A Terrível Noite Anormal
Era uma noite anormal. Era uma noite terrível. A mais terrível das noites. E naquela mortalha negra que envolvia a Terra, que alguns otimistas chamariam de céu, resplandecia monárquica uma lua doentiamente gigante, de um rubro-purpúreo mórbido e sanguinolento. Ou talvez nem fosse a lua, mas um outro planeta depravado que dominava a Terra... não sei... Que noite era aquela? Eu não sei dizer, mas nela todos s humanos, absolutamente todos dormiam um sono hipnótico e letárgico, abismal, de plena inconsciência vegetativa, e somente eu carregava a maldição de estar acordado perambulando sorumbático, eu que nem sei se sou humano, pela escuridão vermelho-arroxeada daquela noite que, talvez, somente Poe teria imaginado (ou presenciado) em sua integral profundidade e horror. Eu não consigo a descrever, expressá-la por completo, e me deterei em esclarecer o que fazia percorrendo a desgraça sem destino, arrastando-me em cósmica solidão, suportando o fardo anatematizado de ser o único humano acordado e semiconsciente da nossa miséria miasmática. Suportava o peso de estar desperto. Por que eu não dormi como todos os outros? O que eu fazia? Eu procurava. Procurava como um demente por todos os cantos, sempre fracassando. Afundado até os joelhos em um pântano lôbrego e exalador de podridões. Tentava escarafunchar desesperado na lama, e nada, nada eu encontrava...
Ao meu lado eu via sempre aquele pianista aterrador, sério como uma moléstia grave, e uma soprano arrancando tragédias dos báratros de sua alma. Ela cantava chorando e eu chorava com ela, atônito em meio à noite funesta. Procurei pelas atmosferas pesarosas de névoas e neblinas poluídas e nada encontrei, aspirando aquele ar fétido com a sofreguidão de quem vive à beira da asfixia de difterias anímicas e asmas psíquicas. E o pianista me olhava carrancudo e a soprano me olhava gritando e eu gritava com ela, extasiado, a música era meu único consolo...
Úmido. Tudo era úmido no bosque escuro em que eu penetrava naquele instante tenebroso. Aves noturnas berravam, mochos, bacuraus e corujas agourentas bradavam nos meus ouvidos, elas imploravam, suplicavam deprimidas minha atenção, languorosas, queriam contar-me de suas tragédias, de seus dramas cosmogônicos que ninguém escuta... Mas eu não conseguia as entender, aquelas aves noturnas tão tristes, tão merencóreas, e eu vociferava a elas: eu sou igual a vocês, quantas palavras eu disse e ninguém me escutou, “Suspirei as canções mais doloridas e ninguém me escutou” disse Álvares de Azevedo, aquela ave noturna. Pobres corujas chorosas de linfas...
Por todos os lados tudo chorava se descabelando, as árvores derramavam seiva e arrancavam suas folhas, gotejando na geada e sangue que subitamente se formou do sopro feroz de virgens cujos intestinos foram extirpados. Os cedros tombavam aos soluços por sobre os sapos que vomitavam as exortações do futuro, e eu procurei e não encontrei nada, ainda não encontrei, não... enquanto esquadrões de patos e marrecos reais, largando-se em vôo sem leme, suicidavam-se indômitos em um lago de plasma coagulado.
Então, principiei a sonhar, a fantasiar em minha mente e coração atormentados os mais belos prados verdejantes em serenidade antiga, dias azuis libertos e resplandescentes, onde os teus cabelos e grinaldas etéricas de bem-me-queres esvoaçavam da languidez de um Cristo fitando o céu... Eu sonhei com a vida que deslizava austera e digna nas sangas que quando ainda guri eu bebia exultante, lembrando-me do sol sorrindo nas magnificências do orvalho de uma manhã inigualável. Eu sonhei... Ah! eu era livre para amar... para o amor... e agora? Eu sou um desgraçado. E sigo sem encontrar o que tanto eu queria...
E voltei a procurar na noite noturna dos pesadelos espectrais densificados sobre meus ombros arqueados de tanto cansaço sobrenatural. Eu já não mais agüentava aqueles esqueletos agarrados nos meus tornozelos, invocando a minha clemência para que eu os chutasse enfurecido naquele leito estéril de rio, brilhante de rastros de lesmas, mas já não tinha forças para chutar e perguntava a eles se tinham encontrado o que eu procurava, mas os dentes despencando da boca flácida respondiam-me que não, que não, que não...
E a soprano suspirava (Schubert) gemendo (Schubert) e eu suspirava (Schubert) com ela, montado em um bode cinzento de chifres pontiagudos e encardidos, que me conduzia em vertigens frenéticas ao redor de um poço sem fundo. Lá, no poço, eu divisei em seu âmago bruxuleante uma minúscula lanterna de um velho agonizante, maculado de chagas de lepras espirituais, que, em sua embarcação desintegrando-se indicava-me um descampado no céu. Eu olhei e vislumbrei, empalidecendo ao extremo, um orifício do qual se derramava a melancolia das estrelas exiladas daquele céu feral e pude ouvir a voz inatingível de um buraco-negro. Mas não era isso que eu procurava. Dei adeus ao bode e parti desolado por entre hostes de cruzes brancas, e mais visões dantescas ofenderam meus sentidos dolorosamente exauridos: as nuvens dardejavam raios por infinitas direções, tornando a nebulosa noturna um dia aziago, nefasto, cheio de maus pressentimentos e de azares de crepúsculos inevitáveis. Descia encolerizados daqueles nimbos inflamados um anjo de asas de morcego repletas de garras afiadas, de cujos olhos chispeavam fogos doentes. E uma revoada de corvos impiedosos criou violenta sinfonia...
E caí por terra desiludido ao ápice. Ventavam lufadas mornas de fadas destroçadas em furacões. Caí sem ter encontrado o que tanto almejei, ouvindo o pianista que jamais sorria e a soprano que sempre chorava. E eu fitei ao meu redor, e um batalhão de seres mitológicos desmaiava liquidado, e, intentando erguer minha mão, gritei com todas as potestades celestes e infernais, em seus palácios, que também não tinha encontrado o que tanto procurei na noite infinda... O que eu procurava? A esperança na humanidade. Perdi para sempre, perdida para sempre.
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