Amigo Imaginário
Aos oito anos de idade eu tinha um amigo imaginário. Sempre considerei o Fred como o meu lado mais peralta, o culpado pela maioria das encrencas em que me meti. Mas não me arrependo: foi por causa do Fred que eu pude ter uma infância diferente da programada pelos meus pais, fugindo das aulas de piano, esgrima, natação, tênis, equitação etc. Foram os meus pais e os psicólogos contratados pelos meus pais quem me disseram que o meu amigo imaginário seria a compensação por uma perda que eu tive naquela época. O engraçado é que só quando atingi os dezessete anos é que me lembrei do que havia perdido que precisava ser compensado.
O meu avô era um aventureiro por profissão. Curador do museu da capital, tinha orgulho em manter uma coleção particular em casa, geralmente de artesanatos de tribos exóticas de diversas partes do mundo, porém de pouco valor para merecerem um espaço no museu. Sempre que viajava para adquirir uma peça para o museu voltava com outras duas ou três para si. Como seu único neto, eu me divertia muito quando ele me conduzia pela mão explicando o valor de cada objeto, a história de sua origem e mostrando no mapa mundi de onde ele viera. Alguns me faziam sorrir, porém outros me davam medo. Mas nenhum me amedrontava tanto quanto a pequena caixa branca, feita de ossos humanos, com caveiras entalhadas na tampa e proveniente de um povo desconhecido da antiga Mesopotâmia. A história que meu avô contava a respeito dela era que era capaz de realizar os desejos de quem a abrisse. É claro que nunca o vi a abrindo na minha frente e eu também nem queria chegar perto daqueles olhos que pareciam me encarar. Me davam pesadelos. Talvez tenha sido por este motivo que depois de um tempo o meu avô parou de me levar na sua sala de objetos exóticos. Não me lembro de ter voltado lá novamente até atingir a adolescência.
Toda escola tem um valentão e o da minha se chama Raul. Raul gosta de bater nos outros, sente um prazer doentio em ser um brutamontes malvado. Eu e meus colegas sempre mantivemos a devida distância dele esperando nunca sermos importunados. Isso funcionou até o dia em que o Paulinho, amigo meu, esbarrou com o Raul no corredor da escola. Paulinho até tentou justificar que tinha sido sem querer, mas não adiantou. No dia seguinte, Paulinho não foi a aula. Quando fui visitá-lo na casa dele, vi o olho roxo e o lábio cortado. A mãe inocente me contou que ele caíra da bicicleta, mas eu soube de imediato qual era a verdade. E eu não podia fazer nada a respeito. Quem dedurasse o Raul levava uma surra maior. Ele chegava a prometer quebrar o braço dos traidores. Porém foi ali, na casa do Paulinho, que Fred me apareceu mais uma vez e sussurrou outra de suas ideias, que confesso ter gostado.
Coloquei o plano em andamento. Na escola, procurei Raul no canto em que costumava ficar com outros valentões fumando cigarro e beijando garotas, me aproximei e propus: se ele me deixasse andar com ele por duas semanas e me ajudasse a ser um cara popular na escola, eu o ajudaria a entrar na casa do meu avô e levar qualquer objeto de valor que ele quisesse. Contei que meu avô havia falecido há pouco tempo e que eu sabia como entrar na casa que estava se ninguém. Raul me avaliou de cima em baixo, mas acabou topando. Era um negócio bom demais para ele recusar. Contudo, quem não entendeu foi o Paulinho quando me viu andando com o Raul, com as roupas no mesmo estilo dele. Cortou totalmente a amizade comigo. Mas eu o compreendi e pensei que faria o mesmo se estivesse no lugar dele. Paulinho desconhecia o meu plano.
Na noite marcada para a invasão, somente eu e Raul entramos na casa. Eu tinha a chave da porta dos fundos, e usamos lanternas para não chamar a atenção dos vizinhos. Fomos direto para a sala de antiguidades do meu avô. Mesmo sendo uma invasão controlada, a sensação de fazer algo proibido me trouxe à memória a sensação de que eu já tinha feito aquilo no passado. Foi quando vi Raul parar em frente a caixa dos desejos.
- O que é isso?
Expliquei para ele, relembrando as palavras exatas de meu finado avô. Raul pegou a caixa nas mãos enquanto eu me afastei. Aquela quantidade enorme de olhos fúnebres o convidavam a prosseguir. Ele parecia hipnotizado. E eu agora me observava como um garotinho de oito anos. Entrando na sala sorrateiramente junto com um vizinho, Frederico, dois anos mais velho que eu. Ambos chegamos até a caixa, exatamente como acontecia agora, e eu presenciava Frederico abrir a tampa da caixa do mesmo modo como Raul estava fazendo. Postado do outro lado da caixa, eu podia ver com a memória o brilho intenso que saía de dentro da caixa refletir no rosto de Frederico e com os olhos o mesmo brilho iluminando o rosto de Raul.
- Um unicórnio – suspirou Frederico – Nunca vi um assim de tão perto.
Antes que eu tivesse tempo de olhar dentro da caixa, Frederico desapareceu junto com a luz, no mesmo instante que a caixa se fechou. Frederico pareceu ter sido sugado para dentro dela.
- Que beleza! – foram as ultimas palavras que escutei Raul falar antes que ele sumisse por completo, da mesma forma que eu havia presenciado sete anos atrás.
Foi quando o meu avô entrou correndo na sala e viu apenas o seu garotinho sentado atônito no chão em frente a caixa. Errou quando imaginou o que acontecera, que o menino entrara sozinho ali, inocentemente abrira a caixa e se assustara com algo. Ergueu as mãos à cabeça e murmurou que jamais se perdoaria se algo acontecesse ao seu neto. Se aproximou de mim, me de um longo abraço forte, tão longo que ainda o sinto, depois me deu um beijo na testa e me levou até em casa. Antes que eu entrasse, olhei para ele parado na calçada, que se despedia abanando as mãos e com os olhos repletos de lágrimas.
– Vá embora! Vá embora!
Mas o que o velho não conseguia ver é que o seu neto não estava mais sozinho. Todo o caminho até a minha casa e vim acompanhado pelo mesmo garoto que entrou na sala comigo, Fred. Frederico não parecia triste com o que aconteceu, e a partir daquele momento seria sempre o responsável pelas ideias mais criativas que eu tive. Seria o meu melhor amigo, imaginário ou não, a compensação por uma perda na infância, talvez explicada pelo abrupto afastamento do avô, conforme diriam os doutores nas sessões de análise.
A escuridão ainda domina a sala. Calmamente me dirijo até o interruptor e aciono a luz. Surpreso, verifico que a sala está praticamente inalterada desde a minha infância. Poucos itens foram acrescentados por meu avô. E ao lado da caixa com as caveiras, Fred me olha sorrindo, pois mais um de seus planos funcionou. Ao lado dele, Raul o olha, sacode a cabeça negativamente e lhe dá uma bronca, dizendo que agora eu terei dois amigos imaginários, e não há maneira de eu explicar isso sem soar como doido. Fred olha para mim como se não tivesse pensado naquilo até o momento e, cabisbaixo e envergonhado, profere uma única palavra.
- Desculpe.
(escrito originalmente em 26.08.2010 no blogue www.jefferson.blog.br)