O cataléptico e o verme

Por Ramon Bacelar

Despertando com um nauseante odor de mofo e umidade incomodando suas narinas, abriu os olhos e não viu nada. Não estava frio mas “algo”o obrigava a buscar proteção: era como se a indefinição e incerteza da escuridão ao seu redor enfraquecesse seu senso de proteção e minasse suas certezas. Levantou-se para ir ao banheiro e foi impedido por algo rígido e frio ferindo sua testa, a dor lacinante percorreu seu corpo como um choque elétrico e sentiu seu rosto ser coberto por um líquido quente e pegajoso que em poucos segundos transmutou sua face angular em uma cadavérica redoma de cera.

-Tentou, tentou...

Uma voz distante se fez ouvir.

-Novamente tentou...

No esforço de concentração sua respiração se tornou momentaneamente ofegante.

-Tsss...tsss... fracassou.

O timbre doentio feriu seus tímpanos com uma claridade de definição que o fez recordar de sua infância sádica, quando torturava pardais e pintassilgos apenas pelo prazer de ouví-los esguichar de dor e agonia.

-Quem está aí? - Respondeu com voz aquosa, afogadas que estavam suas palavras na saliva pegajosa e líquido quente.

-Quebrou a testa hein meu caro?

-Que tal me ajudar? Estende a mão e ajuda a me levantar.

-Não me conhece mesmo.-Balançou a... “cabeça” num gesto sério e meditativo-Sou maneta.

-Então estende a perna e me ajuda.

-Sou perneta.-A voz escapou como uma angustiada asfixia impotente, enquanto olhava para cima como se aguardasse que Alguém esvaziasse os intestinos em sua cabeça com respostas e esclarecimentos.

-Huuummm... entendi. Não quer me ajudar-Suspirou fundo sentindo o peso do mofo e umidade revestindo seus pulmões.

-Não! Não “posso”. Além do mais...tenho filhos para cuidar.

-OK. Então vou me virar sozinh... aaaaaiiiiiiii, porra!-Mais uma vez o baque surdo de sua testa em contato com a estrutura sólida ecoou.

-Idiota, quanto mais você grita...morte por asfixia é agonizante meu caro.

-O que você quer dizer?

Por um desconhecido impulso, percorreu suas mãos pela cama e a realidade de sua condição se fez presente em sua mente com claridade ofuscante.

-Poooorrrrraaaaaa!!!

-Pois é... e o inchamento em seu braço...

Apalpou com a mão esquerda sentindo o inchaço e percebeu que seu pesadelo recorrente de acordar dentro de um caixão com o braço parcialmente fora adquiriu solidez e significado: era como se os sonhos invadissem a (sua?) realidade, mas não recordou de nenhum bate papo com um verme faminto.

-Que pesadelo hein meu caro...”real”.

A última palavra alimentou seu impulso de racionalização e por um momento a idéia de um mero devaneio onírico em meio a um dos seus muitos pesadelos o levaram momentaneamente ao universo de conjeturas e encadeamento lógico, mas um toque frio na forma de um corpo cilíndrico e anelado em suas narinas o arremessou novamente ao: Pesadelo do Pesadelo? Devaneio do Devaneio? Realidade da Realidade?

-Acho que vou dar um passeio... fazer um lanchinho.

-AAAHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Sentiu a dor lacinante da frieza cilíndrica explorando suas narinas, fortificando-se com o alimento vital em forma de pequenos e pegajosos nacos de carne nasal que uma vez degustados como um vinho de boa safra, com a rapidez e eficiência de uma injeção de morfina, revitalizava sua energia e lhe dava impulso adicional para explorar o aparentemente infinito universo de carne e proteínas.

-Não!! Não!!! Pareee!!!

O silêncio que se seguiu ao agonizante pedido de socorro foi ferido por uma voz distante, como se saísse de um túnel.

-A minha necessidade é a sua meu caro. Só muda o endereço.

-Acabe logo com isso!!Estou sem ar!!!! Está queimando!!!!!

-Você é pai?

Na asfixia da escuridão balançou a cabeça em tom afirmativo.

-Então vai entender.-A frieza Darwineana com que o verme proferiu as palavras o fez entender sua posição no tabuleiro cósmico, na ordem das coisas e com a cabeça fora das narinas do pobre diabo agonizante...

-FIIIUUUUUU!! FIIIUUUUUU!!!! HORA DO LANCHE CRIANÇADAAAA!!!!!!!

Foi a última coisa que ouviu antes de sentir pequenas formas cilíndricas explorando seu apetitoso manancial de proteínas.

FIM

Ramon Bacelar é contista, crítico e ensaísta. Mantém um blog sobre cinema, quadrinhos, literatura e cultura underground (Maquinário da Noite: www.maquinariodanoite.blogspot.com) é colaborador do site Teia Cultural (www.teiacultural.com.br) e publica contos no Recanto das Letras http://www.recantodasletras.com.br/autores/ramonbacelar e em seu site pessoal, Miragens Ofuscantes: http://www.miragensofuscantes.blogspot.com

Ramon Bacelar
Enviado por Ramon Bacelar em 17/07/2010
Reeditado em 17/07/2010
Código do texto: T2382685
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