O Saci

sexta feira, 30 de outubro de 1802

– Venham logo, seus idiotas! – berrou o Coronel Alphonse, fitando com olhos ardentes os dois escravos, enquanto adentrava a floresta escura que demarcava os limites de sua fazenda no interior da Bahia. A escopeta de pederneira carregada pesava em sua mão esquerda, enquanto o facão rasgava a vegetação densa, que parecia se fechar ao redor deles como um ninho de serpentes. O ar denso e úmido apertava seus pulmões, e os sons da noite, cada estalido ou farfalhar de folhas, transformavam-se em ameaças silenciosas no ouvido do Coronel.

Aos 60 anos, Alphonse carregava um peso de 90 quilos, cada passo arrancando o pouco fôlego que lhe restava. A pouca paciência se esgotava. Tinha certeza de que aquele 'crioulo', uma sombra que o assombrava há semanas, estaria ali. – Vou matá-lo desta vez, esse maldito que vocês trouxeram para minhas terras – vociferava Alphonse. – Vou pendurá-lo numa árvore e dar o exemplo para que todos o vejam...

Não era para menos que o Coronel estava raivoso: naquela noite, encontraram dois bois caídos, expostos como feridas abertas, devorados como que de dentro para fora. Esse era o terceiro ataque em três semanas. E alguns escravos juravam ter visto algo. Uma sombra, disseram, que saltava entre as árvores, assoviando e rindo. Como um homem, mas com apenas uma perna. Uma figura que cantava canções de morte nas línguas de seus antepassados.

Chegaram a uma velha árvore retorcida, onde ouviram um assovio. A melodia era familiar, uma canção de luto cantada pelos escravos à noite. Agora, aquele assobio os cercava. Os três pararam, e um frio tomou o ar quando um vento forte sibilou, carregando palavras ao ouvido do Coronel:

– Quem é você, homem branco e mortal, para vir à minha casa? – a voz zombava, ecoando entre as árvores, acompanhada por uma risada cortante. – Já comi porcos maiores que você...

– Cale a boca, demônio! Apareça, e vou lhe dar um tiro para não mexer mais com meus animais! – gritou Alphonse, brandindo a escopeta.

– Seus animais? – o vento zombou, rindo. – Eu não os perguntei se tinham dono... e você também parece apetitoso, velho...

Num salto, Alphonse ergueu a escopeta, apontando para uma silhueta que se esgueirava entre as árvores. Mas a criatura era rápida. Em segundos, estava à frente do Coronel, desferindo um golpe que o lançou ao chão, sua cabeça girando, o rosto quente de sangue. O pequeno lampião dos escravos oscilava, lutando contra o peso da escuridão.

– Maldito! Vou lhe arrancar essa perna que lhe resta! – gritou o Coronel, cambaleando.

Mas a risada voltou, mais próxima, envolvendo os três. – Não! Que tal eu arrancar a sua perna, homem? E depois me saciar com suas vísceras...

Um redemoinho de sombra envolveu os escravos que, em um último impulso de coragem, avançaram contra a criatura, brandindo os facões. Mas a escuridão os engoliu, e seus gritos foram silenciados.

Alphonse, agora sozinho e ferido, tateava o chão com o rosto coberto de sangue grosso e quente. O lampião, prestes a apagar, iluminou a figura à sua frente. Não era um menino, nem um escravo desobediente. O ser diante dele tinha mais de dois metros de altura, a pele escura marcada por cicatrizes antigas, os cabelos desgrenhados e os dentes, afiados como os de um leão, mastigavam a mão de um dos escravos.

– Servido? Homem branco? – zombou o Saci, com um sorriso cruel. – Esses também não eram seus animais? Ahahahaha!

Assustado, Alphonse se ergueu cambaleando e saiu correndo. Sentiu um sopro quente na nuca e ouviu o sussurro da criatura:

– Corra, homenzinho fraco... mas saiba que vou te alcançar.

Ele tropeçou em uma pedra e caiu. Quando virou o corpo, o último som que ouviu foi o de sua própria carne sendo rasgada e uma sensação única, aterrorizante, de ser devorado.

Ao amanhecer, os escravos entraram na mata em busca do Coronel. Sabiam que o Saci não os atacaria durante o dia e que o mistério da noite terminara. Pouco tempo depois, encontraram o corpo do Coronel Alphonse. Estava caído, de bruços, sem membros e com um vazio profundo no lugar dos órgãos, uma visão que silenciou todos.

Eles se entreolharam em silêncio, trocando olhares de compreensão e um senso de que a escuridão trazia algo muito maior. Então, tomados por uma súbita coragem, voltaram à fazenda e, com tochas improvisadas, incendiaram a casa grande, deixando as chamas consumirem tudo.

Enquanto o fogo subia, um vento estranho soprou pela mata, e com ele veio um assovio familiar. Uma melodia que muitos dos homens e mulheres ali conheciam bem, uma canção de memória e respeito por seus antepassados. Parecia que o Saci assobiava com eles, lembrando-os de que estavam livres.

Superunknown
Enviado por Superunknown em 22/07/2010
Reeditado em 29/10/2024
Código do texto: T2393980
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