho, respirou o ar gelado enquanto caminhava pelas ruas e sentiu-se mais leve. Gesto automático ligou para os pais e conversaram em código, tudo corria bem e não havia com quê se preocupar. Em poucos minutos entrava no condomínio luxuoso e exclusivo. Na guarita um senhor cumprimentou:
- Boa noite senhor.- Antonio sorriu simpático e seguiu adiante.
A casa permaneceu intocada desde que ele partira, todos os pertences de Júlio estavam ali e com eles as melhores lembranças de Antonio.Não eram irmãos de sangue, os Guedes haviam adotado Antonio aos três meses, quando o encontraram doente e abandonado pela família. Foi assim que eles cresceram juntos, descobriram a vida e foram felizes até Laura aparecer. Antonio não entendeu a obsessão de Júlio e pararam de se falar, odiou a mulher que os separou e durante todo o tempo em que Julio e Laura ficaram juntos, eles os seguiu ou mandou vigiar.
Tentou alertar Julio sobre Laura e não conseguiu, perdeu seu único amor, o melhor amigo e tudo que realmente o fazia feliz. E jurou se vingar, mesmo que custasse tudo que ele mais prezava, mesmo que ele tivesse que mentir e ser outra pessoa.
Laura
Ninguém imagina o quanto odeio Antonio e sua maldita família, detesto inclusive a criança que fui obrigada a gerar. Deixei o Brasil e o tempo inteiro me vigiaram, tive uma gravidez péssima. Passei meses deitada, trancada em um quarto e sendo examinada pelo pai de Antonio diariamente.
Quando tentei fazer greve de fome, fui alimentada via sonda e amarrada. Preferi voltar a comer e ganhei uma televisão e um som. Daquele dia em diante aceitei que não conseguiria fugir, minha barriga pesava e sentia dores se tentasse caminhar.
Quando cheguei ao casarão torcia pelo dia da fotografia, era a única vez que saía para o jardim e outros aposentos da casa. Toda a família se reunia em várias poses, desde o início da gravidez foi assim, mês após mês fizemos fotos sorridentes em ocasiões forjadas.
Normalmente eu aparecia sentada e eles se movimentam ao redor. Antonio e a mãe compravam vestidos de alta costura próprios para gestante, só me restava exibir um sorriso convincente e fazer cara de feliz.
Depois do nascimento de Julinho, perdi os movimentos e mal consigo articular uma simples sentença. Felizmente com a doença não precisei participar das malditas fotos, fiquei livre das gracinhas do bebê desconhecido. Acho que ele envia fotos da criança para minha família, que devem estar abismados com a beleza da propriedade e todo o resto.
Antonio também manda algum dinheiro em meu nome para meu pai, ele sempre se gaba de ser muito esperto, mas eu quase consegui fugir durante a viagem, se não fosse a medicação contra enjôo que me deixou dopada, eu teria pedido socorro e contado que estava sendo sequestrada.
Não posso fazer nada, sou prisioneira do meu próprio corpo, durante o parto sofri um acidente vascular que me transformou em uma inválida. Fui obrigada a assinar alguns papéis para ter o bebê em casa, não sei como eles conseguiram consentimento com uma gestação tão complicada. O dinheiro compra tudo. Desconfio que meu acidente foi proposital,passo os dias sob os cuidados de uma enfermeira sob supervisão da mãe de Antonio.
Uma velha ruim, que me odeia e faz o possível e impossível para tornar minha existência pior. A única distração é a televisão e como não falo inglês, passo o tempo imaginando o que eles dizem. Antonio algumas vezes vem me ver, ele gosta de me torturar detalhando mil formas como gostaria de me matar, ele conta cada detalhe com a maior satisfação e eu não demonstro a menor emoção, depois choro e o amaldiçôo.
Desde que os pais dele vieram viver conosco por causa do neto, remoçaram e parecem felizes com o menino. Sempre penso que se esta criança não existisse eu estaria morta, o que seria muito melhor que a vida miserável que me obrigam.
Adoraria jogar o bebê pela janela mais alta, faria tudo parecer culpa dos pais de Antonio e todos teriam pena de mim.
Depois iria aos jornais e contaria minha historia sórdida e eles estariam acabados. Não tenho instintos maternais ou eles foram destruídos quando me prenderam nesta cama.
Quando Julinho estava com quase um ano, Antonio trouxe um médico para me examinar e eu pensei que fosse um especialista para me ajudar . Mais tarde vieram me contar que tudo não passou de encenação. Apenas pediram uma segunda opinião de um médico medíocre, tudo para confirmar o tratamento do pai de Antônio, caso minha família resolvesse reclamar algum dia.
Minha imaginação correu solta e pensei em mil formas de vingança,é disso que me alimento, do ódio que sinto por todos eles.
Antonio
Antonio e o pai discutiam na biblioteca, afundados em sofás confortáveis de couro bebericando chá forte enquanto a lareira aquecia o ambiente:
- Pai. Por favor, não suporto conviver com esta mulher imprestável. Para que tudo isto? Posso conhecer uma mulher muito melhor e ser feliz de verdade. Não entendem que minha vida está péssima? Quero me libertar deste pesadelo.- Antonio fechou os olhos. Estava verdadeiramente cansado.
- E o que sugere? Que eu a mate? Para todos ela sofreu um problema no parto, mas se descobrirem a verdade...
- Ela pode ter outro ataque fatal, sei lá mas nos livre desta coisa, pelo bem de Julinho que daqui a pouco vai começar a entender e fazer perguntas. Pai, o senhor não vai viver pra sempre, eu não sei o que fazer com Laura...
-Ouça, posso diminuir as doses da medicação e ela vai recuperar alguns movimentos, vamos simular um suicídio e tudo vai parecer aceitável. Induzimos o estado atual após o parto, foi fácil porque estávamos em casa e a enfermeira é tão inexperiente que a mantemos até hoje cuidando da megera. Eu mesmo continuei administrando os medicamentos e o tempo fez o resto, Laura hoje é mais doente que o desejado.
- Os pais de Laura podem desconfiar, vou gastar uma boa quantia para que nos deixem em paz.
- Já pensei nisto, por este motivo ela precisa apresentar alguma melhora e depois como é vaidosa não vai querer viver desta forma. Laura está acabada, não consegue falar e mal fica de pé. Suicídio é muito plausível, vou chamar um bom fisioterapeuta e ela vai começar a fazer hidroterapia.
- Pai, lembra dos papéis que ela assinou para fazer o parto em casa?- Antonio serviu-se de mais chá e jogou um torrão de açúcar no liquido fumegante.
- Claro que sim, mas não quero pensar nisso agora. Ainda há muito pela frente e não vamos nos precipitar.
A piscina era enorme e Laura sentiu medo, agarrou os braços da cadeira de rodas com força e recusou ajuda para entrar na água quentinha. Antonio explicou que ela podia confiar no profissional, a enfermeira também estava ao lado dela, o que poderia acontecer com tanta gente ao redor? Laura era desconfiada e não aceitou, no dia seguinte Antonio trouxe um salva vidas e outra enfermeira.
Laura aos poucos se acalmou e permitiu que a tocassem, começaram muitas séries de exercícios onde os músculos foram trabalhados, após tanto tempo a moça sentiu dores e alguma esperança, antes não tinha qualquer reação. Sob vigilância dos pais de Antonio e da enfermeira, o profissional passava algum tempo com Laura na piscina, um dia trouxeram Julinho e ela brincou com o filho pela primeira vez.
Seis meses se passaram. Um pouco de paz apareceu no semblante da paciente e ela passou a sorrir com mais facilidade e tratar os pais de Júlio sem a ironia maldosa que eram sua marca. Laura fazia progressos, o fisioterapeuta e toda a equipe estavam exultantes. Feliz com os resultados ela começou a traçar muitos planos:
- Antonio, você poderia me levar para passear de carro? Queria tanto ver a cidade. – Não houve resposta, eles estavam na sala de estar tomando chá e assistindo as artes de Julinho.
Os pais de Antonio a olharam com alguma simpatia, Laura sentiu que eles estavam amolecendo:
- Eu compreendo que não mereço, desculpe ter pedido.
- Laura, eu a levo para dar uma volta se Antonio concordar. – A mãe de Antonio sorriu, os homens suspiraram longamente e logo Laura estava sentada no banco do carona, pronta para seu passeio.
Foi a primeira de várias outras ocasiões em que eles passaram a incluir Laura. Pareciam estar aceitando com naturalidade que o tempo estava curando e as mágoas sendo gradativamente atenuadas.
No aniversário de três anos de Julinho, Laura já movimentava a cadeira de rodas sozinha, um modelo adaptado com botões de controle, extremamente leve e fácil de manusear. Podia andar pela casa e usar o elevador para ir onde quisesse, desde que acompanhada pela enfermeira e a mãe de Antonio.
A firma contratada para a festa havia acabado de chegar com mesas, toldos e todo o aparato para montar. Laura assistia da janela do quarto, naquele dia ela não poderia descer por causa dos convidados, Antonio não achava seguro e vetou sua presença.
Desejou poder andar e assistir Julinho cantando parabéns, aprendeu durante o tempo em que passaram juntos a gostar do menino. Sentiu a raiva reascender novamente, eles não tinham o direito de fazer aquilo com a mãe do aniversariante, ponderou em voz alta e assustou-se. Ela estava falando, ela podia falar e eles não sabiam. Que grande trunfo tinha nas mãos.
Duas horas da manhã a casa dormia, Laura moveu as pernas lentamente e escorregou pelo colchão. O corpo leve não fez qualquer ruído no tapete espesso, começou a rastejar por todo o quarto até a porta. Destrancada. Apoiou as costas contra a parede do hall e recuperou o fôlego, continuou a se movimentar mais rápido, parou na terceira porta e testou.
Mal respirava quando entrou no quartinho azul, a babá dormia e o menino também. Laura sentiu raiva da mulher que passou toda a festa exibindo Julinho, tomando o lugar que era dela por direito, um pequeno punhal abriu a garganta da moça antes que ela pudesse esboçar qualquer ruído. Aproximou-se do berço e ficou de joelhos, puxou a ponta do cobertor e deparou-se com um boneco em tamanho natural.
Completamente confusa, tentou gritar quando Antonio e os pais atravessaram o quarto em sua direção, com a mão em riste ela tentou atingi-los com a faca. Antonio a desarmou com facilidade, mesmo debatendo-se ele a carregou até a cadeira de rodas e tomaram o elevador. Antonio e os pais encaravam Laura friamente:
- Sabíamos que você não tinha cura, na primeira chance iria matar novamente. É seu instinto Laura, um instinto ruim. É uma assassina, pronta para matar o próprio filho.- Antonio a olhava com desprezo.
- Que filho? Nunca quis este filho, nem você queria nada disso. Seus pais te obrigaram, eu pelo menos sou sincera. – Encarou os velhos e sustentou.
- Laura, sabe que matar a babá e machucar o bebê foi um ato de loucura. Agora está tão arrependida que sua única saída é o suicídio.
- Suicídio? Eu ia matar todos vocês e contar o que fizeram comigo, com certeza não seria condenada. Aqui os monstros não sou eu. Hipócritas. – Antonio levou até a parte mais funda da piscina e Laura olhou seu reflexo na água azul claro. O cheiro de cloro tão querido nas sessões de hidroterapia, agora queimavam suas narinas.
Imediatamente a mãe de Antonio surgiu com Julinho nos braços, ele ainda dormia e ela começou a desenrolar as mantas da criança:
- Tem certeza que não vamos machucar o pobrezinho? Ele está tão quentinho.
- Vamos com isto mãe, coloca ele na borda da piscina e saia. Não tão próximo senão ele vai engatinhar para a água. – Antonio deu um único empurrão nas costas da cadeira.
Ela afundou rapidamente, virou de lado e Laura presa pelo cinto de segurança, tombou o corpo para frente. Em silencio assistiram até que ela ficasse completamente imóvel. Os segundos pareceram longos demais para todos. Rapidamente deixaram o lugar e voltaram para seus quartos.
Julinho começou a chorar assustado com a escuridão, a criança não se moveu no chão frio e molhado. Ele gritou pela babá, o pai e os avós. As luzes da casa se acenderam, todos correram de um lado para o outro, a enfermeira gritou quando descobriu o corpo da babá e Antonio encontrou o filho na piscina com a ajuda da cozinheira. A policia chegou logo depois e o corpo de Laura foi resgatado, uma semana depois o funeral foi autorizado. Após investigações decidiram que Laura havia se suicidado após cometer o homicídio.
Os amigos apareceram para consolar Antonio, todos sabiam que a mulher sofria de depressão e seqüelas terríveis após o parto complicado:
- Ele estava tão animado com as melhoras de Laura, ela vinha respondendo tão bem à fisioterapia.
- Ela esperou ficar bem para se matar, é da doença eu vi em um programa na televisão. Ela matou a babá e não teve coragem de matar o filho.
- Ainda bem, senão Antonio enlouqueceria. Olhe como está mal, vamos cumprimentar os pais dele e expressar nossos sentimentos. – As duas colegas de escritório de Antonio seguiram caladas até o casal, a avó com o netinho no colo mal podia responder.
O final de Laura ocorreu com discrição, em seu testamento ela pediu para ser cremada e deixou um seguro de vida em nome do filho e alguma coisa para os pais. Eles preferiram economizar e não compareceram, alegaram que ela havia sido uma filha tão boa, que com certeza compreenderia de onde estivesse.
Laura sabia, com absoluta certeza, que só os apaixonados possuem, que aquele era homem da sua vida. E desta forma, passou a respirar Antonio, deixando de lado qualquer outra coisa que atrapalhasse sua concentração.
Claro que no início foram flores e encontros no meio da tarde, mensagens no celular a todo minuto, ligações sem motivo apenas para ouvir o som da voz um do outro. Depois ela recuou, fazendo que ele a procurasse, Laura era mestra no jogo do gato e rato, fazia dos meandros da sedução atos irresistíveis. Finalmente Antonio estava em suas mãos, feito um ratinho dócil, alimentado com bocadinhos de queijo Brie, não por acaso seu favorito.
Sexo foi o encontro dos mesmos gostos: a fome intensa, o completo despertar da gula para depois, saciar parcialmente a luxúria. E completando o ciclo de pecados, cada vez mais fortes e exigentes, exibia o ciúme como fraqueza, aparentemente a única no meio de tantas qualidades:
- Antonio, nunca senti isso por homem algum.Desculpe, mas tudo com você é diferente.- O namorado ainda tinha nas mãos o celular, com toda a agente feminina deletada.
- Você sabe que o que sentimos é forte demais, não dá pra controlar mas eu sei que estou errada.- E chorava copiosamente. Balbuciando desculpas entre soluços cada vez mais fortes, como sempre esperava o namorado com um roupão leve, banho recém tomado e nada além da pele cheirando a hidratante.
- Amor! Não estou zangado, só que todas estas mulheres são clientes importantes. Tudo bem, esqueça tudo. - Ele ligou o laptop e digitou a senha pessoal de acesso.
- Viu? Fico imaginando o que há nestes arquivos, emails, pra você não deixar aberto e bloquear meu acesso. Eu nunca senti isso antes, eu te amo tanto! - Já não chorava quando começou a reclamar sobre senhas e segredos, o pano acetinado da roupa deslizou deixando um ombro à mostra.
- Laura, tudo aqui está relacionado ao meu trabalho, não há nada com que se preocupar, nenhuma ameaça ao nosso relacionamento. – Antonio era extremamente calmo, a fala mansa e tranqüila.
- Não penso assim, meu laptop não tem senha. Se quiser pode olhar a vontade, não tenho nada que você não conheça! - Abriu o computador e praticamente jogou na mesinha ao lado do namorado.
Dois meses morando juntos e ela praticamente não desgrudava de Antonio quando ele colocava os pés em casa. Toda a noite eram ceninhas e ele parecia deliciado em ser o centro das atenções. Laura percebeu e passou a caprichar nas implicâncias:
- Eu jamais faria isso, respeito sua privacidade e não há razões. - Antônio passou os braços sobre os ombros da moça e a envolveu em um abraço forte. Depois foi até a sacada do apartamento e acendeu um cigarro.
- Droga! Você é tão perfeito e eu só faço besteiras. Desculpe amor, juro que não vou mexer nas suas coisas. Prometo. – Laura caminhou até Antônio, ele ainda olhava as luzes da cidade quando ela começou a se esfregar. A sensação de estarem na sacada, praticamente à vista do vizinho, caso este fosse tomar um ar, mexia com o imaginário da moça. Perigo, libido e a sensação de estar sendo observada. Laura estava muito excitada e gemia baixinho... o roupão caiu no piso frio e ela riu baixinho.
- Laura, está louca? Ah! Você não tem jeito, vamos entrar amor. – Ela deu uma risada divertida e lambeu a nuca do namorado, as mãos movendo-se por todo corpo de Antônio, em segundos estavam na cama fazendo as pazes.
No mês seguinte, ela já tinha sua própria gaveta na cômoda da casa do namorado, chinelo e escova de dente. As frutas e geléia preferidas na geladeira.
Uma opinião ali, um quadro de presente, o edredom com pouco uso que ficou perfeito com a cor do quarto de Antonio, que um dia se pegou tomando banho e usando o xampu de Laura com naturalidade. Ela era tão sutil, pensou Antonio, em tão pouco tempo já não reconhecia a própria a casa.
Na sala todos os porta retratos exibiam fotos de Laura,haviam vasinhos de violetas espalhados pela varanda, e almofadas bordadas no sofá de couro preto.
Percebeu a presença de Laura no banheiro, enquanto a água quente escorria entre os amantes ele pensou que há muito não ficava sozinho.
Naquela semana, ela se mudou de vez e Antonio dividiu o closet com um mundo de sapatos, bolsas e roupas que caberiam em um magazine. Mesmo assim, apenas separou as camisas amassadas pelos vestidos de Laura e mandou passar tudo novamente. Decidiram que seria melhor que ela ficasse em casa, até que alguma boa oportunidade de emprego surgisse. Assim, não iria mais às entrevistas em agencias nem passaria o dia perambulando de escritório em escritório:
- Afinal só servem como desculpas para as mesmas cantadas.- Laura instigava o ciúme do homem.- Sou obrigada a me livrar de todas as formas de assédio, pura perda de tempo, não agüento mais passar por tantos transtornos. Fui uma modelo famosa, agora com a idade...
- Querida, você só tem vinte e seis anos e ainda pode estudar e fazer um concurso público. Até lá o que ganho nos sustentará sem problemas, fique tranqüila e aproveite o tempo para cuidar do nosso amor.- Laura detestava trabalhar e mais ainda estudar, tudo que desejava era casar rapidamente e garantir o futuro.
Antônio era rico, diariamente saía bem cedo para o escritório de advocacia e só retornava à noitinha. Tempo suficiente para que ela vasculhasse gavetas e pastas procurando segredos sobre o passado de Antonio.
Definitivamente eles formariam uma família imponente, Laura olhou a foto dos pais de Antonio com atenção, o casal transpirava poder e dinheiro . Imaginou seu próprio álbum de retratos e sentiu ciúmes por ainda não fazer parte daquela estrutura.
Sabia que os futuros sogros viviam praticamente isolados em uma fazenda no interior, tinham por hobby o cultivo da lavoura orgânica para consumo próprio e nunca vinham à capital. Antonio os visitava quinzenalmente, desde o início da relação Laura desconfiava quando ele passava o final de semana fora de sua vigilância. Apesar do namorado haver explicado que os pais eram um pouco arredios e não recebiam visitas, Laura decidiu que precisava inverter a situação.
Imeditamente traçou um plano para quebrar a resistência do amante, enquanto tomava um longo banho e vestia a melhor lingerie para esperar Antonio, sentiu orgulho da própria inteligencia. Ele não tardou a chegar, trouxe rosas vermelhas como sempre fazia quando ia viajar:
- Amor! Sei que estou pedindo muito, mesmo assim quero conhecer a fazenda e ser apresentada aos seus pais. Minha família toda já te conhece, sei que eles vão gostar de mim, todo mundo me adora!- Laura aproveitou a pausa após o sexo gostoso.
Comendo sorvete direto do pote, fazendo pose, exibindo do corpo bem feito, era a imagem da sedução. Recostada nos travesseiros altos, olhou o amado no lado oposto, brincando com seus pés, o esmalte vermelho era o fetiche que mais o agradava. Laura gostava muito de receber e mais ainda, dar prazer, o que para muitos era complemento, para ela era o ponto mais forte da relação.
Laura perdeu as contas de quantos homens havia literalmente deixado de quatro, prontos a obedecer, ceder, e fazer qualquer coisa por ela. Foram viagens, carro do ano, jóias, desde os tempos da faculdade, onde teve um caso com o diretor e formou-se, sem jamais ter lido qualquer livro. Com o tempo, eles perdiam o interesse ou ela enjoava da cara do amante. Nem precisava se esforçar, os homens sempre apareciam em sua vida.
Companhia nunca havia sido problema, amigas nem tanto, não tinha nem queria competição e inveja. Engatava um caso em outro, alternando empresários, negociantes, atores, todos com dinheiro suficiente ou poder. Bandido ou mocinho, Laura queria ser bajulada, passear e se divertir sem preocupações. Algumas vezes metia-se em apuros. Uma ou duas vezes as coisas ficaram feias e ela conseguiu contornar e sair ilesa, para isto contou com a ajuda do pai.
De qualquer forma para Laura era normal manipular os homens, eles se apaixonavam em tão pouco tempo e com tanta facilidade. Melhor ainda, todos eram descartados sem esforço.
Com o namorado atual, não foi diferente, fácil demais, muito fácil mesmo! Ele havia acabado de mudar para o mesmo flat, eram vizinhos de porta e freqüentavam a academia no mesmo horário, viviam se esbarrando no elevador e trocando olhares.
Quando conheceu Antônio sentiu uma atração imediata e inexplicável. Acompanhou os horários do homem e planejou os encontros casuais para puxar assunto sobre qualquer coisa, neste meio-tempo detalhes como os ternos perfeitos, o relógio caríssimo e o poder que o homem exalava, deixavam-no ainda mais atraente.
Ele tinha um quê de intimidade que ela não conseguia entender, sentia-se completa quando conversavam sobre coisas triviais, sempre assuntos que ela adorava tagarelar horas a fio e ninguém tinha muita paciência para escutar. Ele parecia adivinhar seus desejos, o chocolate preferido, a cor das rosas e a generosidade nos pequenos presentes caríssimos.
Durante um mês apenas conversaram e Antônio conquistou de vez o coração de Laura, ele a tratou com respeito e não tentou qualquer intimidade. Nunca havia acontecido antes, ser tratada como um mulher especial e decente era novidade.
O início do namoro aconteceu após uma sessão de cinema, neste dia Laura entrou pela primeira vez no apartamento de Antônio e sentiu que não queria mais sair daquele lugar. Era bem decorado e feito sob medida para seu gosto. Além do mais parecia rico o suficiente, bonito o bastante, amante regular e completamente mão aberta.
Laura contou que o pai mandava uma mesada e eram de uma excelente família. Mentiras e mais mentiras. A família falida vivia do que Laura depositava na conta da mãe, pois o pai era viciado em jogo, sempre viveu com os sogros, e nunca foi nada além de um golpista.
Laura aprendeu muito com o pai, secretamente seu maior incentivador e único amigo. Ele que tinha a mesma frase na ponta da língua, havia ensinado:- Sempre há um otário e um vigarista, o mundo é dos espertos.- Ela concordava e deixava que ele a abrasasse um pouco mais forte, dando-lhe a impressão de ser a melhor coisa que havia em sua vida. O bem mais precioso.
Em uma visita rotineira aos pais, anunciou o casamento derradeiro: - Desta vez encontrei a pessoa certa, vocês irão conhecer em breve o homem da minha vida. Rico o bastante e completamente apaixonado por mim. Obedece todas minhas vontades e compra tudo que quero.- Ela rodopiou, exibindo o vestido de uma griffe caríssima e mostrou as mãos cobertas de anéis.
- E você o conhece bem minha filha? - A mãe parou de assistir a novela e olhou Laura com carinho.- Odiaria que saísse magoada, ele a conquistou de verdade.
- Claro! Não temos segredos, ele é perfeito!- Mas não era bem assim e uma ponta de receio fez com que Laura reavaliasse a situação.
Antonio nunca apresentou qualquer amigo, alegou que ninguém era intimo o suficiente e tinha ciúmes dela.
Não falou sobre o passado, para ele tão comum quanto aborrecido. Nem na empresa onde gerenciava um posto alto, Antonio participava de festas ou saía após a jornada para um drink.
Laura não havia descoberto absolutamente nada importante, apenas que ele era muito rico e poderoso. Um homem generoso o suficiente para partilhar com ela seus cartões de crédito, com carta branca para suas compras ilimitadas.
Foi assim que desculpou a primeira regra quebrada: Jamais confiar em um estranho.
Antonio tocou o tornozelo e subiu até as coxas da mulher, a pele suave e macia sob suas mãos tremeram. Laura soltou um gemido fraco e num impulso, derramou um pouco do doce entre os seios, o sorvete de chocolate escorreu para a barriga e ela com um dedo traçou um desenho até o umbigo e sorriu.
Ao final da tarde, estavam fazendo as malas e pegando a estrada, quase oito horas de viagem até a fazenda, mas Laura estava exultante:
- Amor, eles sabem que eu estou indo? Ficarão contentes em me conhecer?- Ela apoiou uma das mãos na perna de Antônio e com a outra, mexia no som, trocando as estações sem gostar de nada.
Antonio dirigia concentrado na estrada movimentada, Laura continuou os carinhos, tentando abrir o zíper do jeans com as pontas dos dedos:
- Por favor, não quero provocar um acidente, pode ficar quieta um pouquinho?- Imediatamente ela se empertigou e fechou a cara, respirando pesadamente.
Duas horas depois, a música suave tocava em silencio absoluto e Laura avaliava se estaria valendo a pena agüentar o mau humor de Antonio. Pela primeira vez as feições duras, as linhas sulcadas no rosto expressivo e forte, deixaram-na entrever um homem que nada tinha de maleável e submisso. Um jogador reconhece o perigo e ela começou a se preocupar:
- Amor, porque não paramos na próxima cidade e procuramos um hotelzinho romântico? Vamos deixar para conhecer seus pais para outro dia? – A voz saiu trêmula, ela tentou fazer o beicinho que antes ele adorava.- Antônio demorou tempo demais para responder, com uma simples negativa movimentou a cabeça e fez
um muxoxo.
- Desculpe se eu fiquei insistindo. Nao fiz por mal.
- Dá pra você ficar quieta? Esta serra é cheia de curvas, não consigo dirigir com teu miado irritante.
- Amor, está me assustando, nunca me tratou assim. Era para ser um passeio romântico e virou um pesadelo.Vamos voltar para casa.
- Você está me tirando do sério. Cale a porra desta boca! – Ele falou baixinho.
- O que? Está louco? O que está acontecendo? Vou sair desta merda agora, não tenho nada a ver com sua doideira, aqui não fico!- Laura tateou a maçaneta do carro ignorando a velocidade que trafegavam, estava realmente preparando-se para pular sem medir as conseqüências.
O carro foi jogado no acostamento e Laura não teve tempo para reagir ao soco no rosto, a última coisa que viu foram os olhos injetados de uma fúria até então, desconhecida. Desmontou como uma boneca de pano, Antonio abriu o porta luvas e pegou uma corda fina bem resistente, principalmente depois dos nós apertados que imobilizaram as mãos da mulher.
Mais para revidar as ofensas do que propriamente garantir que Laura escapasse, deu alguns tapas fortes no rosto bonito e sorriu. Notou as manchas roxas que já começavam a surgir na pele claríssima, e sorriu novamente. Da boca machucada de Laura, um filete vermelho confundia-se com o batom borrado. Tornou a rir mais alto e quase aliviado.
Reclinou o banco e apertou o cinto de segurança, ajeitou a cabeça de forma que ela parecesse estar dormindo. Mentalmente refez as contas e calculou que em mais duas horas estariam na fazenda. A noite estava bonita e a lua iluminava a estrada deserta, enquanto dirigia pensava no quanto gostava daquela calmaria, do silencio da madrugada e do cheiro do campo. Aumentou o som e cantarolou uma de suas canções preferidas.
Castigo
Laura sentiu dor nos pontos inchados onde havia sido socada, depois ódio de si e do homem que a enganou. Em seguida olhou ao redor, procurando alguma coisa além da cadeira onde estava amarrada, a sala grande e bem iluminada exibia as paredes nuas e o chão de cimento queimado. Não havia janelas, apenas uma porta de ferro e o sistema de refrigeração ligado no mínimo, renovando o ar sem qualquer ruído.
Fechou os olhos, estava com medo e não podia perder a razão. Lembrou que já havia sido presa com um namorado traficante, ele negociou a liberdade oferecendo Laura aos marginais. Foi obrigada a fazer sexo com vários homens ao mesmo tempo, apanhou e terminou em um hospital público tratada como prostituta. Era o passado que ela escondeu de todos, nem a família soube o quanto esteve perto da morte.
Abandonou a vida de festas quase diárias, onde todos os amigos viviam drogados.Voltou para a casa dos pais e passou um tempo quase reclusa.
Completamente refeita um ano após o incidente, mudou-se para um bairro bom e começou vida nova, tudo parte de um plano para conhecer algum tolo com dinheiro.
Ela escolheu Antonio como aposentadoria, fim de carreira em que ele seria seu golpe derradeiro. Nunca desconfiou que ele agiu como um joguete em suas mãos. Com raiva, admitiu que não seguiu seus instintos quando escolheu aquele homem, agora ela estava a mercê de um completo estranho em que apostou tudo em menos de três meses de convívio.Ouviu passos nos degraus e finalmente a chave girou na fechadura.
Antonio e um casal entraram em silencio e durante algum tempo a observaram, finalmente Laura sussurrou:
- Por favor, eu não sei o que está acontecendo. Porque estou amarrada?- Reconheceu a senhora da foto vista no apartamento, só que ele parecia muito mais velha, percebeu que o homem era mais idoso ainda.
-Fique quieta!- gritou o homem com a voz rouca e cortante. -A boca retraída e ligeiramente torta, sinal claro da seqüela de um derrame. As mãos agitaram-se nervosas e ele começou a chorar copiosamente. Imediatamente foi amparado por Antonio e retirado da sala, antes de sair a mulher olhou Laura com firmeza:
- Você vai pagar tudo que fez com minha família, gostaria de assistir cada minuto da sua agonia mas meu marido precisa de mim. Esperamos muito por este dia.
- Mas porque tanta raiva? Eu não os conheço, nunca os vi antes e há muito pouco estou com seu filho. Não me deixe com este louco. - Laura chorava. A senhora aproximou-se e ambas respiravam profundamente:
- Você teve piedade de Julio? Você não se lembra, estava mais preocupada com os fotógrafos. Durante o velório do meu filho, vi sua frieza, ouvi seus comentários com as amiguinhas que te acompanhavam. Eu estava lá, mas não fiz parte daquele circo de maldades. Meu filho suicidou-se com um tiro na cabeça em um cortiço imundo, um jovem cheio de vida e com um futuro inteiro pela frente.
- Não lembro de nenhum Julio.
- Como não? Esqueceu do quanto usou meu filho para pagar suas contas? Julio seu monstro! Era um rapaz decente até te conhecer.
- Julio! O médico? Julio Guedes? Isto foi há três anos. Eu era uma idiota que não tinha a menor noção do que estava fazendo. Isto não pode estar acontecendo!- Laura enfrentou o tapa no rosto, a mão da velha eram fracas demais para machucar, encarou os olhos frios com ódio.
- Julio Guedes. Meu filho tirou você das ruas , deu tudo que você pediu e sonhou, quis te dar uma vida decente. -A mulher acentuava o você, apontando o indicador para o rosto de Laura.- Você o deixou morrer sem socorro, naquele buraco cheio de drogados enquanto fugia com seu cafetão. E ainda foi ao enterro com a cara mais cínica do mundo. Se não fosse a idade, eu mesma te daria uma lição! – Neste momento Antonio aproximou-se e retirou a mãe da sala.
- Mas não entendo, seu nome é Viegas e não Guedes. Como eu poderia saber que era seu irmão? Por favor, pare com isso Antonio, eu larguei esta vida, não é justo!
Laura começou a chorar e sentiu o corpo tremer de medo e frio. Havia conhecido Júlio em uma festa de um grande laboratório químico, imediatamente ela se informou com conhecidos e como era rico o bastante, terminaram a noite em um apartamento no melhor bairro da cidade.De repente lembrou que ele havia dito que os pais eram cirurgiões conceituados, da alta sociedade paulista e trabalhavam em um hospital famoso.
Julio queria que ela freqüentasse bons lugares, brigavam porque Laura só se interessava por baladas e tomava qualquer porcaria alucinógena. Apaixonado e com dinheiro suficiente para bancar suas loucuras, Laura foi enredando Júlio completamente, arrastando-o para seu mundo podre.
Fez com que ele experimentasse as drogas que usava na época, induziu o consumo ao máximo e foi tirando o lucro com o traficante que também era seu amante. Laura havia colocado esta fase da vida em um lugar bem distante da memória, mas agora ela retornava com força total e não eram imagens bonitas.
Quando Júlio começou a pressionar para que fosse somente dele, Laura resolveu terminar tudo. Não acreditou nas ameaças de suicídio nem quando ele fez a última ligação pedindo ajuda, seu nome nunca foi relacionado à morte do jovem médico.
Como a família havia descoberto o que ela havia feito, era um completo mistério.
Laura começou a gritar que precisava ir ao banheiro, depois chorou sentindo a urina escorrer pelas pernas nuas, o vestido leve de verão grudado de suor começou a exalar um odor acre. Ele a olhou com repulsa e com auxílio de uma tesoura arrancou as roupas sujas da mulher.
Laura sentia sede e o estomago vazio doía, uma risada nervosa escapou quando pensou nos chocolates que deixou de comer por causa de dietas. Calculou que estava sentada há pelo menos dez horas, havia perdido a noção do tempo e a única coisa que importava era encontrar uma forma de sair dali viva. Os olhos de Antonio eram duas bolas de fogo sem o menor resquício de emoção.
Ele ficou algum tempo parado analisando o corpo da mulher, depois começou a traçar com uma caneta várias linhas e rabiscos. Laura não conseguiu gritar quando ele mas o horror aumentou quando ele saiu rapidamente da sala. Voltou minutos depois empurrando um carrinho com instrumentos de corte, facas, bisturis e outros que ela jamais havia imaginado ser possível construir:
- Você não sabia que Júlio queria ser cirurgião como nosso pai? Claro que não, estava mais interessada em gastar o dinheiro dele. Infelizmente te conheceu e o final foi nojento. Seis meses e ele perdeu a vontade, a decência, os valores e finalmente a vida. Eu segui meu irmão nas noitadas, tentei tudo para traze-lo de volta, até mandei oferecer dinheiro pra você deixar o coitado em paz.
- Eu não aceitei. Lembro que um amigo dele quis me dar um cheque em branco, mas eu recusei porque gostava de Júlio. De verdade. Ele era viciado, nunca obriguei seu irmão a consumir nada. Ele era um maldito drogado! Que merda!
– Mentirosa, você usou meu irmão como usa todos que passaram na sua vida.Laura, você não ama nada nem ninguém porque não é capaz de sentir qualquer sentimento. É uma mulher nociva e não merece viver.
- Eu estou grávida! Eu estou grávida! Era isso que eu ia contar para sua família, seu idiota.
Antonio começou a socar a mulher com toda raiva, no início ela reagiu com gritos e xingamentos, depois foi perdendo as forças. Aos poucos parou de chorar e passou a aceitar o castigo em silencio. Quando as mãos de Antonio pressionaram o pescoço frágil , Laura escutou o pai de Antonio mandando que ele parasse:
- É mentira desta bruxa! E eu jamais ia querer ter um filho com ela. Pai vamos acabar logo com isso, o senhor prometeu que iríamos nos livrar desta vagabunda.
- Filho, não posso sacrificar mais um inocente.
Laura sentiu uma picada no braço, em seguida a sala começou a rodar e a sensação era conhecida. Finalmente ela relaxou. O pai de Antonio reclinou a cadeira ao máximo, imediatamente a esposa trouxe soro e eles cuidaram de Laura, coletaram sangue para exames e limparam os ferimentos.
Laura estava com o rosto enfaixado, a dor no maxilar era insuportável ela começou a gemer. Alguém checou seu pulso, um analgésico foi administrado e logo a dor diminuiu e ela voltou a dormir:
- Gostaria de ver esta mulher morta! – Antonio olhou o corpo da moça com desprezo. Apesar do ódio que nutria, em nada adiantaria pedir aos pais que a matassem.
Era assunto encerrado, eles haviam decidido com muito cuidado cada passo e ele não podia interferir.
Antonio voltou para casa naquela noite, deixou Laura com os pais e iniciou a segunda parte do plano. No dia seguinte a firma de mudanças chegou cedo ao apartamento e em pouco tempo tudo que tinham foi encaixotado e levado para um depósito.
No trabalho Antonio era o retrato da felicidade, animado com a transferência para o exterior, não escondia o entusiasmo e a todo momento recebia ligações da namorada. Em vinte dias partiria para a matriz, ocuparia um cargo superior e a promoção daria um novo impulso à sua carreira. Antes que a família de Laura a procurasse, Antonio marcou encontro com o sogro em um restaurante e entregou um pacote volumoso:
- O que significa isso Antonio? Porque minha filha não veio?
- Estamos de partida para Londres e não quero que vocês continuem explorando minha mulher. Aceite isso como um presente de despedida, estou sendo generoso até demais.- Ato contínuo, empurrou o envelope com cem mil reais.
- Quero falar com Laura, isto é ultrajante!- O homem discretamente conferia o dinheiro sob a toalha da mesa.
- Vai ser impossível, ela escolheu manter nosso relacionamento e a sua péssima reputação em nada contribui. O senhor é um homem sujo na praça, conhecido por seus golpes e cheio de dívidas de jogo. Use este dinheiro como quiser, mas não nos procure para pedir mais nada, é nossa última ajuda.
- Você tira vantagem por ser rico e faz o que quer, espero que minha esposa não adoeça com tanta ingratidão.
- Dê lembranças à sua esposa e em breve Laura mandará um email contando as novidades. Estamos indo morar fora do país, portanto longe das suas garras, nem ouse aparecer sem ser convidado.
Antonio deixou o sogro falando sozinho, respirou o ar gelado enquanto caminhava pelas ruas e sentiu-se mais leve. Gesto automático ligou para os pais e conversaram em código, tudo corria bem e não havia com quê se preocupar. Em poucos minutos entrava no condomínio luxuoso e exclusivo. Na guarita um senhor cumprimentou:
- Boa noite senhor.- Antonio sorriu simpático e seguiu adiante.
A casa permaneceu intocada desde que ele partira, todos os pertences de Júlio estavam ali e com eles as melhores lembranças de Antonio.Não eram irmãos de sangue, os Guedes haviam adotado Antonio aos três meses, quando o encontraram doente e abandonado pela família. Foi assim que eles cresceram juntos, descobriram a vida e foram felizes até Laura aparecer. Antonio não entendeu a obsessão de Júlio e pararam de se falar, odiou a mulher que os separou e durante todo o tempo em que Julio e Laura ficaram juntos, eles os seguiu ou mandou vigiar.
Tentou alertar Julio sobre Laura e não conseguiu, perdeu seu único amor, o melhor amigo e tudo que realmente o fazia feliz. E jurou se vingar, mesmo que custasse tudo que ele mais prezava, mesmo que ele tivesse que mentir e ser outra pessoa.
Laura
Ninguém imagina o quanto odeio Antonio e sua maldita família, detesto inclusive a criança que fui obrigada a gerar. Deixei o Brasil e o tempo inteiro me vigiaram, tive uma gravidez péssima. Passei meses deitada, trancada em um quarto e sendo examinada pelo pai de Antonio diariamente.
Quando tentei fazer greve de fome, fui alimentada via sonda e amarrada. Preferi voltar a comer e ganhei uma televisão e um som. Daquele dia em diante aceitei que não conseguiria fugir, minha barriga pesava e sentia dores se tentasse caminhar.
Quando cheguei ao casarão torcia pelo dia da fotografia, era a única vez que saía para o jardim e outros aposentos da casa. Toda a família se reunia em várias poses, desde o início da gravidez foi assim, mês após mês fizemos fotos sorridentes em ocasiões forjadas.
Normalmente eu aparecia sentada e eles se movimentam ao redor. Antonio e a mãe compravam vestidos de alta costura próprios para gestante, só me restava exibir um sorriso convincente e fazer cara de feliz.
Depois do nascimento de Julinho, perdi os movimentos e mal consigo articular uma simples sentença. Felizmente com a doença não precisei participar das malditas fotos, fiquei livre das gracinhas do bebê desconhecido. Acho que ele envia fotos da criança para minha família, que devem estar abismados com a beleza da propriedade e todo o resto.
Antonio também manda algum dinheiro em meu nome para meu pai, ele sempre se gaba de ser muito esperto, mas eu quase consegui fugir durante a viagem, se não fosse a medicação contra enjôo que me deixou dopada, eu teria pedido socorro e contado que estava sendo sequestrada.
Não posso fazer nada, sou prisioneira do meu próprio corpo, durante o parto sofri um acidente vascular que me transformou em uma inválida. Fui obrigada a assinar alguns papéis para ter o bebê em casa, não sei como eles conseguiram consentimento com uma gestação tão complicada. O dinheiro compra tudo. Desconfio que meu acidente foi proposital,passo os dias sob os cuidados de uma enfermeira sob supervisão da mãe de Antonio.
Uma velha ruim, que me odeia e faz o possível e impossível para tornar minha existência pior. A única distração é a televisão e como não falo inglês, passo o tempo imaginando o que eles dizem. Antonio algumas vezes vem me ver, ele gosta de me torturar detalhando mil formas como gostaria de me matar, ele conta cada detalhe com a maior satisfação e eu não demonstro a menor emoção, depois choro e o amaldiçôo.
Desde que os pais dele vieram viver conosco por causa do neto, remoçaram e parecem felizes com o menino. Sempre penso que se esta criança não existisse eu estaria morta, o que seria muito melhor que a vida miserável que me obrigam.
Adoraria jogar o bebê pela janela mais alta, faria tudo parecer culpa dos pais de Antonio e todos teriam pena de mim.
Depois iria aos jornais e contaria minha historia sórdida e eles estariam acabados. Não tenho instintos maternais ou eles foram destruídos quando me prenderam nesta cama.
Quando Julinho estava com quase um ano, Antonio trouxe um médico para me examinar e eu pensei que fosse um especialista para me ajudar . Mais tarde vieram me contar que tudo não passou de encenação. Apenas pediram uma segunda opinião de um médico medíocre, tudo para confirmar o tratamento do pai de Antônio, caso minha família resolvesse reclamar algum dia.
Minha imaginação correu solta e pensei em mil formas de vingança,é disso que me alimento, do ódio que sinto por todos eles.
Antonio
Antonio e o pai discutiam na biblioteca, afundados em sofás confortáveis de couro bebericando chá forte enquanto a lareira aquecia o ambiente:
- Pai. Por favor, não suporto conviver com esta mulher imprestável. Para que tudo isto? Posso conhecer uma mulher muito melhor e ser feliz de verdade. Não entendem que minha vida está péssima? Quero me libertar deste pesadelo.- Antonio fechou os olhos. Estava verdadeiramente cansado.
- E o que sugere? Que eu a mate? Para todos ela sofreu um problema no parto, mas se descobrirem a verdade...
- Ela pode ter outro ataque fatal, sei lá mas nos livre desta coisa, pelo bem de Julinho que daqui a pouco vai começar a entender e fazer perguntas. Pai, o senhor não vai viver pra sempre, eu não sei o que fazer com Laura...
-Ouça, posso diminuir as doses da medicação e ela vai recuperar alguns movimentos, vamos simular um suicídio e tudo vai parecer aceitável. Induzimos o estado atual após o parto, foi fácil porque estávamos em casa e a enfermeira é tão inexperiente que a mantemos até hoje cuidando da megera. Eu mesmo continuei administrando os medicamentos e o tempo fez o resto, Laura hoje é mais doente que o desejado.
- Os pais de Laura podem desconfiar, vou gastar uma boa quantia para que nos deixem em paz.
- Já pensei nisto, por este motivo ela precisa apresentar alguma melhora e depois como é vaidosa não vai querer viver desta forma. Laura está acabada, não consegue falar e mal fica de pé. Suicídio é muito plausível, vou chamar um bom fisioterapeuta e ela vai começar a fazer hidroterapia.
- Pai, lembra dos papéis que ela assinou para fazer o parto em casa?- Antonio serviu-se de mais chá e jogou um torrão de açúcar no liquido fumegante.
- Claro que sim, mas não quero pensar nisso agora. Ainda há muito pela frente e não vamos nos precipitar.
A piscina era enorme e Laura sentiu medo, agarrou os braços da cadeira de rodas com força e recusou ajuda para entrar na água quentinha. Antonio explicou que ela podia confiar no profissional, a enfermeira também estava ao lado dela, o que poderia acontecer com tanta gente ao redor? Laura era desconfiada e não aceitou, no dia seguinte Antonio trouxe um salva vidas e outra enfermeira.
Laura aos poucos se acalmou e permitiu que a tocassem, começaram muitas séries de exercícios onde os músculos foram trabalhados, após tanto tempo a moça sentiu dores e alguma esperança, antes não tinha qualquer reação. Sob vigilância dos pais de Antonio e da enfermeira, o profissional passava algum tempo com Laura na piscina, um dia trouxeram Julinho e ela brincou com o filho pela primeira vez.
Seis meses se passaram. Um pouco de paz apareceu no semblante da paciente e ela passou a sorrir com mais facilidade e tratar os pais de Júlio sem a ironia maldosa que eram sua marca. Laura fazia progressos, o fisioterapeuta e toda a equipe estavam exultantes. Feliz com os resultados ela começou a traçar muitos planos:
- Antonio, você poderia me levar para passear de carro? Queria tanto ver a cidade. – Não houve resposta, eles estavam na sala de estar tomando chá e assistindo as artes de Julinho.
Os pais de Antonio a olharam com alguma simpatia, Laura sentiu que eles estavam amolecendo:
- Eu compreendo que não mereço, desculpe ter pedido.
- Laura, eu a levo para dar uma volta se Antonio concordar. – A mãe de Antonio sorriu, os homens suspiraram longamente e logo Laura estava sentada no banco do carona, pronta para seu passeio.
Foi a primeira de várias outras ocasiões em que eles passaram a incluir Laura. Pareciam estar aceitando com naturalidade que o tempo estava curando e as mágoas sendo gradativamente atenuadas.
No aniversário de três anos de Julinho, Laura já movimentava a cadeira de rodas sozinha, um modelo adaptado com botões de controle, extremamente leve e fácil de manusear. Podia andar pela casa e usar o elevador para ir onde quisesse, desde que acompanhada pela enfermeira e a mãe de Antonio.
A firma contratada para a festa havia acabado de chegar com mesas, toldos e todo o aparato para montar. Laura assistia da janela do quarto, naquele dia ela não poderia descer por causa dos convidados, Antonio não achava seguro e vetou sua presença.
Desejou poder andar e assistir Julinho cantando parabéns, aprendeu durante o tempo em que passaram juntos a gostar do menino. Sentiu a raiva reascender novamente, eles não tinham o direito de fazer aquilo com a mãe do aniversariante, ponderou em voz alta e assustou-se. Ela estava falando, ela podia falar e eles não sabiam. Que grande trunfo tinha nas mãos.
Duas horas da manhã a casa dormia, Laura moveu as pernas lentamente e escorregou pelo colchão. O corpo leve não fez qualquer ruído no tapete espesso, começou a rastejar por todo o quarto até a porta. Destrancada. Apoiou as costas contra a parede do hall e recuperou o fôlego, continuou a se movimentar mais rápido, parou na terceira porta e testou.
Mal respirava quando entrou no quartinho azul, a babá dormia e o menino também. Laura sentiu raiva da mulher que passou toda a festa exibindo Julinho, tomando o lugar que era dela por direito, um pequeno punhal abriu a garganta da moça antes que ela pudesse esboçar qualquer ruído. Aproximou-se do berço e ficou de joelhos, puxou a ponta do cobertor e deparou-se com um boneco em tamanho natural.
Completamente confusa, tentou gritar quando Antonio e os pais atravessaram o quarto em sua direção, com a mão em riste ela tentou atingi-los com a faca. Antonio a desarmou com facilidade, mesmo debatendo-se ele a carregou até a cadeira de rodas e tomaram o elevador. Antonio e os pais encaravam Laura friamente:
- Sabíamos que você não tinha cura, na primeira chance iria matar novamente. É seu instinto Laura, um instinto ruim. É uma assassina, pronta para matar o próprio filho.- Antonio a olhava com desprezo.
- Que filho? Nunca quis este filho, nem você queria nada disso. Seus pais te obrigaram, eu pelo menos sou sincera. – Encarou os velhos e sustentou.
- Laura, sabe que matar a babá e machucar o bebê foi um ato de loucura. Agora está tão arrependida que sua única saída é o suicídio.
- Suicídio? Eu ia matar todos vocês e contar o que fizeram comigo, com certeza não seria condenada. Aqui os monstros não sou eu. Hipócritas. – Antonio levou até a parte mais funda da piscina e Laura olhou seu reflexo na água azul claro. O cheiro de cloro tão querido nas sessões de hidroterapia, agora queimavam suas narinas.
Imediatamente a mãe de Antonio surgiu com Julinho nos braços, ele ainda dormia e ela começou a desenrolar as mantas da criança:
- Tem certeza que não vamos machucar o pobrezinho? Ele está tão quentinho.
- Vamos com isto mãe, coloca ele na borda da piscina e saia. Não tão próximo senão ele vai engatinhar para a água. – Antonio deu um único empurrão nas costas da cadeira.
Ela afundou rapidamente, virou de lado e Laura presa pelo cinto de segurança, tombou o corpo para frente. Em silencio assistiram até que ela ficasse completamente imóvel. Os segundos pareceram longos demais para todos. Rapidamente deixaram o lugar e voltaram para seus quartos.
Julinho começou a chorar assustado com a escuridão, a criança não se moveu no chão frio e molhado. Ele gritou pela babá, o pai e os avós. As luzes da casa se acenderam, todos correram de um lado para o outro, a enfermeira gritou quando descobriu o corpo da babá e Antonio encontrou o filho na piscina com a ajuda da cozinheira. A policia chegou logo depois e o corpo de Laura foi resgatado, uma semana depois o funeral foi autorizado. Após investigações decidiram que Laura havia se suicidado após cometer o homicídio.
Os amigos apareceram para consolar Antonio, todos sabiam que a mulher sofria de depressão e seqüelas terríveis após o parto complicado:
- Ele estava tão animado com as melhoras de Laura, ela vinha respondendo tão bem à fisioterapia.
- Ela esperou ficar bem para se matar, é da doença eu vi em um programa na televisão. Ela matou a babá e não teve coragem de matar o filho.
- Ainda bem, senão Antonio enlouqueceria. Olhe como está mal, vamos cumprimentar os pais dele e expressar nossos sentimentos. – As duas colegas de escritório de Antonio seguiram caladas até o casal, a avó com o netinho no colo mal podia responder.
O final de Laura ocorreu com discrição, em seu testamento ela pediu para ser cremada e deixou um seguro de vida em nome do filho e alguma coisa para os pais. Eles preferiram economizar e não compareceram, alegaram que ela havia sido uma filha tão boa, que com certeza compreenderia de onde estivesse.