O Celeiro
Por Ramon Bacelar
[... sem contar as horas que passei...
-Lúcio, chega de auto piedade; essa postura não vai trazer sua filha de volta.
-Você fala como se ela estivesse morta.
-Falo como se ela... seis meses sem pistas, sem notícias, nada.
-Quer que a enterre?
-Quero que “você” saia da sepultura que cavou. Você sabe...
-Sei o que?
-Além de psicólogo... sou seu amigo. Saia dessa meu caro.]
O velho fusca rasgou o matagal do acostamento, estremeceu e com três soluços morreu. Lúcio de cabeça baixa no volante meditava; suspendeu o pescoço e notou que a paisagem natural embaçava e dissolvia pela exalação da fumaça úmida do radiador. Conferiu seu Taurus 38, apalpou a trança pendurada ao volante, mas antes de absorver a paisagem vaporosa por completo, foi tomado por um acesso de tontura, carrossel vertiginoso sem eixo nem cavalos: a vertigem da vertigem.
[-Back to work! Pegue esse caso...
-Huuummm...só se você me emprestar uma escada.
Queiróz não respondeu.
-Você sabe... a cova é muito funda.
-A volta do morto vivo!
-Náááááá, prefiro Hitchcock.
O retorno da velha ironia sardônica de Lúcio solidificou em Queiróz a certeza que o amigo retornara da tumba.]
“Mais um acesso de vertigem, um pedido de socorro e a dissolução...os sons”. Meditou Lúcio enquanto absorvia a paisagem a seu redor.
A luminosidade do fim da tarde emprestava ao cenário uma coloração vibrante e irreal, a tonalidade impressionista de um quadro em movimento, e ele pincel-fantoche manipulado por mãos desconhecidas, ferindo a harmonia fisionômica do cenário, manchando o imaculado com passos rápidos e respiração ofegante.
[-Quatro mulheres mortas?
-Provavelmente. Quatro tranças enviadas em casinhas de boneca perfumadas com talco... e uma delas com uma agulha de pinheiro no trançado.
-Huuummm... Rapunzel quer impressionar. Parece que gosta de crianças.
-Só existe um parque em mil quilômetros com uma área de pinheiros. Têm um mapa?]
A fragrância da primavera invadiu suas narinas e reacendeu a lembrança dos sentidos de Clarinha embebendo a paisagem primaveril: o colorido febril e surreal do canteiro de orquídeas, o azul celeste em cima se fundindo com o verde-azul do mar em baixo, a ressurreição da fauna e a inquietação das abelhas de movimentos e zumbidos ansiosos. <Vêm brincar comigooo!!!> Os zumbidos, os ‘sons’. Olhou ao redor e sentiu que o cenário o possuía como um espírito obssessor: era como se cada pétala, tronco e folha abrigasse um fragmento de lembrança, um estilhaço de esperança cristalizado em recordação. <Por que não vem papai?> . Apertou o passo, olhou para frente e visualizou uma cortina de neblina dividindo o horizonte acinzentado do fim da tarde, um território secretamente demarcado por alguma misteriosa força natural.
[-Lúcio, pode falar?
-Rápido, a bateria tá abrindo o bico.
-Olha, eu acho que o retorno da sua aposentadoria tá te fazendo muito bem. Eu sei que não é fácil lidar com a incerteza. Você era um pai dedicado...
-SOU um pai dedicado; até que se prove o contrário... Clarinha não está...
-Calma. Desculpe. Tomou os remédios?
-Acabaram... tomei as últimas caixas no último domingo.
-Por que não me avisou? Passe em meu consultório agora e pegue umas amostras grátis.
-Não posso. Estou há uns 30 km dos pinheiros.
-Volte, não pode ficar sem a medicação-Suspirou- Lúcio cuidado...você... você está indo “fundo demais” (low battery, low battery) fundo dem... ]
As sombras prematuras aos poucos intimidavam os últimos resquícios de luminosidade, conquistando território, enegrecendo a paisagem, indefinindo detalhes e contornos, transmutando o cenário em um pálido farrapo de sua existência matinal, um embaçado labirinto natural desbravado com desmedido abandono.
Sentiu o vento acoitar, a roupa colar, o objetivo pulsar; o solo, antes umedecido, agora uma sopa de lama movediça enrijecia os músculos, impedia movimentos, emaranhava os sentidos; apalpou o bolso e retirou com mão trêmula uma cartela vazia de Valium: a ansiedade da ansiedade.
[-Queiróz? Estou ligando de um orelhão de beira de estrada.
-Você está bem?
-Estou quase lá.
-Não foi isso que perguntei.
Lúcio suspirou.
-Olha... eu recomendei seu retorno da aposentadoria como uma terapia. Você o transformou em uma obsse...
-Vai começar?
-Você deveria está atrás do assassino e não da sua filha...
-Lúcio...Lúcio... está na linha? Escuta...
Click.]
O cri-cri nervoso dos grilos e os lamentos das corujas anunciavam como uma comissão de boas vindas a chegada da vida noturna e no céu, como um demiurgo imponente, a lua cheia emanava uma iluminação sebosa e raquítica na paisagem enegrecida, colocando timidamente em relevo troncos de carvalhos imemoriais, palhas de ninhos de pardais, curvaturas de raízes rebeldes que entediadas com sua existência subterrânea e claustrofóbica, erguiam novas moradas na textura do chão pedregoso e na liberdade dos espaços solitários.
O vento castigava sua face com açoites espasmódicos, paralisando movimentos , intimidando suas pálbebras; embaixo a lama movediça sugava sua energia vital com estridências ásperas e sucções repentinas, sons alienígenas feriam sua compreensão, confundiam sua audição <cri-cri papai porque não entracri-cri,vembrincar papai soc...> Calafrios percorriam seu corpo parindo suores aderentes, socorros impotentes; sentiu um abrandamento da sucção, <papai!> uma ferida em sua audição, olhou para baixo e o que antes era um caudaloso universo de lama movediça agora tinha aspecto de terra úmida batida, suspendeu o pescoço e percebeu que os pingos grossos agora o acariciavam como impotentes alfinetes úmidos, alfinetes transmutados em agulhas de pinheiros que o vento carregava e picava sua face; olhou para frente e visualizou uma chaga arquitetônica ferindo o horizonte: cercada de pinheiros, uma fazenda decrépita agonizava à sua frente. <papai!>.
[-Marli, ligue para o comissário e passe a ligação para meu consultório.
-Qual o assunto Dr. Queiróz?
-Diga que preciso conversar com ele imediatamente. Tão logo receba a ligação cancele as consultas restantes.
-OK.
Click.]
Como um diabo ardiloso vasculhou o cenário, mas não abarcou a totalidade dos detalhes. Andou com passos cautelosos , feriu os ouvidos com um barulho áspero e visualizou embaixo de sua bota uma casinha de boneca que agonizava estraçalhada. <porque não vem papai?> No perímetro do curral foi invadido por um odor de talco infantil e carne apodrecida, sentiu a intensificação dos calafrios e tremedeiras, a cabeça latejante, olhou para baixo e foi tomado pela personificação da irracionalidade: estendidos no curral, quatro carcaças de porcos adornadas com casinhas de bonecas gargalhavam para o vazio com sorrisos petrificados. <aqui!> Cambaleou para longe da visão luciferina, intensificou o senso de cautela, mas os sentidos não responderam aos seus chamados e em meio ao caos sinestésico da confusão sensorial, a porta de um celeiro hipnotizou suas retinas, arranhou os seus ouvidos <Papai aqui! Ahahahahah! Hihihihi.>. Sentiu as veias enrijecerem, a pele esticar, os sentidos embotarem e com um movimento involuntário foi de encontro à porta que cede sem pestanejar.
Envolvido na rede ramosa dos sentidos emaranhados, vê o mundo rodar, a visão embaçar, a audição intensificar <aqui papai!>, o celeiro girar, girar, girar: Senhor Ansiedade convida madame Vertigem para dançar, o baile vai começar!
[-Doutor Queiróz? Comissário falando.
-Preciso de sua ajuda.
-Sim.
-Vou tentar resumir. Aconselhei o Lúcio a retornar ao trabalho para lidar com a perda de Clarinha.
-Prossiga.
-Acontece que a investigação se tornou uma obsessão, uma idéia fixa. Foi sozinho atrás da Rapunzel sem a medicação.
-E se ele não tomar os remédios...
-Tudo.
-Pegue o mapa e me encontre na estrada principal.
Click.]
<Adivinha papai! Adivinha hihihi!!> Afogado e impotente no lusco-fusco do celeiro andou de quatro sem olhar, o objetivo a pulsar, a audição intensificar <adivinha onde estou? Dentro ou fora, fora ou dentro foradentrodentroforadentro...> os sentidos...girar, girar, girar. Apalpou o soalho, correu as mãos pelo rodapé e sentiu na parede curvaturas de consistência rígida, ângulos frios e afiados e uma textura semelhante a um tapete, suspendeu o pescoço e o vertiginoso carrossel dos sentidos descortinou à sua frente uma cortina de tranças e esqueletos dispostos de maneira irregular <hihihi> que percorria a extensão retangular do celeiro e se perdia no universo de piche no perímetro dos estábulos.
[-Estamos chegando comissário.
- Se a lama permitir.]
<cavalhinho toc toc> Seguiu apalpando o rodapé em direção aos estábulos de joelhos inchados, sentidos emaranhados <cavalhinho toc toc>, desbravando a incerteza em direção ao sepulcro de indefinição à sua frente. Ouviu um estalo cristalino ao mesmo tempo que sua mente foi inundada por uma dor lacinante: sua mão revestida por um líquido quente clamava por socorro; acendeu um isqueiro, retirou o estilhaço de vidro e deu vida ao candeeiro estilhaçado.
<Aqui papaaaiii!!!! Hihihihi! HAHAHAHAHA!!!>
[-Uhúúú, tanta lama e buraco...
-Daqui para frente terra batida.
-Saímos do inferno hein?
-Não, atravessamos o portal.
Queiróz emudeceu.]
<cavalinho toc toc!>
A claridade leitosa do candeeiro fundida com a sebosa iluminação lunar que penetrava na janela lateral, revestia o celeiro com uma irrealidade ondulante e evanescente; sentiu-se explorando uma dimensão desconhecida, desbravando um anti-espelho alienígena. Olhou ao redor e a mente girou em sincronia com o celeiro: ângulos e formas dissolviam, transmutavam, evanesciam , não definiam. <papai!> As estridências circulavam, encurralavam, não sabia se os sons solidificavam de dentro para fora ou de fora para dentro <dentro e fora foradentro hihihi>; Lúcio rastejava, ofegava e o que era breu no perímetro dos estábulos agora ganhava um brilho opaco com a tímida emanação do candeeiro; os sons rodeavam, aproximavam, dominavam:
<Cavalinho toc toc>
A mente girou.
<No estábulo! Não estou fora papai, estou dentro! Dentro! Dentro fora fora dentro dentroforaforadentro... hihihi>
A visão turvou. Tentou... tentou...
<Aqui!! socooorro!!!>
Alimentado pela estridência do último clamor, jogou-se no estábulo com a chama do candeeiro beijando seu pulso. Tomado pelo ardor da chama consumindo sua mão, alimentou as retinas com a visão de uma carcaça gigantesca que parecia ser um misto de porco com cabeça de cavalo; tranças negras e laços vermelhos adornados no pescoço beijavam o perímetro labial e feriam a brancura de uma arcada dentária que gargalhava para a escuridão em sua existência petrificada. <Papai! Aquí!!!> Afogado no delírio opiáceo da visão atormentada, intimida as retinas com o fechamento palpebral, mas o impulso se rebela e novamente é jogado na realidade infernal: montado na carcaça, uma caricatura de idoso com tranças balançava uma casinha de boneca sussurando uma canção de ninar; a pele quebradiça e acinzentada, como uma parede ressecada, se desprendia da superfície em movimentos ondulantes, acariciando duas bexigas ressecadas semelhantes a seios e desapareciam em um abismo espiralado que parecia ser a fusão das cavidades do umbigo com a vagina. <Socorrooo!!!>
-Clarinhaaa! Cade você!!!!
<Aqui papai!! Aqui!!! Hihihihi!!!!!!!>
A dor dilacerante na mão esquerda não o impediu de direcionar o candeeiro na face da criatura, mas quando percebeu que os gritos de sua filha emanavam da cavidade labial da monstruosidade, arremessou-o na aberração e de imediato foi envolvido pela escuridão.
O silêncio solidificou e o envolveu em um casulo de indefinição e incerteza.
-Quem é você?!!
-Cavalinho toc toc, cavalinho toc toc, hihihihihi!!!!
-Desgraçada!! Quem é você!!!!
-Vêm brincar comigooo!!!Hihihihi.Hahahahahahah!!!!
-Cadê minha filha!!! Clarinhaaaa!!!!!
-Estou aqui papai, estou aí papai, estou aqui papai, aí papai, aí, aí, aíííí!! Dentro fora foradentrodentroforaforadentro...
-Dentro da onde filhinha? De onde? ? Onde?????!!!!!!
-De VOCÊÊÊÊÊÊ AHAHAAHAHAHAH!!!!!!!!!!!!
-AAAAAAAAAHHHH!!!!
De punhos cerrados tampou os ouvidos enquanto dilacerava a testa no chão pedregoso que o feno não amortecia, gritos de agonia costuravam a escuridão e retornavam aos seus ouvidos como badalares infernais, adensando suas dores, enegrecendo seu espírito. Apalpou a cintura com a mão direita, direcionou o revólver em direção a monstruosidade, mas antes de apertar o gatilho foi tomado por um movimento involuntário e sentiu a frieza do cano do revólver tocando seu pescoço: queria aniquilar a dor, os sons, a carcaça, a monstruosidade, o vazio... por dentro e por... <dentro fora, foradentrodentrofora HAHAHAHAHAHA!!!!> CLARINHAAAA!!!
BAAAMMM!!! BAAMMM!!!! BAAMMM!!!
***
Saltaram do carro e foram em direção a fazenda. No celeiro, a coloração do feno começava a ganhar uma tonalidade levemente enegrecida pelos primeiros toques de uma chama tímida.
FIM
Ramon Bacelar é contista, crítico e ensaísta. Mantém um blog sobre cinema, quadrinhos, literatura e cultura underground (Maquinário da Noite: www.maquinariodanoite.blogspot.com) publica contos no Recanto das Letras http://www.recantodasletras.com.br/autores/ramonbacelar e em seu site pessoal, Miragens Ofuscantes: http://www.miragensofuscantes.blogspot.com
Leiam e comentem:
A Vingança do Ghoul:
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A Bruxinha:
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Depois da Missa:
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Machado sem Assis:
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O Vigiado:
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Saciado:
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Jogo de Bolas de Gude:
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A Prova:
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A Caminho:
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Um (quase) monólogo entre uma assombração e o reflexo assombrado:
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O cataléptico e o verme:
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A Ausência:
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O Balanço:
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Viagem ao Âmago:
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O Garoto que assombrava casas:
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A Miragem Inconcebível:
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