O Arfar da Besta
 

            A cidade universitária, incrustada em morros, com suas ladeiras íngremes apontando para o infinito, guardava uma besta. Estudantes apavorados abandonavam-na. Não queriam mais a conclusão do curso diante da ameaça de perder a vida. A reitoria entrara em pânico. A polícia encontrava-se desnorteada.
            - Uma dúzia de vítimas! – Estampavam os jornais:
            - Massacre de Estudantes! – Dizia outro.
            Eu e a minha namorada, Cris, ultimávamos os preparativos para deixar de vez o Campus. Vários colegas já haviam morrido e não queríamos ser os próximos. Na nossa última noite, resolvemos, junto a um grupo, sair para uma rápida despedia em um bar quase em frente à República. Todos estávamos temerosos. A viatura policial percorria a alameda lentamente, com suas luzes piscando. Em pouco pararam e um dos policiais nos alertou sem descer do veículo:
            - Já é tarde! Vão para casa! – O maníaco sempre atacava nos arredores da meia-noite, dando vazão a inúmeras e doentias interpretações.
            - Estamos indo. – Respondemos. Logo, como últimos clientes, fechamos o bar. O proprietário se queixava:
            - Vou falir. Ou pegam esse louco ou eu vou falir...
            Nosso grupo seguia à frente, Cris e eu, abraçados e saudosos mesmo ainda estando ali, aspirávamos a tristeza que se propagava pelos cantos, pelos becos, que descia de cada janela com séculos de história e se acentuava a cada partida. As estátuas nas praças choravam nossa ausência, as salas de aula esvaindo-se da boa energia dos jovens deitavam um lamento em sussurros quase inaudíveis. O campus falecia pelo abandono.
            A lua cheia apontava no fim da alameda que subíamos. O forte clarão dispensava qualquer outra atenção luminosa. Um vento frio nos cortava e Cris se aconchegou mais a mim enquanto perguntava:
            - O que faremos?
            Nisso, ouvimos, vindo de nossas costas o arfar doentio e o vertiginoso e violento avançar de poderosas patas vibrando o chão. As próprias marquises e janelões tremiam. Pedrinhas minúsculas saltavam por entre as fendas do calçamento antigo. Era como se o trotar de poderoso paquiderme avançasse sobre o grupo. Cris e eu nos voltamos e ela deu um grito. Puxei-a para a calçada diante do bote inevitável das feras. Eram duas potentes criaturas peludas, olhos embotados em insana vermelhidão em avassaladora velocidade. Logo pensei que não havia o que fazer, não haveria defesa para nós. Abracei-a e nos abaixamos diante do lance de um degrau e esperei o abater daquelas afiadas garras mortais sobre o meu corpo.
            Elas, em um repente inexplicável, sobressaltaram por nós e atingiram em cheio o nosso grupo de amigos que já corria, em pavor, pela ladeira acima. O monstruoso espetáculo era terrível. Levantei os olhos e vi as duas colossais criaturas triturando nossos amigos enquanto as devoravam simultaneamente. Cris chorava agarrada ao meu corpo. Vi que as criaturas trajavam dois casacos amarelos com escritas vermelhas, características dos estudantes, que eram iguais às que vestíamos.
            - Cris, vamos. – Disse-lhe baixinho enquanto abríamos o portão de ferro de uma escadaria ao lado para buscar acolhida no prédio. As grades não cediam. Forcei com o ombro e fizeram barulho chamando a atenção das bestas. Uma delas ouviu e nos viu:
            - Estamos perdidos. – Pensei enquanto Cris não se desgrudava dos meus braços. O portão abriu. Entramos e subimos apressadamente os degraus buscando alguém que nos abrisse uma porta salvadora. Do alto da escadaria olhamos para baixo. As duas criaturas nos observavam da entrada. Poderiam nos alcançar com poucos saltos, se o quisessem. No entanto, talvez por estarem com apetite satisfeito, talvez pelo aproximar da polícia, deram as costas e seguiram para a rua. Depois daquele episódio abandonamos imediatamente a Cidade Universitária.
            Semanas depois, em nossa casa no interior, vivendo junto aos meus pais, a polícia comunicava o insucesso das buscas e nenhum outro episódio fora relatado. Sabíamos que alguém do Campus se transformava nas criaturas. Cris evitava tocar no assunto. Meu pai informou que naquela noite haveria, novamente, uma lua cheia. Enquanto Cris e eu dormíamos, fui desperto para um ruído fora do quarto. Olhando pela janela, percebi o arfar quente e monstruoso de dois seres enormes. Cris dormia. Aproximei-me do vitral. A casa de campo dava para uma extensa campina. O luar era exuberante. Aos pés da janela vi as duas bestas, dessa vez nuas. Uma me encarava arfando e a outra dormia ao lado na mesma posição que Cris. Entendi, então, que habitávamos aquelas criaturas. Nossa alma humana tinha a sua individualidade, mas nos momentos em que nossos corpos se transmudavam, quem poderia conosco?