A hora do jantar

As horas pareciam se arrastar. Como condenados à morte, elas se dirigiam lenta e morosamente em direção à meia-noite, a hora fatal.

A panela cozinhava na primeira boca da direita do fogão, aquela que queimava mais rápido - gastava mais gás, mas valia a pena -, o conteúdo borbulhava e espirrava gordura. Da sala, Conrad mal ouvia o som da banha chiando no tampo inoxidável do fogão; porém, o cheiro enjoativo invadia suas narinas como se rasgassem uma trilha direto para o seu estômago. Fazendo-o roncar e se contorcer feito uma besta.

Ah, ele estava sentindo medo. Sentia muito medo, porque os ponteiros do relógio iriam se encontrar em breve e, então, seria a hora do jantar. A hora mais maldita de sua vida, desde um ano atrás.

***********************************************************************

A tenda de Madame Moira era uma das mais coloridas em todo o circo e, fora a tenda da mulher-gorila, era a única que tinha um monte de gente esperando do lado de fora.

Conrad estacionou no fim da fila. Se é que era realmente uma fila. As pessoas zanzavam para lá e para cá, tomando o cuidado de não se afastar mais do que um metro do seu lugar, algumas coçando o queixo, outras coçando a cabeça, ou as costas, em todo o caso, elas se coçavam discretamente enquanto esperavam a vez. Conrad parecia ser o único que achava que aquilo tudo era apenas brincadeira, o homem a sua frente tinha um olhar vago e choroso e não parava de morder o lábio inferior. Todos ali pareciam esperar que a mulher atrás da barraca de seda vermelha fosse dar a solução para todos os seus problemas, sem exceção.

- Ah, isso vai demorar – suspirou Conrad, mudando o peso do corpo para a outra perna e cruzando os braços. Apesar de tudo, ele estava obstinado, iria ver a madame, nem que levasse a noite inteira.

Alimentado por um senso de justiça que jamais imaginou possuir, Conrad tirou sua bunda do sofá de casa depois de receber uma ligação de um amigo, um amigo muito deprimido.

Era seu dia de folga e tudo ia muito bem, até que o telefone tocou e desde que ele o atendeu, sua cabeça foi sendo inflamada, primeiro pela descrença, depois pela indignação e, finalmente, pela ira ativista que só podia ter sido herdada da mãe.

O caso era que o amigo no telefone provavelmente estava internado numa clínica para loucos, já que os ruídos no fundo da conversa mudavam de “venha cá, Napoleão, é hora do seu remédio” para “ cuidado com o meu dinossauro de estimação!”. Mas o pobre devia sofrer apenas de uma depressão passageira. Crônica, mas Conrad podia jurar que iria passar, mais cedo ou mais tarde. Ele não era amigo de loucos, e seus amigos não ficavam loucos de repente.

- Ela me deixou! – queixava-se o amigo ao telefone, a voz infeliz de dar dó – Ela disse que eu sou um filho de Satã e que se nós tivéssemos um filho ele iria consumir toda a vida na Terra! Ela disse isso! Na minha cara! E me virou as costas!

Conrad disse a si mesmo que o amigo dizia bobagens. A noiva dele devia ser completamente doida, ou nada criativa, para inventar coisas como essas para acabar com o noivado.

- Ela disse que havia uma profecia negra pairando no meu destino e que antes de se casar comigo ela preferiria se jogar na linha do trem!

Conrad encarou o telefone como se esperasse que ele fosse pegar fogo em sua mão.

- Aí, eu disse que, se era assim, então, eu ia matar ela – completou o amigo, derrubando a certeza que Conrad tinha de que ele não era louco, pelo menos, a certeza de que ele não era um louco perigoso.

A gota d’água foi quando o amigo sussurrou, com voz pingando insanidade, mais para si mesmo do que para o telefone:

- Maldita Madame Moira, eu ainda mato você, sua maldita, maldita, maldita...

O resto se perdeu.

Conrad desligou o telefone, olhou para sua sala de estar, seu jogo de futebol na televisão já não parecia mais tão interessante assim, com uma charlatã no mundo lá fora, precisando que alguém lhe diga umas boas verdades...

A fila andava lenta como o barco de Caronte, mais deslizando do que realmente andando, as pessoas se deslocando inseguras em direção à abertura no tecido vermelho-berrante que, graças as lâmpadas baratas e amareladas, brilhava ainda mais, quase ao ponto de fazer doer os olhos.

- É hoje que o Satã vem visitar essa bruxa sem noção, sem decência, sem coração, sem alma...

- O senhor falou comigo? – perguntou o Morde-Beiço, encolhido na sua insegurança.

- Não, não, eu falava da minha chefe. Às vezes, acho que ela não tem nenhum coração, sabe?

O Morde-Beiço sorriu e assentiu, voltando toda a sua atenção para a tenda a poucos passos de distância.

Conrad revirou os olhos para o céu, de repente atraído pela lua cheia e o halo fantasmagórico que a envolvia.

- Pode ser que hoje ela prometa trazer alguns arcanjos – cochichou Conrad, projetando a voz para o outro lado, com receio que o Morde-Beiço voltasse a perguntar se estava falando com ele. – Ou, quem sabe, São Jorge, ou, melhor ainda, Jesus Cristo...

Conrad suspirou. Não parecia tão interessante bater boca com uma vidente de quinta. Mas algo lá no fundo do coração gritava por vingança. Afinal, além de causar o fim de um estável relacionamento de anos, a “madame” havia provocado a ruína mental de um sujeito, total e plenamente, são...

Conrad ficou feliz como uma foca fuçando num barril de sardinhas quando o Morde-Beiço passou pela abertura que levava a Vil-Mãe-de-Santo, sua mente mal podia deixar de contar os segundos que o separavam dela. Vinha lá do fundo uma vontade louca de denunciá-la para a polícia, de ameaçá-la com tudo quanto era injúria, de fazê-la querer voltar para o diabo do país do qual ela veio e de... mandá-la tomar naquele lugar, mesmo sabendo que esse tipo como o dela, provavelmente, devia estar habituado a dizer e ouvir isso toda hora.

- Aposto como a mulher tem a boca mais sujo do mundo – disse Conrad, para si mesmo. Engraçado, ele nunca falou sozinho tanto quanto hoje.

A espera estava sendo uma droga. Ele mal percebeu que durante a última meia-hora esteve se coçando tanto quanto os outros clientes. Era um gesto inconsciente, como se estivesse com uma leve urticária. E ele se pegou a deixar o olhar vagar ao redor, como se estivesse à procura de algo que andava ali por perto, nesse mesmo instante.

Talvez fosse plausível procurar um médico no dia seguinte, estava ficando desatento a essas pequenas manifestações de uma possível doença.

Ou, talvez, a barraca da cigana exalasse algum tipo de preparado químico, volátil, que debilitasse seus visitantes para que ela pudesse tapeá-los mais facilmente com sua lorota mística...

Conrad quase pulou quando o Morde-Beiço finalmente passou por ele, indo embora. O que o fez despertar para a realidade foi o brilho anormal que parecia envolver o sujeito. Como se ele estivesse coberto de pó mágico da Sininho. Como se ele fosse um fantasma.

Enquanto o luminoso homem se afastava, desviando das pessoas, passando por elas mais despercebidamente do que seria natural, levando-se em conta que ele estava brilhando, Conrad massageou sua testa sentindo que estava bem mais perturbado do que quando havia chegado. Pensar em como, que condições, ele estaria quando saísse desse lugar maldito, barulhento e fedido, quando finalmente tivesse resolvido o problema da miserável charlatã, era como tentar operar a própria cabeça, pura loucura.

Sem mais hesitar, ele passou sob o pano grosso e empoeirado da tenda e viu-se no interior de uma aconchegante sala de visitas improvisada sobre a grama, mal iluminada, era verdade, mas desconcertantemente arrumada e, o que era mais incrível, elegante.

- As pessoas podem ter alguma sorte fugindo com o circo – disse Conrad, correndo os olhos por um sofá de tecido adamascado, cheio de almofadas de diversas cores e formas, que parecia chamá-lo para um cochilo.

- E o senhor já pensou em fugir com o circo?

Conrad não se assustou com a voz que veio das sombras. Esse tipo de gente gosta de pegar os outros de surpresa, causar impacto através de encenações fracas.

- Não – respondeu Conrad, tentando enxergar através de um biombo dourado. Havia sombras movendo-se atrás do móvel, dava para vê-las pelo tecido preso às moldura antiga.

Isso será ouro, mesmo?, pensou Conrad, sentindo-se algo inseguro.

- Nem quando criança tive jeito para ser palhaço – ele completou, para a cigana, quando esta saiu de trás do tabique.

- É mesmo? – ela inquiriu, o rosto jovem e redondo brincando com ele – E nunca pensou em aprender a ser um bom palhaço?

- Não acho que deveria – ele respondeu.

Sem esperar que ela mandasse, ele se sentou numa cadeira forrada de veludo cor-de-vinho, ao redor de uma mesa redonda. Depois da mesa havia outra cadeira, espaldar quadrado, aparentemente muito velha e muito desconfortável.

- Também acho que não – ela disse, passando bem perto dele, de fato, roçando em seu cotovelo. – Conrad.

Ele sentiu um calafrio quando ela disse seu nome.

Ela se sentou na cadeira. A antiguidade rangeu audivelmente. Conrad achou que ela houvesse sido restaurada. A madeira fora muito bem envernizada, mas ele podia ver riscos profundos nos braços largos e toscos. Por que alguém guardaria uma coisa horrorosa dessas?

Vai ver, Conrad pensou, sorrindo maldosamente. Vai ver o tetra-avô dela morreu sentado nela.

Os olhos da cigana se estreitaram para ele, tornando-se finos riscos negros no meio de cílios compridos e sedutores.

Conrad deixou o sorriso desaparecer instantaneamente. Ela não devia ter mais do que vinte anos, mas dava medo. Era de uma beleza quase corriqueira, cabelo preto escorrido em ondas sobre os ombros estreitos, pele bronzeada, rosto harmonioso e simpático. Mas olhá-la enchia de medo.

- Não vai me perguntar como conheço o senhor?

- Desculpe, madame, você não me conhece. Você só sabe o meu nome e eu não estou aqui para saber do meu futuro. Eu apenas vim para...

- Tirar satisfações. Eu sei.

Ele ia se dar mal se ela continuasse fazendo isso. Por que ela tinha que ser tão jovem e intimidadora?

- Deixe-me terminar, sim? – Conrad pediu, mal percebendo que havia se esticado sobre a mesa para, aparentemente, olhá-la mais de perto. Ele se recompôs, voltando a se encostar na cadeira.

Ela sorriu radiosamente para ele e não havia um pingo de malícia no sorriso. Na verdade, era um sorriso até infantil.

Conrad estava incerto, mas resolveu seguir o plano original.

- Uma pessoa, uma conhecida, esteve aqui um dia desses e...

- Era a noiva do seu amigo. Aquele que agora está no sanatório da cidade. Ele anda ouvindo vozes que dizem coisas terríveis à noite e ele não consegue dormir por causa delas. Ele tentou matar a moça, não foi? Ela foi parar no hospital e ele enlouqueceu porque ele não queria machucá-la de verdade. Agora, ele sente muito medo porque as mesmas vozes que o fizeram querer feri-la dizem para ele...

Conrad se levantou, ergueu as mãos para frente como se pretendesse atacá-la, mas estava apenas tendo um ataque de estresse. De qualquer forma, ela não se moveu um milímetro.

- Pare com isso! – mandou Conrad – Pare de dizer essas coisas! Você não vê o que faz com as pessoas? Você não se sente culpada por fazer tanto mal às pessoas ao seu redor? Hein?

Ela franziu o cenho, como se estivesse diante de um louco.

- Como você pode enganar as pessoas desse jeito sujo e covarde – continuou ele, disposto a despejar tudo o que tinha guardado para ela, essa charlatã -, como acha coragem? Você devia sentir vergonha ao se olhar no espelho!

Ela ouviu calada, parecia estudá-lo, esperava que ele dissesse tudo. Conrad, de repente, sentiu-se humilhado por aquele olhar.

- Você é uma grande safada! Mentirosa!

Sua voz se perdeu naquela sala sombria e cheia de coisas antigas. Como haviam conseguido arrumar aquelas coisas tão bem num lugar tão pequeno? E como tudo parecia tão limpo e polido? Como era possível haver tanto silêncio ali dentro?

Conrad se sentou, cansado pelas próprias palavras.

- Senhor Conrad – ela finalmente ia dizer alguma coisa, desculpar-se por ser tão ruim, Conrad assim esperava -, acalme-se. O senhor acabou de dizer coisas horríveis e pode ser que se arrependa mais tarde.

Conrad resmungou. Queria ir embora, a noite havia sido um terror para ele.

- Não vai adiantar eu reclamar, não é mesmo? – ele perguntou.

- Reclamar do quê? Você só gritou até agora.

Ela havia perdido um pouco da calma. Conrad ficou satisfeito, divertidamente satisfeito por ver como ela se remexia na cadeira, doida para colocá-lo para fora.

- Não sabe do que deve reclamar – ela explicou.

- Eu reclamo de crimes, injustiças...

- Chega!

Ela ergueu uma mão e voltou a colocá-la sobre o braço da cadeira. Respirou fundo. Conrad podia sentir que estava em fim conseguindo perturbá-la. Ou, pelo menos, dar-lhe uma enxaqueca.

- Você não entende – ela observou.

- Entendo que posso muito bem chamar a polícia e, se isso não for o bastante para acabar com uma farsante como você, vou lá fora e conto para cada uma das pessoas que estão esperando naquela fila como você arruinou a vida de duas pessoas que sempre andaram juntas nessa vida.

Ele se ajeitou na cadeira, esperando pelo que ela ia dizer. Isto é, se ela tivesse coragem de ironizá-lo como vinha fazendo desde que ele lhe dirigiu a palavra.

- Você não entende – começou a cigana -, não entende que não pode vir aqui e dizer calúnias e fazer ameaças. A polícia nunca poria os pés aqui, nem que a cidade inteira mandasse. E as pessoas lá fora não irão embora por qualquer bobagem que você se atreva a dizer. Você não tem nenhuma influência aqui.

- E você não tem influência sobre mim – disse ele, debruçando-se sobre a mesa e olhando-a no fundo de seus olhos negros. – Algo irá acontecer hoje, imagine.

- Eu não imagino nada, eu vejo!

Ela se levantou da cadeira, tão rápido, que Conrad achou que ela fosse agredi-lo, mas a Madame se afastou, recuou para as sombras.

Ela apontou um dedo fino em sua direção e disse:

- Está em você! Sob a sua pele, como um parasita! E você precisará dar-lhe de comer em breve, senão, ele o devorará de dentro para fora!

Conrad sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha. Dedos invisíveis arranhavam seu estômago, ele, instintivamente, apertou-os com os braços.

- Está vendo? – ela perguntou, reaproximando-se dele, cabelos caídos sobre o rosto, como uma cortina, e olhos esbugalhados de pavor – Ele está crescendo! E vai crescer mais e mais e mais, até o dia em que você morrer ou tiver coragem de matá-lo!

Completamente louca, era isso o que ela era. Madame Moira atormentava as pessoas dizendo aquelas coisas pavorosas, tentando matá-las de medo. Conrad saiu correndo da tenda, ainda apertando a barriga, ouvindo as instruções maléficas da cigana, sussurros carregados de magnetismo, mas ele não parou de correr até perceber que estava exausto e que estava na frente de casa.

Sozinho na calçada, só com a luz dos postes para dissipar as sombras que haviam assomado sobre ele, percebeu que, de verdade, havia alguma coisa se mexendo dentro dele e Conrad sentiu um medo e um desespero frio arranharem bem fundo nos seus ossos.

Com mãos trêmulas, ele destrancou a porta. Seu corpo estava coberto de suor frio. O relógio tiquetaqueava, ele o olhou. Quase meia-noite, a hora mais obscura que havia.

Uma convulsão involuntária o levou ao chão. Dor, rios de dor partiam de suas entranhas e ele, de repente, percebeu que estava babando sangue. Ele se arrastou pelo chão, mal conseguindo enxergar aonde ia.

Ele ia morrer. Era terrível, não conseguia gritar socorro e não queria que alguém o visse tendo um ataque desse tipo.

Mas a fome, a fome era insuportável, tinha vontade própria, ele seria capaz de comer até o sofá.

E, providencialmente, no meio de toda essa cega agonia, ele ouviu patinhas correndo. Latidos de pura felicidade.

Conrad abriu os braços para o filhote de labrador (cor de chocolate) que deslizou pelo chão em sua direção.

Ele o achou delicioso desde a primeira vez que o viu.

Andhromeda
Enviado por Andhromeda em 11/08/2010
Código do texto: T2430984
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.