SEXTA-FEIRA
Ainda era noite quando Roberto saiu de casa em direção ao trabalho. Uma garoa fina e gélida batia em seu rosto. O vento frio e cortante fazia seu corpo tremer. Pela previsão do tempo aquele mês de Agosto seria um dos mais frios dos últimos trinta anos.
Roberto desceu a rua em direção ao ponto de ônibus. A rua deserta e escura estava iluminada somente por um pequeno facho de luz que saia do poste a sua frente. A cena lhe causava arrepios como um choque elétrico que percorria seu corpo do dedão do pé até o ultimo fio de cabelo. Não soube explicar se aquela sensação era causada pelo frio do inverno ou pelo medo de alguém aparecer para assaltá-lo.
Continuou caminhando em direção ao ponto que ficava no final da rua em um dos cruzamentos mais movimentados do bairro. Um barulho ensurdecedor tomou conta de seus ouvidos. Um motoqueiro passou por ele em alta velocidade. A moto passou cambaleando de um lado para o outro e com velocidade muito acima da adequada para a rua. Roberto deu um salto para o lado, tamanho o susto que levou.
– Que cara louco. Pra que correr desse jeito essa hora da manhã. Só pode querer se matar. Pensou.
Um estrondo como um trovão pode ser ouvido à distância. Roberto foi se aproximando do cruzamento. Percebeu uma movimentação acima da corriqueira para o horário. Um ônibus de linha parado bem no cruzamento bloqueava a passagem. Várias pessoas ao lado do ônibus formavam um circulo. Continuou andando na direção até que pode ver o que estava acontecendo.
Uma cena que fez encher os olhos d água. Um enorme aperto no peito. Seus pulmões não conseguiam puxar o ar.
Um furo arredondado na lateral do ônibus indicava que tinha acontecido algo. Um líquido rubro escorria pela sarjeta da avenida. No asfalto, deitado ao lado do ônibus um corpo imóvel.
- Pobre infeliz, não conseguiu frear. - Uma senhora de cabelos brancos falava.
Roberto reconheceu o corpo inerte. O motoqueiro que acabara de passar por ele tinha se espetado na lateral do ônibus. Um dos passageiros do ônibus debruçou sobre o corpo do pobre rapaz e retirou seu capacete, ou o que restara dele. A cena foi horripilante até para um aficionado em filme de terror. O rosto do motoqueiro estava irreconhecível, totalmente desfigurado. O capacete não conseguiu proteger sua cabeça. O impacto na lateral do ônibus foi muito além da capacidade de resistência do capacete.
Lágrimas escorriam pelo rosto. Roberto sentou na calçada e em prantos ficou observando a movimentação em volta do corpo. Uma sensação que estava sendo observado começou incomodar. Olhou para o outro lado da rua e observou que um enorme gato preto com um laço vermelho em volta do pescoço o encarava. Nem mesmo a movimentação das pessoas de um lado para o outro afugentava o bichano.
Sentado na calçada do outro lado da rua, o gato permanecia imóvel. Instinto atípico para um felino. Os grandes olhos verdes fixados no acidente não piscavam. O bichano dava a impressão de estar petrificado.
Os primeiros raios da manhã cortaram o céu. O barulho de sirene preencheu o ambiente silencioso. Roberto olhou na direção do motoqueiro e viu quando a ambulância de resgate encostou ao lado do ônibus. Provavelmente algum passageiro do coletivo ligou para emergência e comunicou o ocorrido. Roberto olhou novamente para o outro lado da rua, mas para sua surpresa o gato não estava mais lá.
Os paramédicos desceram da ambulância e correram em direção ao rapaz. Verificaram os sinais vitais, tentaram reanimá-lo, mas as tentativas foram em vão. Todos os dias na cidade de São Paulo morrem muitos motoqueiros. Esse rapaz seria somente mais um na estatística.
Roberto ficou muito abalado psicologicamente com o ocorrido. Resolveu que seria melhor voltar para casa. Nesse momento não estava em condições emocionais para ir trabalhar.
Chegou em casa e foi direto para a cozinha. Preparou um café e dirigiu-se para o sofá da sala. Em cada golada de café que descia pela garganta fazia uma reflexão sobre a vida. A vida é muito breve mesmo, pensava. O ditado é antigo e válido – “Para morrer basta estar vivo”.
Logo após o almoço, Roberto saiu para comprar alguma coisa pra comer. Sua geladeira estava vazia. Foi em direção a padaria que ficava próxima a sua casa.
- Manuel me vê cem gramas de mussarela, cem gramas de presunto e quadro pãezinhos.
Pegou o pacote com as compras, pagou e saiu em direção à porta.
Começou a descer os degraus da padaria quando um forte estrondo pode ser ouvido. Olhou na direção da esquina e para sua surpresa um Fusca azul escuro tinha acabado de atravessar o semáforo vermelho e colidido em um poste de luz na esquina.
O rapaz jogou a sacola de compras para cima e saiu em disparada para socorrer as vitimas do acidente. Ao chegar próximo do carro um arrepio cortou toda a sua espinha. Um senhor de seus setenta e poucos anos estava com a cabeça atravessada no vidro do pára-brisa do carro. Um líquido rubro escorria pela lateral do carro em direção a calçada. Este seria um dos piores ou o pior dia de sua vida.
Logo, uma multidão de curiosos aglomerou em volta do veiculo destruído. O senhor foi retirado do Fusca e colocado sob a calçada, infelizmente já com o corpo sem vida.
Por alguns instantes uma sensação já sentida anteriormente voltou a assolar o rapaz. Os olhos seguiram em direção ao velho com a cabeça dilacerada pela batida. Ao lado do corpo um vulto negro de olhos arregalados o encarava. Sim, mais uma vez aquela criatura do inferno estava presente novamente no desastre. O gato preto de laço vermelho no pescoço encontrava-se sentado observando o rapaz.
Roberto foi em direção a figura aterrorizante. O gato bem lentamente levantou e entrou em um buraco no muro atrás do poste de luz, onde o carro estava espetado. O rapaz ao chegar ao muro, debruçou-se sobre ele e olhou por cima, mas não conseguiu mais avistar o bicho.
- Deve ser pura alucinação. Pensou. Devo estar ficando louco. O que um gato tem a ver com um acidente de transito? Isso acontece todo dia e toda hora. É somente uma coincidência.
O rapaz virou as costas para o veiculo totalmente destruído e começou a caminhar em direção á sua casa. Era melhor voltar para casa e lá ficar. Não conseguia se livrar um minuto das cenas dos acidentes que presenciara. Ainda bem que iria voltar para seu porto seguro e ficar esperando o dia terminar.
Ao chegar ao cruzamento com a avenida, pode perceber que alguém ou alguma coisa seguia seus passos com os olhos. Virou- se abruptamente e para sua surpresa, o maldito gato preto de laço vermelho estava sentado na calçada olhando-o fixamente nos olhos. Nesse momento percebeu que o bicho tinha uma medalha com seu nome amarrada embaixo do pescoço. Seu nome pode ser lido nesse momento, Sexta-Feira.
O som de uma freada brusca invadiu seus ouvidos. Sentiu uma dor descomunal percorrer seu corpo. Sua visão começou ofuscar. Pessoas se amontoavam em volta de seu corpo. Um ônibus que descia pelo cruzamento não conseguiu frear e o atingiu Roberto atirando-o ao chão.
Gritos de socorro ecoavam pelo local, sua visão escureceu. O que instantes atrás era gritaria, agora fizera silencio. O ciclo de vida se cumpriu. Somente mais um na estatística de acidentes fatais do transito.
Sexta-Feira levantou, virou-se e saiu caminhando lentamente em direção a sua próxima vitima.