O DEMÔNIO DA LUA CHEIA

O cheiro trazido por essa brisa quente...esse estranho peso no ar...o silêncio que chega a incomodar...o ambiente se prepara para a sua chegada. Sim, logo ele estará aqui. As nuvens turvas, que insistem em esconder o círculo de pálido esplendor, são incapazes de montar guarda por muito tempo. Em breve, os longos dedos de luz alcançarão as ruas estreitas, vielas e caminhos arborizados das cercanias locais. Não haverá um só ponto imune ao toque nocivo da plenitude celeste, o maldito caminhará livre novamente...

Mas desta vez, com a ajuda dos céus, eu serei forte o bastante para por fim em suas noites de matança. Esse piso de pedra nunca mais amanhecerá lavado com a cor do pecado. Que a prata abençoada possa torná-lo penitente, abrindo, assim, caminho para a redenção de sua alma.

Meus dedos não podem fraquejar...a lembrança do fracasso ainda é fresca em minha memória. A dor causada pelo último ciclo ainda arde no coração daqueles que perderam algum ente querido; essa mesma dor me consome por completo, pois me lembra dia após dia da incapacidade que tive perante um mal que a minha covardia não conseguiu exterminar.

Eu o vi chegar...ele estava na minha mira...mas a força do maldito congelou minha alma, e esta tratou de travar cada músculo do meu corpo. Eu senti o odor da sua presença, o horror de sua chegada. Totalmente entregue, vislumbrei sua passagem apressada pelo caminho cascalhoso da via principal. Ele teria um longo percurso a cumprir, até que a urgência pelo alimento o dominasse por inteiro. Seu canto era acompanhado pelo ladrar em agonia da matilha que o escoltava; uma mórbida sinfonia ao luar...

Os cães cumpriam seu papel, seguiam o rastro daquele que impunha medo simplesmente por existir. Os animais sabiam, em cada sopro do seu instinto, que serviriam como alívio para o apetite alheio, caso este não fosse saciado pelos cobiçados nutrientes encontrados no objetivo da caçada. Mas, ainda assim, obedeciam, com irrestrita devoção, ao comando estrondoso da voz que os dominava...

Entretanto, os cães conheciam os limites impostos pela situação, sabiam quando deveriam parar. Um sintoma denunciado pelo súbito silêncio...um olhar malévolo e reprovador arrancava ganidos tímidos...uma mescla de medo e resignação. O conforto surgia com a certeza de que seriam poupados, ao passo que o desespero se alastrava rápido, pois a selvageria estava prestes a ter início.

A ordem muda tratava de desfazer a matilha...os animais debandavam descrevendo um rastro úmido pelas pedras. Por mais uma noite, teriam a carne livre de ser violada, mas não deixavam de evidenciar seu horror pelo chão, de qualquer forma...

O dono da madrugada, naquele momento, erguia-se sobre duas patas. Percebi seu caminhar sutil por entre galhos e arbustos. Ele já tinha escolhido sua presa, a presença da pobre alma já havia sido detectada por cada um dos seus apurados sentidos. A decisão de ter para si aquela vida já havia sido tomada, nada nem ninguém poderia convencê-lo do contrário, tampouco impedir suas intenções. Uma vez preso em meus próprios conflitos, eu também nada poderia fazer, além de lamentar pelo inevitável destino daquela menina.

Ela não pertencia àquela localidade, era uma forasteira perdida em infinita indecisão. Lembro de tê-la visto vagando pelas ruas, ainda sob a proteção do astro rei. Não tenho dúvidas de que fora alertada sobre as consequências do caminhar noturno, horário proibido, onde o olhar maligno é lançado sobre a terra maldita. Mas, percebi que tal qual tantos outros, ela não soube ouvir a voz local, as súplicas para que não desafiasse a vontade daquele que ronda sob o luar. Ela estava entregue à própria sorte. Era uma condenada alheia ao destino que lhe esperava...

Meu coração disparava...eu sabia o que viria a seguir. Eu já havia presenciado aquela cena inúmeras vezes. A presa já estava no círculo de segurança da criatura...eu queria gritar, alertá-la sobre o perigo, mas minha voz se perdia nos caminhos estreitos da garganta sufocada. Para o meu horror, a hábil pata riscou o ar com velocidade e precisão, sem que a jovem pudesse esboçar qualquer reação. Da fenda exposta em seu ventre, vísceras quentes brotavam fartas. Seu corpo tremia involuntariamente, enquanto o líquido viscoso manchava as pedras polidas da trilha.

Era impossível confirmar a capacidade de compreensão da menina, diante da cena hedionda que seus olhos insistiam em lhe mostrar. Peço aos céus para que não. Suplico em pensamento para que, naquele momento, ela já estivesse atravessando o vale que separa os dois mundos, pois assim seria mais justo. Uma maneira mais humana de encarar a inevitável realidade.

A noite se tornou mais escura. A silhueta negra se interpôs entre a lua plena e o corpo caído. A enorme esfera branca parecia gargalhar com o feito do seu escravo, o qual liberava o som aterrador de sua voz, numa clara manifestação de fidelidade, como se oferecesse a ela o banquete que estava prestes a consumir.

Eu não conseguia verter uma só lágrima, embora minha alma estivesse aos prantos. Meu corpo estava travado por uma força imensurável, a incapacidade me consumia. Acompanhei, derrotado, o contraste auri-rubro proporcionado pelas potentes investidas das lâminas aguçadas contra a carne fresca. Nem os ossos eram poupados. Na manhã seguinte, apenas as marcas da morte estampadas no chão lembravam a vida ceifada...

Mas hoje será diferente. Hoje o maldito encontrará o seu fim na força eterna da prata. As nuvens não mais cobrem os céus...sinto sua chegada. O peso da arma em minhas mãos parece se multiplicar, mas preciso resistir, não posso me entregar à fraqueza novamente. Sei que sua face é cruel e cínica, queria eu por fim em sua fisionomia humana, seria muito mais fácil. Entretanto, o corpo enterrado certamente se ergueria na lua cheia subsequente a sua morte. Não! O maldito só pode ser derrotado quando mostra sua verdadeira aparência, não há outro jeito.

Aponto o cano metálico e espero por qualquer sinal de sua presença. O ar se torna pesado e quente, a lua mostra seu sorriso branco. Ouço as batidas do meu próprio coração e as lufadas ruidosas de uma respiração entrecortada. Sinto um tremor dos pés a cabeça, ele está aqui. O medo me domina, minhas mãos tremem, não consigo firmar a arma numa posição correta. O dedo apressado pressiona o gatilho, a prata corta o ar, longe do alvo, alojando-se na casca grossa de um tronco de árvore.

O tambor gira, meu desespero aumenta, estou encurralado. A besta sorri para mim, sinto a fúria do seu ataque. Potentes espasmos dominam meu corpo. Com muito esforço, consigo erguer mais uma vez a arma e pressiono, decidido, o gatilho. O metal vence a curta distância, instalando-se, desta vez, na carne rígida. A prata ferve, uma fumaça densa toma o ar, o corpo queima. Mas o alvo atingido não é o ideal, a cabeça, ponto crucial, não apresenta qualquer ferimento.

Tento encontrar forças para uma nova investida, mas já não há espaço para lucidez em mim. Deixo o revólver cair, não posso usá-lo mais. No céu, minha dona exibe todo o seu deboche. Meu corpo verga perante sua vontade. Ossos e músculos descrevem movimentos improváveis, logo revelam uma nova forma. O projétil alojado na omoplata é expelido, sem causar qualquer dano relevante...

Mais uma vez, fui vencido pela voracidade da fera. Não obtive o valor necessário para exterminar a maldição que me consome. Agora, nada mais posso fazer, minha humanidade se esconde no corpo da besta. Desta forma, assistirei, perplexo e indefeso, cada expressão de medo, cada manifestação de dor, por parte dos incautos que cruzarem meu caminho. Mas não posso desistir, preciso perseverar e esperar pelo próximo ciclo, uma nova chance para matar a fera surgirá. No entanto, durante esta noite, a lua cheia exigirá mais sangue e, uma vez livre, o demônio da lua cheia não descansará até atendê-la plenamente...

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 11/08/2010
Reeditado em 11/08/2010
Código do texto: T2431909
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