O início da escuridão

Tarde da noite. Na sala da casa a babá dormia sem dificuldades no sofá embora a intensidade da chuva aumentasse e os latidos do cachorro do lado de fora também.

No segundo andar da casa estava ele: de castigo, sem videogame, nem televisão, estava deitado em sua cama olhando para as sombras que as árvores do jardim projetavam em seu teto toda vez que um raio surgia nos céus.

A mãe deveria ter chegado às onze horas do hospital, mas talvez alguma emergência a tenha feito ficar até mais tarde no trabalho. Sempre havia uma emergência e ele já estava acostumado com isso. O relógio cuco da sala piou. A babá virou para o lado e o acompanhou roncando. Dezenove anos, cabelos loiros e um belo corpo. A babá era realmente linda, e ele se sentia atraído por ela, exceto quando ela estava dormindo e deixava aquele filete de baba que escorrer pelo canto de sua boca. Não conseguia entender porque precisava de uma babá, afinal ele já tinha 12 anos, mas sabia que não conseguiria ficar sozinho em casa principalmente depois do castigo que demoraria uns meses para terminar. Tentou parar de pensar nisso, quando escutou um estranho ruído vindo do corredor.

Levantou da cama e seguiu o som. Eram leves batidas na madeira que pareciam vir da biblioteca do pai. Seu pai morrera quatro anos atrás e ele não conseguia recordar muito do relacionamento dos dois. A biblioteca era a maior lembrança de que um dia havia passado uma figura paterna em sua vida, embora nunca fizesse muita questão de entrar lá. Suas oito estantes de dois metros e meio de altura cada, centenas de livros empilhados e muitos objetos que guardavam recordações de uma pessoa que ele não conhecia.

O menino abriu a porta da biblioteca no exato momento em que um relâmpago iluminou o local. Um susto. Lembrara porque não gosta de entrar ali: ele tinha medo daquele lugar. As máscaras, espadas e esculturas espalhadas pela sala lembravam da morte misteriosa do pai. Logo, lembrou do funeral, do caixão fechado, a mãe chorando em um dos cantos e o cheiro das flores.

Deu cinco passos para dentro da sala, iluminada pela luz do corredor, quando viu o livro preto caído no chão. Sua capa preta e suas páginas também pretas pintadas em letras na cor prata, mas algo mais chamava sua atenção. Era o único livro no chão e não havia espaço vazio em nenhuma das prateleiras.

Começou a procurar ao seu redor para ver se descobria da onde tinha caído, quando reparou em um dos quadros. Acima da escrivaninha, em uma moldura velha, muito mais velha do que a foto tirada, mostrava o pai na época em que era professor de uma universidade. Mas havia algo mais naquela foto. O pai gritava e se debatia dentro da moldura tentando dizer algo. Ele se aproximou aos poucos do quadro enquanto o desespero de seu pai no quadro aumentava. Finalmente conseguiu ler nos lábios do pai:

-Corre!

Foi quando viu uma delas pela primeira vez. Olhou para trás e de dentro de livro uma criatura sai de suas páginas, como estivessem saindo de um alçapão. Ela era parecida com um lobo todo preto, feito de sombras. Saia das páginas do livro pequeno e ia crescendo e ganhando tamanho enquanto arranhava o chão de madeira com suas garras. O garoto não conseguia fazer nada. Nem gritar, nem correr. Foi quando o monstro pulou para cima dele.

Os dois caíram em uma das paredes. O menino lutava para escapar das patas da criatura que lhe arranhavam os braços e peito. Foi quando ele percebeu algo caindo ao seu lado: o sabre militar de seu pai. O menino desviou quando o lobo tentou morder sua cabeça, agarrou a arma e a enfiou no peito do monstro, que depois de urro agudo, simplesmente se desfez em cinzas no ar, com um papel queimando ao vento. Levantou-se usando como apoio a parede e olhou de volta para o livro.

Cinco daquelas criaturas estavam ao redor das páginas negras olhando para ele com seus olhos prata e flamejantes. Apavorado, correu para porta e a fechou pelo lado de fora. Foi andando de costas pelo corredor quando sentiu o batente da janela. Não pensou duas vezes. Pulou da janela do segundo andar e caiu no meio do jardim cheio de lama. Correu para perto da casa do cachorro quando ouviu o barulho da porta da biblioteca quebrando.

De dentro da casa a babá gritava.

O cachorro latia.

Chovia muito lá fora.