A Tempestade Cósmica (um conto do Fim)
Capítulo I
Ao acordar-me naquela manhã anormal, tive uma impressão absurdamente estranha e inexplicável. Senti que estava em minha casa, mas sabia que não era ela. Explicando-me melhor, meu raciocínio lógico dizia-me que o local em que me encontrava não era o meu quarto, fisicamente falando, apesar de apresentar semelhanças com ele. No entanto, a sensação que me dominava era de que eu realmente estava nele, sentia-me em meu quarto. Seria essa uma sensação onírica, estaria eu em um sonho, sonhando que havia acordado? Não, tive certeza que acordara, sabia que não era um sonho. Mas que me acordei estranho, em local estranho porém familiar, e sob um estranho clima de desejo, de angústia, de incompreensível esperança e de latejante medo, não resta a menor dúvida.
E despertei com o som de um longínquo trovão. Um trovão que acendeu uma insólita chama em minha alma. Aquele som de uma tempestade que aparentava estar muito longe me transmitiu a inconfundível impressão de chamar-me, falava diretamente à minha psique, comunicava-se com minha alma e deixava nela a ordem imperativa de sair às ruas à sua procura, guiado por uma estranha e dilacerante chama que se acendia em meu coração. E imediatamente veio a mim um estado psíquico de alarme: alguma coisa de terrível e sublime estava para acontecer com a humanidade... Tomado pela bizarra sensação, parti de minha casa, que não era minha casa, em busca daquela força irresistível de esperanças e temores, de paixões e de anseios, de vida e de morte.
Capítulo II
Passei a percorrer uma inusitada estrada que não havia ali anteriormente. Apesar de ao longe ouvir os cataclísmicos trovões, o dia estava parcialmente ensolarado, com temperatura agradável, e a tranqüilidade seria total, não fosse o rumor de tempestade iminente. Caminhando como um insano pela estreita e arborizada estrada, a qual jamais havia visto, buscava chegar ao local onde se instalara a tormenta. Sim, minha intuição dizia-me que a tempestade fixara-se em algum ponto, como que para se fortalecer, e logo seguiria seu rumo de forma implacável. Isso me abalava intensamente os nervos, mas não soube entrever o motivo. E na estrada anômala em que caminhava, com absurda exaltação em minhas emoções, desvairado, temendo e doentiamente esperançoso, eu divisava ao meu redor inúmeras casas pequenas e singelas, de uma comovedora beleza de estranha simplicidade. À frente das casinhas, miríades de plantas, também estranhas e intrigantemente exóticas, cintilavam sob a luz de um sol mortiço, diáfano, mas que ainda transparecia agonizante por entre as nuvens,
O que havia de incompreensível em todos estes fatos? Primeiramente, o chamado da tempestade. Como receber na mente e na alma o chamamento de uma tormenta? E que lugar era o que eu me encontrava, ao mesmo tempo desconhecido e familiar? E por que em mim vibravam tantas emoções exacerbadas, sentimentos tão intensos e inflamados? Tinha a firme impressão de que tais emoções foram de alguma forma injetadas em meu espírito pela tormenta. Até porque, e isto é ainda mais incompreensível e anômalo, a tempestade impetrava também em minha psique uma sedutora e absurda promessa... A de que eu, ao chegar até ela, encontraria a verdade, a saída para todas as coisas, o alívio para todas as dores, o bálsamo do amor...
Capítulo III
Prosseguia em meu percurso, que sabia ser magnífico e perigoso, quando senti o sopro de um vento úmido e estranho que provinha dos altos céus, agora mais congestionados de nuvens brancas e cinzentas, embora um sol agônico ainda brilhasse. E aquele vento úmido era extremamente denso e espectralmente carregado, nebuloso e febril. No entanto, eu me sentia bem com ele, era-me muito salutar. Parecia advir das gigantescas e verdejantes árvores que me circundavam e insuflava em meu coração um bizarro entusiasmo, uma febre anímica cheia de força e coragem, de energia e paixão, e, ao mesmo tempo, de tenso receio, de um enervante medo e do temor espiritual ligado ao que poderia sobre mim recair. Alguma coisa terrível estava para acontecer...
E o vento sobrenatural que, eu sei, nascia do âmago da tempestade e carregava minha mente e alma para outros mundos inenarráveis, em determinado instante, de forma que eu jamais conseguiria explicar, fez com que eu me visse em um local totalmente diverso da estrada extraordinária que percorria. Creio, de alguma maneira inconsciente, ter atingido uma região mais afastada, onde agrupavam-se dezenas de jovens e adolescentes. Tais pessoas demonstravam conhecer-me e chamaram-me assim que me avistaram. Sentia-me anormalmente inquieto, exaltado, tenso, na espera do terrível e sublime encontro com a tormenta, que, agora onde me encontrava, tinha certeza de estar mais próximo dela.
Capítulo IV
Aproximei-me do grupo de jovens com certo receio. Havia algo de estranho neles, demonstravam uma intensa e mórbida inquietação. A noite aproximava-se, o vento tornou-se mais frio e intenso, impregnado de pressentimentos, assim como os trovões, agora bem mais ameaçadores... Percebi certa perturbação nos olhares, no comportamento, na canhestra euforia daquelas pessoas, que tratavam de assuntos obscuros, incompreensíveis, em grotescas gesticulações. Decidi tomar parte daquelas conversas nervosas. Não lembro com exatidão de todos os inusitados temas de nossos inverossímeis e delirantes colóquios, porém um deles ficou profundamente gravado em minha memória... Inexplicavelmente, não lembro da fisionomia do alucinado jovem com quem falava, mas recordo-me perfeitamente do que disse. Para não estender-me em demasia, limitar-me-ei a mencionar este pequeno trecho de seu longo, incoerente e absurdo discurso, que era proferido enquanto o tenebroso clima de tempestade tornava-se mais e mais carregado e assustador. Questionava então aquele jovem:
“Onde estão os nossos sábios agora? Onde estão os gênios, os mestres, os filósofos de nossos dias, que não fazem nada, que não vêem nada, que não percebem um palmo a frente de seus narizes? Estamos à beira do fim, está tudo desmoronando, caindo, morrendo... Vê, ali vem a tempestade, sabes que tempestade é essa? Por que ela vem? É o Eterno Retorno, todas as coisas renascem. Mas morrem antes... É a Morte, a grande transformação. Como bem disse Goethe: “Ser nenhum pode em nada desfazer-se, em todos se agita sempre o Eterno”. É a lei de ação e reação, a busca pelo equilíbrio que toda a natureza, todo o universo sempre realiza. E nós, o que somos diante de tudo isso? Será que essa gente não vê que somos nada mais que um amontoado de marionetes, que vivemos inconscientemente uma vida controlada por forças malévolas e ignotas que nos impõem em níveis do subconsciente perversas mentiras sempre aceitas como imutáveis verdades? O que está sendo feito de nosso mundo? Para onde caminhamos? O que há por trás de todas as coisas que nos ocultam, que afirmam não existir, que garantem ser apenas invenções de homens mentalmente doentes? O que há além de tudo isso? O que há além de nosso mundo? Além de nossa vida miserável do cotidiano? Ali vem a grande tempestade, e o que fazem os sábios, os intelectuais? Ficam tratando de probleminhas fúteis, como usar ou não cinto de segurança, tentando saber se o papa está certo ou errado, quem vencerá a próxima eleição, se tal corpo celeste é um planeta ou não é, qual país será o mais poderoso do mundo no próximo século, mas parecem absurdamente ignorar que no próximo século, muito provavelmente, não haverá mais países, não haverá humanidade. Aliás, haverá próximas décadas? Ou melhor, haverá décadas como nós as imaginamos? Tenho minha funestas dúvidas... Não, não me pergunte... Só o que sei é que nos escondem tudo, e assim vivemos, vítimas da mais negra ignorância, simplesmente porque não sabemos que não sabemos, pelo contrário, orgulhamos-nos em pensar que somos uns sabichões. Somos, isso sim, o lixo do universo. Mas não nos enganarão para sempre, aí vem a tempestade, e dela eles não poderão fugir... Ou rir...”
Quando se encerrou o sentencioso discurso, olhei para o céu, e sobre mim assomou-se uma nebulosidade tamanha e tão negra que senti estremecer o âmago de meu ser... Aquela visão pavorosa descortinou-se tão amplamente e estava tão carregada dos mais inimagináveis relâmpagos que custei acreditar no que via. E um descomunal troar de trovões alastrou-se arrasador pelos horizontes, enquanto a noite caía por completo e uma lua doentia e monárquica surgia na região celeste ainda sem nuvens... Compreendi então que deveria partir imediatamente ao encontro da Tempestade...
Capítulo V
E eu o fiz, não sem antes convidar o jovem que havia proferido o terrível discurso e também uma pequena jovem que ali estava, tão bela, que me fitava com um olhar tão meigo e apaixonado que não pude deixar de notar... Ambos aceitaram meu convite, e partimos alucinados, indiferentes aos tolos gracejos a nós dirigidos pelos que ali permaneceram.
Sentindo o agora frio e violentamente espiritual sopro da assombrosa tempestade, tomamos uma nova estrada, agora já quase que totalmente campestre, cercada por imensos arbustos e árvores, iluminada pelo clarão pressagamente cintilante do titânico luar avermelhado. E a luminosidade noturna intensificava-se ainda mais quando os hercúleos relâmpagos, dos quais nos aproximávamos rapidamente, resplandeciam solenes e trágicos nos céus dramaticamente conturbados. Espantava-me o fato de que, mesmo com o céu cada vez mais repleto de nuvens, em nenhum momento ocultava-se o luar...
Mal conseguia acreditar no que eu e meus companheiros estávamos fazendo, correndo desabalados, como verdadeiros insanos, na busca sedenta, regada de irremovíveis anseios, de absurdas esperanças, de nervosos temores, na busca alucinada pela mais gigantesca tempestade que já presenciáramos. Sim, porque ao longe, a mais terrífica e espetacular legião de relâmpagos iluminava um horizonte estranha e catastroficamente carregado de púrpura, de escarlate, de um trágico vermelho. Crendo no chamado com implacável paixão, com uma febre psíquica abrasadora, completamente tomados pelo delírio causado pela tormenta, entramos em um bosque demasiado denso e escuro, ainda que a noite tempestuosa estivesse anormalmente iluminada.
Capítulo VI
Perdendo o rumo da estrada, detêmo-nos por alguns minutos para decidir para onde iríamos. Foi quando surgiu da mata um esquisito animal, relativamente pequeno, um pouco maior que um gato doméstico, embora não fosse um felino, aliás, não soubemos reconhecer sua espécie. O animal fixou seu olhar de fogo nos meus e partiu por entre o denso arvoredo. Intuitivamente, compreendi que deveria segui-lo. Foi o que fizemos e, após cerca de meia-hora, sendo guiados pelo pequeno ser, em estado de uma crescente e perturbadora inquietação emocional, chegamos ao fim do bosque, e o que em seguida contemplamos, eu mal teria palavras para descrever...
Como já havíamos previsto, devido ao medonho e incessante relampejar, ao estrondoso, ensurdecedor ribombar apocalíptico dos trovões e ao enfurecimento indomável da úmida ventania, estávamos agora aos pés da Grande Tempestade. Mas o que víamos estava muito acima de uma tormenta... Consistia em um espetáculo sobrenatural e absolutamente aterrador, belo, sublime, arrasador, catastrófico...
Por uma imensamente vasta e fantasticamente avermelhada região, iluminada por infindáveis relâmpagos que se ramificavam de forma interminável e por um poderoso e febrento luar rubro, um ciclópico e inolvidável cenário de tormenta se estendia triunfante e devastador por onde quer que se dirigisse o olhar. A chuva torrencial e refulgente que dominava alguns lugares não chegou a nos atingir, apenas uma névoa dela oriunda e trazida pelo frenético vento molhava nossas faces, cabelos e roupas.
Capítulo VII
Por entre as nuvens e a chuva, uma arrebatadora e marcial luz vermelha imperava por todos os lados. Um vívido medo e, simultaneamente, um misto de assombro e esperança, percorreu minha espinha intensamente. Entre aquela luminosidade fulva como as chamas de um vulcão, recheada dos mais furiosos relâmpagos que já presenciara, começaram a surgir aparições fantasmagóricas, assumindo formas de horror e sublimidade, cuja visão fez-nos curvar-nos em temerosa reverência... Jamais conseguiria descrever cabalmente o que vi naqueles rostos que se formavam, aqueles aspectos ora eram demoníacos, ora angelicais, ora de solene serenidade, ora irradiavam uma fúria tão chocante que não pude conter o nervoso pranto que correu em minha face. Olhei para meus companheiros, e eles, cobrindo a cabeça com as mãos, também choravam em delírio. Por sobre nós, pairavam aquelas formações terríveis, medonhas, absurdas... Percebi que avançavam, não podendo determinar exatamente para onde, e seu número crescia assustadoramente, à medida que aumentavam as pesadas nebulosidades e os perenes relâmpagos. Aquilo que se formava, aquelas faces furiosas e sublimes, aqueles seres que não poderia classificar, enfim, aquilo que aparentava ser a alma da tormenta, parecia emitir os armagedônicos trovões. E os som destes, combinado com o da chuva e com o do vento, passou a vibrar em um estranho e alucinante ritmo de guerra, em um compasso que comovia e perturbava quase de forma intolerável. Era a Sinfonia da Tempestade, as notas de uma destruição que caminhava a passos muito velozes...
Capítulo Final
Nesse instante, quando a Tempestade dominava absolutamente tudo, inclusive nossas almas, quando sua força destrutiva não cessava de crescer e assumir proporções inimagináveis, quando outro som ainda mais apavorante, o som da morte e do fim de tudo o que a Tormenta deixava em seu rastro, invadiu nossos miseráveis ouvidos, abriu-se algo diante de nossos olhos atônitos...
A cerca de 50 metros de onde nos encontrávamos, com a alma dominada por uma paixão anímica prestes a explodir, um enorme círculo de uma luz purpúrea lentamente abriu-se diante de nosso estarrecimento. Quando o círculo concluiu sua esplêndida abertura, em meu espírito ouvi um outro chamado que agora provinha do interior estranhamente luminoso do círculo gigante. Acedi ao bizarro chamado, convidei meu amigo, peguei na mão úmida da pequena jovem,que me olhava com infinita doçura, e entramos assombrados no Mistério indecifrável...
Acordei-me com o terrível som de um trovão. Levantei-me sobressaltado da cama. Olhei pela janela e constatei que se aproximava uma impiedosa tempestade... o dia estava estranhamente escuro... e levemente avermelhado, eu diria. Não havia ninguém nas ruas, a não ser... a não ser aquela pequena moça... olhando fixamente para minha janela... Aquela moça que nunca antes tinha visto, a não ser no pesadelo com a absurda Tempestade...