O claro e o escuro

Jimmy esperou a manhã inteira pela passagem do enfermeiro. Nunca esteve tão empolgado como hoje e não queria esperar mais do que achava ser capaz de esperar. Ele estava deitado na cama, imóvel, rindo consigo mesmo, certo de que não havia ninguém no mundo tão especial quanto ele.

Ele andou tendo umas ideias brilhantes. Andou sonhando com coisas incríveis. E agora estava morrendo de vontade de realizá-las na vida real.

Ele havia descoberto uma maneira de falar com Deus. Talvez, até pudesse trazê-lo para baixo. Todo o mundo ia ficar impressionado. Todo o mundo mesmo.

Jimmy soltou uma risadinha maliciosa e lambeu os lábios rachados. Seus olhinhos cintilavam. Ele riu mais um pouquinho e puxou o lençol sobre a cabeça. Ele não parou de dizer coisas estranhas. Estava decidido a abrir uma entrada até o Céu.

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Xavier estava tendo um dia de cão. Houve uma hora que ele até teve vontade de morder um daqueles malditos loucos, na falta de uma agressão mais criativa.

Ele se locomovia pelos corredores do sanatório, empurrando seu carrinho de remédios. Estava se sentindo muito mal, doente de verdade. Sua testa suava e sua visão andava meio embaçada desde que levantou da cama. Uma dor horrorosa atacava suas costas fazendo com que ele andasse lentamente, como um velhinho de oitenta anos com uma perna protética.

Fazia meses que havia enviado uma porção de currículos para os mais variados lugares da cidade. Seu sonho era se mandar desse antro de insanidade, antes que acabasse ruim das ideias. Havia espalhado currículos em seis diferentes hospitais e duas clínicas estéticas. E uma fábrica, onde ele sabia que os caras quase sempre perdiam um dedo ou dois no torno mecânico. E um asilo. Tecnicamente, cuidar de gente velha era mais fácil e mais saudável do que cuidar de gente tantã. E, se ele bem se lembrava, tinha escorregado um currículo amassado dentro da caixa de correio de um consultório dentário. Até agora, ninguém o havia selecionado sequer para uma entrevista.

Xavier soltou o ar por entre os lábios. Não era apenas o seu físico que havia decaído. Era também sua mente, que nunca fora aquelas coisas, e, agora então, parecia que estava se tornando um virado muito mal equilibrado de paranoias e desvelos.Xavier havia notado que, quando tinha de lidar com certos pacientes, começava a estalar os dedos, como se estivesse invocando uma entidade do Além. Ele geralmente sabia argumentar com eles. Sabia que com gente doida não se devia gritar, mandar, pedir e, muito menos, implorar para que ela saísse do seu mundinho fantasioso, onde o Elvis ainda estava vivo e no qual o almoço e o jantar consistiam de bolo e sorvete. Ele sabia lidar com gente desse tipo. Havia alguns indivíduos que, francamente, eram capazes de gelar o sangue de um exorcista. Xavier acabou se convencendo de que estalar os dedos, enfim, devia ser uma atitude natural. Devia ser o seu sangue crioulo gritando, chamando espíritos para protegê-lo do mal que parecia exalar da pele de alguns internos em especial.

Ele parou por um segundo para descansar e respirar profundamente. Sobre o tampo do carrinho havia os remédios daquele cara que nunca, nunca, parava de mijar na cama e que dizia que o monstro embaixo dela vinha puxar os seus pés e o seu cabelo toda noite.

Tinha também o combinado especial daquele psicótico que matou a irmã com a tesoura de costura da mãe.

Xavier o achava agradável, na maioria das vezes. O sujeito era novo e sempre dizia que estava pra lá de arrependido e tudo o mais. Só que houve uma vez em que Xavier teve certeza de que ele nunca receberia alta, de que iria acabar morrendo engasgado com a própria língua e preso numa camisa-de-força. Porque, na única vez em que o cara foi solto, ele quebrou o pescoço de outro interno, no meio de uma confusão dos infernos. Xavier nem gostava de lembrar.

Ao fixar os olhos sobre um montinho de cápsulas e comprimidos brancos dentro de um copo descartável, Xavier sentiu o estômago dar uma cambalhota.

Pior do que todo mundo ali, só mesmo aquele garoto que habitava o último quarto do corredor na ala leste.

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Víctor sempre desconfiou do garoto Jimmy. Todos ali eram dementes, mas aquele garoto tinha cara de quem excedia a loucura normal. E, um dia desses, ele havia lhe perguntado se gostaria de rever a irmã. Víctor tentou trucidá-lo, mas acabou torcendo o pescoço da pessoa errada.

E fazia algum tempo que estava desconfiado de que o garoto estava armando alguma coisa maléfica.

Infelizmente, Víctor não podia fazer muito para frustrar os planos dele, uma vez que estava amarrado. E muito bem amarrado.

Seus membros doíam horrores, mas a dor se tornou tão familiar que ele não ligava mais, apenas a sentia e tentava avaliar quão ruim estava. Não que isso fosse de grande valia. Era só um passatempo. Já não se recordava de como era esticar os braços e sentir os ombros livres. Quando não era a cama, era a camisa-de-força. Hoje, era justamente a cama. Que o impedia de ir lá e moer a cabeça do nojento.

Víctor começou a chorar de frustração. Grossas lágrimas escorreram pelos lados do rosto pálido e encovado. Os olhos não chegaram a piscar, apenas fitavam o teto. Os ouvidos captavam os murmúrios doentios que enchiam o hospício. A vontade de matar era grande demais. Chegava a doer.

- Maldição - disse Víctor para o seu quarto vazio e perturbadoramente limpo. Um lugar sem nenhuma vida.

Fazia mais de um ano que havia sido trancado atrás daquelas paredes opressoras. Ele havia se rendido à vontade da mãe. Ele podia ouvi-la chorar, toda noite, durante cada minuto. A imagem dela rondava sua mente, sem parar, por causa do que ele havia feito à Mikelly. Ele se odiava. E odiava não ter podido se controlar. Às vezes, ele sonhava com a irmã e ela sorria, seus lábios rosados lhe diziam que ela o perdoava. E ele dormia em paz. Mais ou menos.

O demônio ronronava em sua mente, provocando arrepios em seu corpo e fazendo-o desejar com todas as suas forças ganhar de volta a sua liberdade.

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A forma sob o lençol era Jimmy, não havia dúvidas. E ele parecia estar tendo alguma coisa muito ruim. Parecia estar convulsionando.

Xavier ficou aflito. Era a primeira vez que ele fazia isso. Nas outras vezes, o garoto simplesmente saltitava, feito o louco que era, e começava a dizer aquelas coisas que deixavam todo mundo de saco cheio.

Xavier não estava gostando da novidade.

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Víctor começou a uivar no seu quarto. Os outros internos se encolheram onde estavam e começaram a choramingar e a se balançar, como criancinhas, para frente e para trás, para frente e para trás.

Um trio de enfermeiros saiu em disparada pelo corredor que levava ao quarto daquela agourenta sirene humana.

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Xavier respirou fundo, sentindo plenamente cada osso dolorido do seu corpo, cada gota de suor frio, cada passo que seus pés davam na direção daquela cama que chacoalhava, onde aquela coisa estirada sob o lençol se contorcia, onde havia um mundo de pensamentos desconexos.

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Víctor estava tendo um colapso e estava tentando se libertar. Ele forçou um braço, ao ponto de quebrá-lo, na tentativa de rasgar a correia de couro. Os tendões do seu pescoço saltavam sob a pele. Ele não enxergava nada, além daquele redemoinho preto e nebuloso no teto. Ele girava, girava, girava...

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Xavier estendeu uma mão para puxar o lençol. Deus, ele iria matar esse desgraçado se estivesse acontecendo alguma coisa obscena naquela cama. Ah, ia matar sim. Ia quebrar o seu pescocinho como se fosse um graveto.

Ele revelou o filho da mãe. Seu coração batia na garganta enquanto fazia isso. E o que viu quase o fez desmaiar de aflição.

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Algo estava se projetando do redemoinho, do meio daquela massa que parecia ser fumaça negra e turbulenta. Como a fumaça de um grande desastre.

Víctor parecia exausto aos olhos dos enfermeiros. Fazia meio minuto que o próprio diretor do sanatório se encontrava ao seu lado e tudo indicava que ele estava nas últimas, no limite físico e mental que seu organismo seria capaz de suportar.

Mas era impressionante o que ele via sair do teto. Era inacreditável. E nada no mundo era mais importante.

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Jimmy estava queimando. Era um fogo estranho, que consumia seu corpo, não parecia ser quente, era apenas... luminoso.

Xavier observou a coisa que havia saído do corpo imóvel sobre a cama. Ela sorria. E era o sorriso mais bonito e radiante do mundo.

A coisa, que tinha o contorno humano, caminhava em sua direção. Ele se encolheu num canto, sentindo muito medo. Ela era ofuscante na sua luz prateada e Xavier achava que seria pulverizado assim que aqueles dedos etéreos tocassem sua pele. Quando fechou os olhos e cobriu o rosto com os braços, para se proteger, a coisa falou com ele. A voz era cristalina e diferente de tudo que ele já ouvira na vida. Era como o repicar de sinos no Paraíso.

De repente, sentiu um toque incrivelmente agradável no seu lado esquerdo, sobre as costelas. Quente e suave.

E, então, todo o medo passou. E ele soube exatamente o que aquele ser de luz precisava.

Em instantes, Xavier foi envolvido por aqueles braços mornos. Houve um formigamento durante o qual a matéria luminosa se fundiu com as suas células, desaparecendo dentro delas, apagando-se lentamente como uma lanterna que cai no fundo do oceano.

Xavier se levantou e riu consigo mesmo, não conseguiu evitar. Tudo parecia tão diferente. As coisas tinham um significado especial agora. Ele não se importava de não ter conseguido um novo emprego. Trabalhar ali fora a melhor coisa que acontecera na sua vida.

Mas ele sabia que havia coisas para fazer. E fugir era uma delas. Fugir para viver.

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Nada nunca pareceu tão horrível antes. Víctor se sentia enojado e, ao mesmo tempo, surpreso. Era ele ou todas aquelas pessoas tinham algo de grotesco sob a pele? Ele se perguntou como elas conseguiam se olhar no espelho sem enlouquecer. E como ele ainda não havia ficado perdidamente louco, era outro mistério.

O mais importante era que ele estava voltando para casa. Tinha coisas para contar para sua mãe e, obviamente, explicar-lhe que tudo seria diferente de agora em diante. Seria muito melhor.

Tudo estava resolvido. Ele sorriu ao lembrar do garoto morto no manicômio. Fim das suas preocupações. Podia viver em paz, finalmente.

Exceto pelas coisas que ele era capaz de ver agora, tudo estava perfeitamente normal e nos eixos.

O sol havia acabado de desaparecer no horizonte, mas as sombras que cobriam as ruas e as casas não tocavam o seu rosto. Nem quando ele pensou em todas aquelas pessoas mortas que deixou para trás, dentro do seu antigo quarto naquele lugar triste e sem vida.

Ainda mais sem vida, por sua causa.

Ele, na verdade, não queria matar ninguém. Foi Mikelly, sua falecida irmã quem deu a ideia. E ele achou que era o mínimo que podia fazer por ela, por tê-la matado.

Agora, Mikelly fazia parte dele. Estava dentro de sua cabeça, cantarolando e dizendo para ele não se importar com toda essa gente feia que o encarava por onde ele andava. Logo, todos eles iriam morrer.

Víctor sorriu mais largamente. Mamãe ia adorar saber que eles estavam voltando para casa.

Andhromeda
Enviado por Andhromeda em 24/08/2010
Código do texto: T2456160
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