Principia discordia

PARTE I

O cabelo desgrenhado dava ares de uma pessoa insana, que tinha perdido a posses de suas faculdades mentais. O barulho de uma coruja o assustou, tinha em mãos uma pá, logo atrás o seu carro de madeira. Naquela noite gelada esperava a melhor oportunidade de invadir o cemitério, profanação de túmulo, estava ficando perito nesse delito. Seu nome: Thomas Sprunk, o barbeiro-cirurgião daquele pequeno burgo regido por um Marquês. A vizinhança andava em uma pasmaceira e ordem que sempre o incomodou, sabia que ninguém estaria ali vigiando o cemitério, nunca ninguém vigiou aquele cemitério, os mortos nunca dão trabalho e nesse pacato burgo, nem os vivos. A jovem Juliette era o seu alvo, havia morrido ontem e ele nada pôde fazer, quando a doença do “lado” ataca, é questão de dias para o óbito, o abdômen fica totalmente rígido, isso após o enfermo sentir muitas dores e vomitar bastante, o que trás sempre a desidratação, por fim uma infecção toma o corpo da pessoa e ela morre delirando e suando frio, pobre Juliette.

Entrou no cemitério puxando o seu carrinho de madeira, estrategicamente morava muito próximo do cemitério e com facilidade ele se apropriava dos corpos, mas não pensem que Thomas era um necrófilo, querendo apenas violar as donzelas, seu intuito era meramente acadêmico, naquele tempo o estudo do corpo era proibido, um crime passível de morte. Thomas Sprunk era um anatomista, cansado de sua vida pacata, decidiu se aprofundar naquilo que mais gostava, o estudo do corpo humano. Sabendo dos perigos que corria, fazia o seu trabalho bem rápido, cuidando para tampar o buraco da forma mais imperceptível possível. Em menos de uma hora, Juliette estava no carrinho de madeira, coberta com um pano grosso preto. Embora morasse perto, Sprunk não poderia dar o vacilo de deixar o corpo exposto a encontros inesperados.

Jazia morta e com o tórax aberto, esticada em uma cama fria, com o peso do seu jovem corpo morto. Thomas examinava o seu corpo em busca de entendimento, localizou uma pequena tripa no fim do intestino, ela estava estourada e seu conteúdo tinha vazado pelo corpo, provocando a infecção que a matou. Ele já tinha notado isso em outros dois corpos mortos com a mesma doença, não foi difícil deduzir isso. Examinado o corpo, passou ao cérebro, uma parte do corpo aonde não tinha como tirar nenhuma conclusão, era uma massa sem resposta, mas ele gostava de examinar assim mesmo. Logo no começo da análise ele percebeu aquela pequena glândula brilhando, era um brilho azul fosforescente, já era de seu conhecimento que ela era maior nas crianças e jovens, nos adultos era atrofiada, do tamanho de uma ervilha, hoje em dia a chamamos de glândula pineal. Ele a retirou com toda cautela, um líquido negro escorreu entre seus dedos, pouco antes de um grande clarão azulado quase o cegar.

Demorou alguns segundos para a sua visão voltar completamente. Conforme ela ia voltando, como em uma história de conto de fadas, notou que tinha uma linda mulher o fitando, longos cabelos ruivos e um vestido cinza claro, reluzindo como ouro. Espantado, Sprunk queria falar algo mas foi impedido pela bela mulher.

- Cale a boca, você me invocou, agora tem que me escutar, não sou a salvação de nenhum problema, muito pelo contrário, sou a Deusa Éris, a embaixadora do caos. Sua vida é pacata, você quer mais ação, a solução é o caos, suma com a filha do Marquês, traga um pouco de vida a este local, conflito é evolução, ficar parado é regresso. Faça o que eu digo e nunca mais ative a glândula pineal, não quero mais olhar para você.

E desapareceu, deixando um Thomas boquiaberto e pensativo.

PARTE II

A bela Úrsula dormia, uma pequena fresta aberta trazia o ar frio da noite, ela tinha um sono tranqüilo, até ser acordada por um forte relincho repentino, Pequerrucho, seu lindo cavalo branco estava solto e a olhava pela janela. “Estranho”, ela pensou. Não é das situações mais corriqueiras um cavalo olhando para você pela janela, causaria um alvoroço e um frio na espinha de qualquer um. Úrsula pegou o seu casaco de lã e saiu da sua grande casa, o cavalo já estava selado e estranhas luzes fazia uma espécie de caminho a ser seguido. Destemida, acostumada a receber muitos elogios pela sua coragem e determinação, ela montou no cavalo e foi na direção que o caminho apontava.

Sprunk, confuso, fechava a cabeça da pobre Juliette, algo ainda o incomodava, não achava que tivesse ficado biruta, mas ficaria se seqüestrasse a filha do Marquês, ela era amada e tinha o respeito de todos na cidade, incluindo ele mesmo, era uma criatura carismática e muito inteligente. Alguém bateu na porta, assustado ele rapidamente escondeu o corpo da jovem, jogando um pesado cobertor em cima e escondeu as ferramentas dentro de um armário. Abriu uma pequena brecha e espiou, seu carrinho de madeira estava arrumado, de frente para uma trilha, uma maleta de ferramentas novinha em cima do carro, tudo pronto para uma caminhada noturna. Parado do lado de fora, custava acreditar que uma ave lhe cochichou para ir em frente, não tinha escolha. Desanimado, trancou sua casa, pegou seu carro de madeira e saiu puxando trilha adentro.

Éris, nos termos que usamos hoje, era uma deusa ardilosa e “barraqueira”. Relatos mitológicos apontam que ela foi a causadora da primeira grande guerra da humanidade, a guerra de Tróia, não diretamente, é claro. Zeus, certa vez, decidiu dar um grande banquete e chamou todos os deuses, semi-deuses e mortais importantes, mas ele teve o cuidado de não convidar Éris, sua fama de arrumar confusão não o agradava. Esnobada, esquecida, Éris colocou um plano bobo em ação, entrou escondida na festa e derrubou sua maçã dourado no chão e fugiu, estava escrito nela: “para a mais bela”. Athenas, Hera e Afrodite brigaram pela maçã, quebraram tudo, arranjando uma grande confusão. Zeus interveio e decidiu que Páris, o jovem príncipe troiano decidisse aquela questão. As três deusas subornaram o jovem, cada uma prometendo algo diferente, ele se decidiu por Afrodite que lhe tinha prometido a mulher mais bela do mundo. Isso são relatos mitológicos e o resto da história acredito que todo mundo já saiba.

Éris mexia com aqueles dois agora, desiludidos com a tranqüilidade indolente da cidade, algo tinha que acontecer. Úrsula cavalgou noite afora, seguindo a trilha indicada até um descampado, ficou ali parada por alguns minutos, tentando decidir o que fazer em seguida, foi quando escutou um barulho se aproximando, ela perguntou:

- Quem se aproxima?

O barbeiro quase deu um pulo, era a suave voz da filha do Marquês, ela me conhece, qual seria a confusão que eu iria me enfiar se fizesse algo a ela? Decidiu optar pela honestidade e contar a verdade. Saiu de trás de uma árvore, seu carrinho parado na trilha:

- Sou eu cara donzela, o barbeiro-cirurgião do Marquês.

- E o que fazes aqui tão tarde da noite, caro Thomas?

- Essa mesma pergunta posso fazer também, mas recebi como missão levá-la comigo, somente isso acordaria essa cidade.

Ela desceu do cavalo e o acompanhou, Sprunk estava surpreso, não sabia que a honestidade causaria efeitos muito melhores do que se tivesse se escondido e a atacado, surpreendendo-a, usando um lenço embebido em entorpecentes. Como era a filha do Marquês, acostumada a regalias, ela foi deitada no carrinho de madeira, enquanto Thomas ia puxando, como um servo dedicado, durante todo o trajeto ela foi reclamando do mau cheiro e ele já estava quase desistindo dessa aventura louca, despropositada. Chegando em casa, ele havia se esquecido totalmente de Juliette e quando se lembrou, Úrsula já tinha levantado o cobertor e a visto:

- Ela se parece bastante comigo, você que a matou?

Chocado, ele respondeu que não e explicou para ela o real significado da presença daquele corpo ali, seus estudos, mostrou para ela seus cadernos com os apontamentos e desenhos, suas descobertas, tudo datado e organizado. Úrsula olhava maravilhada aquilo, finalmente tinha encontrado alguém com conteúdo, uma pessoa com idéias evolutivas e não retrógrada e passiva como todas as pessoas que conhecida, incluindo o seu pai. Olhando novamente para Juliette, algo pululou em sua mente:

- Vamos pregar uma peça neles.

Thomas Sprunk e Ùrsula saíram carregando o corpo da jovem morta, ela anteriormente havia trocado de roupa com ela, meio enojado mas se divertindo com a idéia e aproveitou pata acertar o rosto com um pedaço de madeira, tornando mais difícil um reconhecimento visual, o toque final foi ter colocado o seu anel no dedo de Juliette, um anel que tinha desde pequena, um anel que a marcava como a filha do Marquês. Chegaram ao ponto em que se encontraram horas antes, cortaram um pedaço do cabelo e Úrsula cortou o seu dedo para derramar umas gotas de sangue. Seu cavalo, a única testemunha não tinha fugido, mas também não poderia relatar que viu o corpo da jovem ser enterrado, o cabelo e as gotas de sangue deixados ali perto. O burgo em breve iria presenciar a ressurreição de Úrsula.

PARTE III

O mundo dos Deuses naquela época já estava em crise, muitos Deuses sem o espaço e o glamour de outrora já tinha ido povoar outros planetas, Zeus já tinha perdido o controle do rebanho e como comandante de um navio, queria ser o último a abandoná-lo, tinha esperança que ainda iria ocorrer uma grande reviravolta, se ele não fosse imortal, poderia dizer que morreria esperando. Éris via o mundo como o quintal da sua casa, continuava semeando a discórdia e aprontando. Atualmente ela e Zeus são os dois únicos Deuses que restaram e sua última peripécia foi apresentar o princípio da discórdia a dois jovens, que logo fundaram uma religião em sua homenagem, o “discordianismo”. Hoje, sentada em seu trono, ela podia olhar para o senil e decadente Zeus e lhe mandar uma banana, aquele banquete tinha sido o fim da amizade.

A vida tinha acordado normal naquela manhã, normal na verdade para todas as famílias, menos para a do Marquês. Como era de costume, Úrsula se encontrava com os pais no café da manhã, mas ela não apareceu, esperaram para o almoço, nada. Preocupado, o Marquês pediu que alguém verificasse se a jovem se encontrava no quarto. A cama estava arrumada e fria, sinal que ela não havia dormido ali, desesperado, o Marquês ordenou uma busca completa na região, rezando para que fosse apenas uma aventura de sua impetuosa filha, queria acreditar nisso, mas algo no seu interior dizia que teria más notícias e, como a peste negra, ela chegou com uma velocidade incrível. Encontraram o cavalo, um tufo de cabelo, sangue e um corpo com a face irreconhecível, mas o anel no dedo indicava que era Úrsula. O burgo estava de luto e o pobre Marquês arrasado.

Olhando o corpo da pobre jovem, Sprunk que havia sido chamado, falou que provavelmente Úrsula tinha tido uma morte imediata, uma pancada forte no rosto, caiu sem sentidos e sem sofrimento, falava pra tentar confortar o coração do velho Marquês, lhe doía falar essas coisas e não poder contar a verdade, o Marquês era um amigo de longa data, sabia que aquela fraude iria acabar cedo ou tarde, só esperava que não acabasse mal. O Marquês confabulou com o chefe da sua guarda por alguns minutos, até que uma hora perdeu a paciência e em tom irritado falou alto:

- Não quero saber das leis, quero os três suspeitos hoje, a execução será amanhã de manhã, espalhe a notícia por toda a cidade.

Os três em questão eram quem sabe os únicos que causavam uma certa preocupação na cidade, os únicos que fugiam um pouco da ordem vigente, arruaceiros. Gristhorpe, o ferreiro, tinha um porte físico avantajado e adorava brigar, se imaginasse que alguém o estivesse encarando, já batia no infeliz. Molly Ringwald, a bruxa, morava na região próxima do acontecido, era famosa por vender poções feitas de ervas, prometendo a cura de diversos males, ninguém a aborrecia pelo simples motivo que suas poções sempre surtiam efeito e além do mais, todos viviam suas vidinhas sem aborrecimentos, para que causar um. O terceiro ninguém sabia o nome ao certo, mas todos o chamavam de “Tombo”, era um velho bêbado, vivia da grana de jogos para sustentar o seu vício, nunca tinha causado problemas, mas ser um bêbado sem passado, o tornava um suspeito forte, estava sempre na boca do povo.

Eles foram presos na mesma tarde, a população assistia a tudo em polvorosa, alvo inédito estava acontecendo na cidade. Gristhorpe fora capturado, mas não sem antes ter derrubado dois soldados e ferido outros dois. Molly cuspia em todos e tinha libertado toda a sua gama de impropérios. Tombo, bem, este não ofereceu a mínima resistência, estava muito bêbado para se importar com qualquer coisa que não fosse álcool. O palco estava começando a ser armado para as execuções do dia seguinte, ninguém da cidade falava em outra coisa.

Thomas Sprunk, já sabendo das prisões e dos acontecimentos locais, quando foi liberado da presença do Marquês, correu para casa, tinha que contar a Úrsula do alvoroço, ele não poderia simplesmente chegar e contar que ela estava viva e escondida em sua casa, corria o risco de virar o alvo da fúria de todos e seria executado sem dó e nem piedade. Em casa, assustada, Úrsula concordou em dar um fim na farsa, embora ainda não tivesse pensado em algo, no caminho iria pensar. Correu apressada, não poderia usar o cavalo de Thomas, teve que ir a pé.

As coisas nunca são tão simples como parece, a caminhada não seria tão longa, mas acontecimentos gerados pelo caos, numa forma contrária, impediram que Úrsula chegasse a tempo, ela ficou presa na floresta a noite inteira. Primeiro um filhote de lobo uivando de dor, tinha a pata machucada, ela parou para ajudar, depois foi a vez de um javali bloquear a passagem da pobre moça, que teve que fugir subindo em uma árvore. Muitos pontos de reconhecimento haviam sido trocados de lugar, o que confundiu Úrsula, fazendo com que ela andasse sempre em círculos. Enfim, uma força conspirava para que ela não chegasse a tempo e, foi o que aconteceu. Quando ela chegou, ao invés de ajudar, só liberou o caos.

PARTE IV

Para cada um dos condenados uma morte diferente, o palco havia sido montado rapidamente, o povo estava com pressa, bradavam por justiça e que os desordeiros pagassem logo com a vida, fossem culpados ou não, a culpa agora talvez fosse a menor das preocupações. A bruxa foi condenada a fogueira, uma pira imensa ardia e aos pouquinhos ela ia cozinhando, seus gritos eram ameaçadores e todos estavam com receio, queriam que ela morresse logo, maldita bruxa resistente. O bêbado foi condenado a forca, sua morte foi rápida, agonizou breves momentos com o pescoço quebrado. O ferreiro não teve melhor sorte, cada membro do seu corpo fora amarrado a um forte cavalo, quando dispararam ao mesmo tempo, cada um para um lado diferente, o torso do pobre Gristhorpe descansava em meio a uma poça de sangue no chão, esquartejado. A bruxa ainda queimava, sua morte seria lenta e terrível.

Úrsula corria, estava entrando na praça principal aonde ocorria o espetáculo, estava muito cansada por conta dos inúmeros atrasos, tinha convicção que não estava com uma boa aparência, desejava que ainda desse tempo de consertar o que tinha aprontado. Começava a ouvir os sons de uma população ensandecida, o barulho se aproximava conforme se apressava. O espetáculo estava perto do fim, a bruxa resistia, mas já estava quase sem forças, teve que reunir uma força do além para gritar:

- Seus desgraçados, a causadora disso tudo se aproxima, que todos vocês queimem no inferno.

E apontou em uma direção, morreu conservando o braço erguido. Todos viraram para olhar, foi nesse momento que Úrsula reapareceu, assombrando a todos. O Marquês que estava sentado em uma cadeira, tombou vítima de um ataque cardíaco fulminante. Uma velha levantou o seu vestido mostrando a genitália a um rapaz muito mais jovem, um homem agarrou a sua vizinha, a jogando no chão, pensando seriamente em atos libidinosos. Uma parte da população optou pelo saque, aproveitava o transe de alguns para roubar dinheiro. Cada um se virava como podia. Úrsula fugiu de três homens que tentavam a agarrar, voltou para a floresta, queria reencontrar Thomas, talvez a única pessoa além dela sã naquela cidade, esperava que ele não tivesse sucumbido a essa histeria coletiva.

Chegando em sua casa, Thomas estava imerso em pensamentos, demorou alguns segundos para sair do seu estado de transe. Ela tocou em seu braço.

- Vamos fugir, somos os culpados dessa bagunça toda.

Ele pegou suas anotações e a levou para fora, preparou seu cavalo, ela subiu e ambos foram embora daquela cidade.

A histeria durou alguns dias, a cidade estava de pernas para o ar, ninguém tinha percebido até então a morte do Marquês, o chefe da guarda tirando a boca dos seios da esposa do Marquês, notou o seu corpo já em um estado avançado de decomposição. Ninguém sabia ao certo o que realmente tinha acontecido, queriam apenas esquecer aqueles dias de vergonha e loucura, mas o inconsciente fora libertado dos grilhões da pasmaceira, a escuridão não mais reinava e os homens estavam livres para pensar. Muitas descobertas foram feitas, o homem correndo nu pela rua. Éris do alto de uma árvore jogando a sua maçã para um homem, a pena do escritor que corria alertando. Aquele burgo libertou os cativos.

Hoje, Éris ainda passeia entre nós, sempre que a ordem começa a prevalecer, ela dá um jeito, não existe evolução sem mudança. “Destruição é uma forma de criação”.