A felicidade é uma cadela

Por Ramon Bacelar

Em tempos que já vão longe em uma cidadezinha desconhecida, um mendigo seminu alimentava seu saco de estopa com farrapos de pão e latas de salsicha em um lixão comunitário. Em noites como aquela, em que o vento frio transformava ossos em esculturas de gelo e a escuridão conquistava território e fincava suas raízes nos últimos resquícios de claridade, a saudade e a solidão acabrunhava o pedinte de tal maneira que somente sua sombra (prima em primeiro grau da escuridão),companheira inseparável, era capaz de derreter seu gelo interior.

-O que te acabrunha companheiro? –Pergunta a dama em negro.

-O de sempre... mas essa noite tá difícil. Se não fosse tua companhia...

-Entendo... tá muuuiiito difícil.

-Você também se sente solitária?

-Claro, afinal sou sua extensão e como sua faceta negra-obscura...sinto tudo com mais intensidade.

Com essa declaração o silêncio se fundiu a escuridão e intimidou toda e qualquer esperança de ruído e claridade.

O mendigo, estafado e sonolento, ajeitou o saco de estopa e foi dormir com sua companheira em seu banco predileto na praça principal. Chegando lá ouviu vozes e risadas espirituosas mas não identificou sua origem:

-Quer companhia?

Sentiu um puxão nas costas mas ao se virar não viu nada.

Abriu os ouvidos e identificou a origem sonora na fila de bancos mas ao se aproximar só enxergou manchas negras nas cadeiras e encostos, e as vozes:

-Por que não vem? Estamos te esperando!

Sentiu novamente a força de um puxão nas costas como se a coluna fosse partir, olhou para baixo e com os olhos incrédulos viu sua sombra esticar e desprender do corpo com um estalo semelhante ao de um elástico se partindo; esbugalhou as retinas no mesmo instante que a voz de sua amiga lhe penetrava nos ouvidos:

-Adeus amigo, foi bom ter te conhecido, vou viver com minhas irmãs boa sorte!

Fez o nome do pai ao mesmo tempo em que as outras sombras abandonaram os bancos para saudar a nova amiga e com um adeus em uníssono , desapareceram na escuridão.

O pobre pedinte, tremendo mais que vara verde e assustado até o espírito, pega o de estopa, mas antes de virar as costas ouve outro ruído e visualiza abaixo do seu banco predileto uma cachorra amamentando cinco filhotinhos; suspira, vira as costas num gesto de adeus, abaixa cabeça e sussurra em voz lamentosa: a felicidade é uma cadela.

FIM

Ramon Bacelar
Enviado por Ramon Bacelar em 31/07/2010
Código do texto: T2409746
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