O Campo Santo
 
O alto viaduto em curva, com proteções de 1 metro de altura, nas tardes recebia invariavelmente a visita de um ser antigo, rugas nas faces, andar vacilante, mas com memórias de um tempo em que ali onde estava era o ponto elevado de uma planície, de onde olhava o por do sol, por sobre o vale e lá ao fundo algo grandioso para seu povo, algo cercado de crenças, de mistérios venerados para predizer o futuro, assim os antigos feiticeiros diziam e lhe passaram os ensinamentos.
Em verdade esta visita ao viaduto, que o velho índio fazia tinha algo a ver com a antiga profecia e que já era tempo de acontecer.
E repetia o índio em seus cantares entre o burburinho do transito a antiga reza “Há de vir do norte o armagedom que levará vidas, para pagar com sangue a insana profanação”
Relembrava entre os suores do calor escaldante, que ali entre arbustos repousavam 20 gerações dos seus, e que lentamente foram encobrindo com cimento a sua nação e hoje pássaros de aço massacram o solo levando ao infinito da escuridão a todas as almas do antigo campo santo.
No seu pequeno barraco, cercado de espigões rumo ao céu, acordava o índio naquela manhã.
Lá no alto dos céus azuis pequenos cirrus nervosos alongavam-se, predizendo tempestades futuras...
O índio acendeu seu cigarro, e seu coração lhe transmitiu algo que o fez sorrir levemente e dobrar seus olhos para os lados do viaduto.
Preparou ervas buscadas nos pequenos capões de mato fora da cidade, e desidratados sob o maldito cimento que circundava a sua favela.
No momento em que saía de casa o zunido alongado dos aviões de passageiros contrastavam com o melodioso assovio do índio, era uma velha canção índia, entoada quando era levada por urna funerária os corpos dos guerreiros...
O longo aclive que levava em curva para o alto do viaduto encontrou o andrajoso nativo, com um bornal a caminho do seu posto de observação que os anos o viram fazer como uma missão em memória dos seus entes.
Estranhamente nas ultimas horas uma leve bruma enevoou o céu azul, o ar tornou-se frio, e o sol da tarde, entremeio às nuvens intercalava momentos de aparição e outros de completa ausência.
O índio encostou o dorso na mureta, girou a cabeça para o lado do aeroporto, acendeu um cigarro, e o insistente zunido, agora de duas gigantescas aeronaves, ensurdeceram de vez o som de seus lábios, num misto de tristeza e insinuante alegria, calou-se, atitude que tem os felinos diante do cheiro evidente da morte.
Os seus olhos arregalaram quando viu que os gigantescos aviões foram envolvidos pela neblina seca e continuavam a taxiar em direção as suas pistas de decolagem...
Ao norte dele e do aeroporto o ronco de um cargueiro B52 gritou as turbinas em meio a tempestade que se aproximava, segundos depois, viu o índio aterrorizado que no mesmo instante em que a torre de controle desabava em meio a um furacão, os dois gigantes decolavam mais adiante...Do meio das nuvens, negro como uma trágica noite surgiu o B52 , esbarrando uma das asas em um avião que decolava, fazendo ir ao solo e explodir.
Girando sobre o próprio eixo ele foi espatifar-se no meio do segundo avião, desintegrando as duas aeronaves numa bola de fogo, sepultando entre as chamas 574 passageiros, como se as cortinas do inferno se abrissem em meio à tempestade...
Na tarde em que o sol se punha no horizonte depois da tempestade, o índio abriu lentamente seu bornal, e ofereceu aos Deuses ervas perfumadas, que a leve brisa pousou entre os restos humanos espalhados aos pedaços por todo o vale. A profecia estava cumprida.


Malgaxe
 
Malgaxe
Enviado por Malgaxe em 24/08/2010
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