CACHORRO LOUCO
Uma chuva persistente caíra sem interrupção durante todo o dia. O tamborilar irritante nos vidros da janela, o céu cinzento, o ar gelado, tudo conspirava para que o senso de controle de qualquer um fosse posto à prova, até mesmo daqueles que se consideravam plenos de paciência. Eu não tinha a menor esperança de que a noite pudesse reservar algo de novo, e, de fato, eu estava certo, pois mesmo com a chegada da escuridão, a maldita chuva ainda insistia em se fazer presente.
Era Agosto, e Agosto era sempre assim. Não era usual esse mês trazer algo além do frio e da monotonia. Não sei se só acontecia comigo, mas parecia que durante essas longas quatro semanas, um cheiro que remetia a cemitério ficava impregnado em minhas narinas. Sei que é algo estranho e inexplicável, mas isso me trazia um profundo desânimo, um pesar, como se minha alma lamentasse por esse período. Definitivamente, Agosto era o mais triste dos meses.
Mas, aquela noite acabou por mostrar-se diferente, no fim das contas. O marasmo tão peculiar a esse período diluiu-se com os últimos raios de sol. A noite, de face gelada e morta, trouxe em seus braços sombrios uma surpresa que me faria perceber a chegada desse mês maldito, ano após ano, mesmo sem o auxílio de um calendário. A partir daquela data, eu passei a sentir as nuanças dessa época com o próprio tato, com as vibrações, por assim dizer...
O estardalhaço vinha do quintal. Afastei umas lâminas da persiana e olhei pela fresta. A força das águas não me permitia entender o que acontecia, meu cachorro alternava latidos furiosos, com ganidos atemorizados. Não tive escolha, a não ser enfrentar o pranto dos céus em busca de esclarecimento.
O impermeável sobre meu corpo não me livrava das chicotadas dolorosas das águas, minha visão estava completamente turva. Um estrondo às minhas costas anunciava que a lâmpada do holofote havia estourado, imediatamente associei o infortúnio ao mau agouro causado pelo mês corrente. Mesmo sem a clareza nos olhos, notei um borrão escapando pelas cercanias do canil. Corri em direção ao incidente, as poças espirravam com meus passos, mas não consegui alcançar o intruso, ainda vislumbrei seus contornos desaparecendo pelo matagal no outro lado da rua.
Ouvi um rosnado rouco e baixo. Alcancei o isqueiro no bolso, protegi a integridade da chama com a mão em concha e investiguei o espaço à minha frente. Quase fui ao chão com o impacto proporcionado pelo susto, meu cachorro estava escolhido e ensopado, não só pela chuva, mas também pelo líquido vivo que escorria de um ferimento recém aberto. Mas não fora isso a causa de tamanho espanto, o que quase me derrubou mesmo foi a expressão insana do animal. Da boca escancarada escorria uma farta gosma esbranquiçada, seus olhos eram duas órbitas pálidas, o calor condensava o ar ao redor do focinho cinzento.
Com uma velocidade incompatível com a debilidade que aparentava, ele abocanhou a minha mão, o isqueiro foi ao chão, mas a escuridão repentina era maculada pelo par de esferas brancas diante de mim. Gritei de dor, de ódio, de desespero. Quase chutei o bicho, mas me controlei e decidi retornar para casa.
O sangue escorria pelo meu braço. Os dentes mal haviam tocado minha pele, mas o ferimento apresentava uma estranha profundidade. E borbulhava! O líquido espesso borbulhava como água fervente!
Consumido por uma dor infernal, abri as portas do armário derrubando caixas e vasilhames. Eu sabia que precisava lavar o ferimento com sabão em barra, pelo menos assim dizia a minha avó. Era certo de o meu cão estar raivoso, os sintomas saltavam aos olhos. Mas demorou até que eu conseguisse encontrar um mísero pedaço do maldito sabão. Nada era fácil nesse mês! Absolutamente nada!
Meu braço ardia, queimava como ferro em brasa, mas não era o resultado do ímpeto urgente com o qual eu manipulava a escova de cerdas duras a esfolar minha carne. A ardência parecia circular em minhas veias, foi aí que entendi que eu também poderia ter sido infectado pelo mesmo mal que dominava o pobre animal. Era preciso agir rápido, pois o problema piorava na mesma proporção da tempestade...
A vida em solidão, a antipatia plantada com os vizinhos, privacidade que pede um preço alto em situações como essa. Uma fisgada dobrou minhas pernas, tentei, sem sucesso, conter o fluxo violento que surgiu indomado em minha garganta. Precisei me arrastar pelo chão até o telefone, não lembro ao certo como consegui pedir ajuda. A única recordação perceptível foi a de estar atrelado a uma maca, enquanto luzes intermitentes me vigiavam. Depois, só a escuridão...
Quando abri os olhos, não havia certeza nenhuma em minha mente, apenas um vazio entorpecido parecia preencher meus pensamentos. Uma máscara ocultava parcialmente meu rosto, fios e tubos se espalhavam ao redor. Eu não sabia quanto tempo havia se passado, mas, pelo menos, uma convicção enfim brotava, embora esta não fosse agradável: Estávamos no maldito mês de Agosto, meu corpo sentia isso em cada célula.
Mas, uma surpresa tão grande quanto a que vi estampada no rosto da enfermeira, ao me ver andando, me dominou. Era Agosto sim, porém um ano inteiro havia se passado desde que entrei em coma. Os médicos não conseguiam entender, muito menos explicar, a súbita e surpreendente recuperação. Eu me sentia em excelente estado, como se nada tivesse acontecido. Assim, assinei diversos papéis, incluindo um termo de responsabilidade, a fim de me livrar o mais breve possível daquele lugar.
Já em casa, passei as horas diurnas numa infrutífera reflexão. Desta forma, a noite chegou e partiu, não tardando para que a alta madrugada me enlaçasse em seus braços. Foi quando comecei a sentir algo diferente, um formigamento por todo o corpo, acompanhado da sensação de que nenhuma gota de saliva salpicava minha boca. Parecia que cada músculo do meu corpo exercia vontade própria em oposição aos comandos que eu ordenava.
A ardência, a mesma ardência que parecia correr em minhas veias há exatos doze meses, parecia voltar mais avassaladora do que nunca. Precisei me livrar das roupas para não sufocar. Como um louco, pulei pela janela, mesmo sem entender o porquê de tal ato, e comecei a correr pelas ruas, me debatendo e uivando para a lua. Nunca havia sentido tamanha fome, era como se o próprio estômago devorasse as vísceras. Meu corpo estava em evidente transformação. Seria possível que o antigo mal tivesse me possuído, ao invés da suspeita de hidrofobia, como eu imaginava?
Só havia uma saída, sim, uma última e desesperada chance de salvação. Se eu bem conhecia a lenda, ainda daria tempo. O cão, que viera a morrer assim que a ambulância chegou para me socorrer, havia sido enterrado no quintal, conforme a informação do pessoal do hospital. Por fim, nem todos os vizinhos se importavam com a antipatia gratuita que eu distribuía, alguma alma caridosa e anônima fora sensível a estima que eu dispensava àquele animal, meu único amigo.
Um inexplicável senso de direção me levou ao local exato, onde jazia o corpo do bicho. Talvez fosse obra do instinto cada vez mais aflorado que surgia. Sem perceber, eu já apoiava os quatro membros no chão, revolvendo a terra como uma fera selvagem. Logo o corpo putrefato do cachorro surgia diante de mim.
Meus novos dedos não encontraram dificuldades para rasgar os vestígios de carne poupados pelos vermes, os ossos também não ofereceram qualquer resistência. Encontrei o que buscava, e para nova surpresa, estava inacreditavelmente intacto. O coração do cão pulsava vivo em minhas mãos! Não hesitei em por o músculo ensangüentado na boca, pois só assim a maldição poderia ser quebrada; devorando a fonte da vida daquele que transmitiu a triste sina.
A mórbida refeição, sinônimo do sucesso, pareceu tranqüilizar a ebulição em meu sangue, mas foi só ouvir um som aterrador e terrivelmente familiar, para que uma nova onda de desespero se apoderasse de mim. A saciedade mostrou-se momentânea, entendi isso quando percebi a matilha em plena caçada. Saltei o muro em busca de compaixão e conforto, corri como aqueles à minha frente. Eu não conseguia definir o que sentia ao certo, era euforia, dor, desespero, liberdade, tudo ao mesmo tempo.
A matilha parou numa praça, um morador de rua estava encurralado. Todos já estavam cientes de minha presença, inclusive a provável vítima e um indivíduo que se destacava do grupo. Eu não havia perdido completamente a consciência, a humanidade ainda resistia em mim, um detalhe que me fez refletir. Era óbvio, o cão não fora o transmissor do mal, ele não passava de um intermediário, seu corpo frágil não poderia desenvolver a maldição. Na realidade, uma daquelas feras era a culpada, eu havia visto um vulto naquela noite, e eu não precisava do instinto apurado para saber qual seria. Se eu quisesse salvação, teria de matar e comer o coração do líder da matilha.
Um desafio mudo já estava lançado, a fera se preparava para o embate. O homem sangrava enquanto testemunha de tão incomum episódio, embora soubesse que não teria oportunidade para compartilhar a experiência. Os demais membros do grupo permaneciam imóveis, era bem provável que eu não sobrevivesse também, mas a vontade de viver como um ser humano livre pulsava forte em meu peito.
Uma sombra saltou sobre mim, senti uma dor indescritível quando as lâminas alvas me tocaram. A mandíbula da criatura se movia num ritmo alucinante. Tentei resistir, usando meus dentes e unhas para isso, mas era como se eu estivesse investindo contra rocha sólida. Meu corpo ainda não estava preparado para semelhante desafio, fui vítima de uma estupidez sem tamanho, e sem qualquer chance para arrependimento.
Meu corpo estava retalhado, o sangue escapava pelos inúmeros buracos que por ele se espalhavam, minha carne servia de alimento. Então tombei, irreversivelmente derrotado. Eu não conseguia mexer um único músculo. A respiração lenta e irregular denunciava que o fim estava próximo, talvez fosse melhor assim. Minha visão era assaltada pelos olhos vítreos do homem, sua cabeça estava bem próxima de mim. Mesmo morto, ele ainda guardava a expressão sofrida causada pelo maior e mais absoluto dos medos: a morte, sobretudo uma morte terrível como a que sofrera.
Destino inevitável a ser compartilhado por duas almas condenadas, pois a presença da matilha ao meu redor não deixava dúvidas quanto a isso. Fechei os olhos, era tudo o que me restava, eu não precisava de dignidade naquele momento. Mas, como tantas outras coisas estranhas que só acontecem em Agosto, eu não fui sacrificado. Ao invés disso, senti um odor irresistível invadir minhas narinas, era um aroma totalmente diferente do exalado pelo sangue canino.
O coração do homem era oferecido a mim, como uma passagem para a salvação. Salvação? Eu estaria fadado a me alimentar dos viventes, espalhando a peste e disseminando o medo. Seria impedido de guardar um teto, amar alguém ou gerar filhos. Seria a sombra de um homem num corpo de besta. Eu tentei negar, implorei pela morte, mas contra o feitiço da carne não há como lutar.
Hoje estou aqui. Sou mais um membro da matilha. Caçamos nas noites de lua plena, em qualquer época do ano, mas preferimos um determinado período, uma ocasião especial, na qual nos sentimos mais vivos, afinal, Agosto é o mês do cachorro louco...e a insanidade me consome.
*Texto publicado no Desafio Literário do Fórum da Câmara dos Tormentos http://forumdacamara.forumeiros.com/forum.htm
Tema: Agosto, mês do desgosto, mês do cachorro louco