A Corrida (conto-delírio)
Por Ramon Bacelar
"Nothing can be explained. The world only knows how to do one thing, to roll over and kill you, as a sleeper kills his fleas. That would be a stupid way to die, I said to myself, to let myself be crushed like everybody else. To put your trust in men is to get yourself killed a little." -- Louis-Ferdinand Celine, Journey to the End of the Night.
A great master does not move his puppet if there is no reason to do so.
-- A. C. Scott, The Puppet Theatre of Japan
The body is the stuttering puppet of the mind, beginning as automatic and becoming autonomous. A transference— the puppet becomes the showman.
-- The Logomachy of Zos By Austin Osman Spare
Como um moto perpétuo, mais uma vez o torpor sonambúlico retornou e com ele o sono, a dormência, os sonhos, o “mesmo” sonho: o espaço vazio, a escuridão, os cães, a corrida, o senso de infinitude e ferindo a escuridão com sua brancura ofuscante, as interrogações. Sinais que o atormentavam e perseguiam, dominavam seu mundo onírico e rasgavam o tecido temporal invadindo sua existência material, o possuindo, obrigando-o a despertar em uma enganadora posição fetal, interrogação em carne e osso mascarada de feto adulto: abriu os olhos e libertando-se da catividade interrogativa sentou na cama de campanha, olhou para os lados, mas antes que a solidez das barras de ferro invadisse suas retinas, se deu conta da realidade de sua condição: estava preso.
À sua frente, dividida pelo aço e ferrugem, a escuridão que cercava o pressionava, reforçando seu senso de catividade; abaixo, sua sombra alimentada pela claridade de sódio da lâmpada acima, parecia se desprender numa inútil tentativa de auxílio: o socorro que não era socorro.
De algum ponto deste ilusório universo de infinitude promovido pela penumbra aparentemente perpétua, ecos e ruídos indistintos circulavam pela cela, mas distantes e carentes de vontade própria não feriam seus tímpanos nem alimentavam sua curiosidade; continuou sentado encarando o deserto de incerteza e escuridão à sua frente, mas a força de uma recordação dissolveu as barras de ferro e por um curto período o libertou com a memória de um passado recente: os gritos em seu quarto (em pé!), a visão brumosa do recém-despertar definindo gradualmente os contornos de armas e cacetetes, os sorrisos brancos que pareciam prenunciar futuras incertezas e aflições, o vapor quente de focinhos úmidos de cães negros explorando sua face, incomodando suas narinas. Encarou os opressores, mas o parco brilho lunar foi insuficiente para solidificar os contornos dos rostos e definir o indefinido. Com passos lentos e vacilantes, de mãos encerradas e cabeça baixa, seguiu os opressores em direção a calçada, mas antes de tocar o asfalto frio, a aspereza sonora de cinco letras e uma exclamação (corra!) perfurou seus tímpanos e com seu instinto de sobrevivência fortificado pela ordem e o intenso brilho dos olhos-brasa hipnotizando sua retina, correu... correu...correu.
***
Desembestando no coração das trevas explorou ruas e vielas que a densa escuridão indefinia, enquanto que o rasgo sonoro dos demônios negros solidificava sua vontade e cristalizava seu objetivo: sobrevivência.
Desejo de sobrevivência alimentando desejo de liberdade o impulsionava por caminhos aparentemente familiares, mas a textura do calçamento e a incompreensível angularidade das ruas, janelas e telhados o fez sentir-se perdido em um granulado labirinto expressionista, possuído pela psicoarquitetura dos infernos: a saída que não era saída.
Continuou correndo, definindo o indefinido, desbravando a escuridão, mas quando os tímpanos denunciaram a proximidade dos latidos e o senso de visão revelou caninos brancos de encontro ao seu pescoço: a visão escureceu, a negro dominou, a memória dissolveu, realidade retornou.
***
Na cela penumbrosa, com o contato da realidade gélida das barras de ferro transmutando-o momentaneamente em um iceberg orgânico, fantasmas da memória recente negavam a total dissolução. Não sabia por que fora acostado, intimidado e colocado em catividade; nem como fora salvo dos cães. Nem mesmo sabia se os sonhos refletiam sua existência ou se sua realidade era manipulada por eles: a certeza da incerteza.
Tomou consciência da solidificação sonora que circulava ao seu redor: ruídos exteriores antes indefinidos e disformes agora cristalizavam em risadas e passos pesados que se aproximavam. Suspirou, aguardou, mas antes de sua visão distinguir por completo zíperes de longos coturnos e contornos de duas marmóreas arcadas dentárias gargalhando para a escuridão, sua audição foi invadida por um tiro seco que estilhaçou a lâmpada de sódio às suas costas e que de imediato o envolveu em uma densa manta de piche: a última coisa que sentiu foi uma pesada e emborrachada pancada de um cilindro em seu pescoço.
***
Despertada pela frieza do piso irregular, a agora opaca memória da captura cedeu lugar ao presente gélido: abriu os olhos e percebeu que era arrastado por duas sombras orgânicas para um destino desconhecido. Cordas ásperas envolvendo pés e braços, ferindo punhos e calcanhares, um guindaste entrançado erguendo uma caricatura de ser humano, o colocando em postura ereta de fantoche.
A luminosidade branca da tela de um imenso projetor à sua frente e uma platéia de costas para a tela abaixo, o encaravam num delírio de ansiedade e expectativa: a espera da espera.
O pano branco ganha vida e materializa a imagem granulada de ruas e casas angulares, de uma corrida e cães negros, enquanto ele, cativo das interrogações e do caos entrançado das cordas, agora se via preso no pesadelo expressionista em celulóide a sua frente. A platéia o encarava, aguardava, não ignorava.
***
Sentiu um repentino movimento involuntário das pernas e braços promovido pelo enrijecimento das cordas. Click, click, click, olhou para os lados e ferido pela luminosidade leitosa dos refletores vislumbrou figuras cadavéricas de aparência comatosa que assim como ele, preso as cordas, perdiam-se em movimentos convulsivamente involuntários para o deleite da horda ensandecida ( clap, clap, clap, clap).
Encarava a tela e a imagem lhe retornava como um reflexo distorcido de sua existência, refletida por um anti-espelho de superfície ovalada. Sentia-a perfurando suas defesas, intensificando a pulsação caudalosa das feridas que alimentava o sadismo deleitoso da platéia: ator, vítima, feto... marionete manipulada pelas cordas da incerteza, palhaço supremo no teatro da existência.
Os aplausos ecoavam, o fascínio aumentava, as risadas gargalhavam e a estafa possuía... enegrecia.
Com o baque surdo dos joelhos provocado pelo repentino afrouxamento das cordas, empalmou as mãos, olhou para cima mas não pediu nem orou:desmaiou.
***
Retornou a consciência com um estilhaço da lâmpada perfurando suas costas, olhou para baixo e identificou a curvatura brilhosa da algema como a personificação material de uma interrogação, um mistério que pulsava.
Asfixiado pela penumbra tirânica foi em direção as grades à procura de claridade mas antes de alcançar a metade do trajeto foi invadido pelo ruído metálico de chaves e o contato de mãos frias em seus pulsos algemados.
Entrecortando a indefinição da escuridão como uma única sombra ofegante, guardas e vítima exploravam o piso irregular com passos vacilantes, passos ecoantes que fazia-se supor uma estrutura estreita como um corredor que terminava em um portão metálico
Por instantes uma vaga de esperança dominou o seu espírito e acelerou os batimentos cardíacos, olhou para as algemas mas antes de retornar sua visão, um ruído metálico seguido de um rajada de ar fresco o fez deduzir que a liberdade batia a sua porta... escancarada à sua frente.
Num esforço de visão tentou definir a paisagem, olhou para os lados e não soube se vislumbrava um céu estrelado ou algemas dispostas em um fundo negro-aveludado; caminhou em direção a saída mas antes de alcançar o exterior foi bruscamente impulsionado para fora com uma pesada pressão nas costas. Olhou para trás e retinas-brasa de cães negros invadiram sua visão ao mesmo tempo que o rasgo sonoro de cinco letras e uma exclamação (corra!) feriram seus ouvidos; levantou o pescoço, vislumbrou o que parecia ser estruturas angulares e com as mãos algemadas, correu...correu...correu...
FIM
Leiam e comentem:
O Balanço:
http://www.arquivodobarreto.com/home/index.php?action=obra&id=103
A Vingança do Ghoul:
http://casadasalmas.blogspot.com/2010/05/vinganca-do-ghoul.html#comments
Viagem ao Âmago:
http://www.estronho.com.br/contos-e-cronicas/279-contos-e-cronicas/4460-viagem-ao-amago.html
Ramon Bacelar é contista, crítico e ensaísta. Mantém um blog sobre cinema, quadrinhos, literatura e cultura underground (Maquinário da Noite: www.maquinariodanoite.blogspot.com) publica contos no Recanto das Letras http://www.recantodasletras.com.br/autores/ramonbacelar e em seu site pessoal, Miragens Ofuscantes: http://www.miragensofuscantes.blogspot.com