SANGUE MALDITO
Seus músculos começavam a exibir os primeiros sinais de exaustão. A dificuldade para respirar era nítida. Como ele detestava aquelas malditas aulas noturnas, odiava o curso de informática com toda a força do seu coração. Na contramão da maioria dos adolescentes, ele não se via dominado pelo poder irresistível dos computadores, apenas aceitava a vontade da mãe, como em todas as coisas que ela lhe pedia.
Pior do que suportar o tempo diante da tela, era ter de conviver com os colegas que simplesmente não o suportavam e que, invariavelmente, o atacavam ao término dos estudos. Geralmente ele conseguia tirar proveito do seu corpo franzino e esguio, fazia uso da agilidade para se desvencilhar das perseguições sem sentido. Entretanto, naquela noite, algo diferente acontecia, sua energia parecia se esvair em cada gota expelida pelos poros dilatados. O excesso de suor não deixava margem para dúvidas.
Eles o alcançariam, era questão de tempo. Tal pensamento se plantava como uma certeza em sua mente. A ardência nos pulmões era insuportável, não dava mais para fugir.
O garoto não sabia que estava sendo observado, na verdade, ele não fazia a menor idéia de que fora objeto de estudo durante toda a sua vida. Protegido pela folhagem espessa de uma árvore, a criatura aguardava, ansiosa, pelo desfecho da situação.
Assim que parou de correr, o menino foi rapidamente cercado pelo bando. Não tardou para que as ofensas e ameaças se convertessem em agressão física. Entre os galhos, ao contemplar a cena, o olhar da criatura faiscou injetado por uma fúria rubra. A saliva escorria farta da boca entreaberta, enquanto suas unhas curvas arrancavam lascas da madeira viva. Saltar sobre o grupo era sua vontade, mas, inesperadamente, ele recuou.
O menino agredido estava encolhido no chão, com as mãos na cabeça, num gesto típico de defesa. No entanto, sua pele não sofrera um reles arranhão, mesmo diante de tamanha violência. De alguma maneira alheia a sua própria compreensão, os golpes aplicados contra seu corpo foram incapazes de lhe proporcionar dor. Mais do que isso, aqueles que queriam o seu mal simplesmente abandonaram o local, aos gritos, como se fugissem do pior dos seres. Sem nada entender, porém agradecido, o menino se ajoelhou e começou a chorar, antes de continuar o caminho de volta para sua fortaleza, sua casa.
O brilho avermelhado entre as folhas lentamente perdeu a intensidade. A criatura rosnava numa risada entrecortada. Estava satisfeita, logo conseguiria realizar um desejo nutrido por eras: um herdeiro legítimo, cujo sangue escuro detinha a herança pura de sua linhagem.
Quanto tempo ele esperou por isso. A mesma natureza que lhe oferecia inúmeras possibilidades, também negava à sua espécie a chance de gerar descendentes. O corpo morto das fêmeas não permitia que a vida ali brotasse, toda e qualquer tentativa resultaria em frustração, nada além disso.
Era evidente que ele poderia gerar descendentes postiços, bastava para isso injetar o veneno contido no próprio sangue nas veias de suas vítimas, antes que estas emitissem o último suspiro. Ele teria a fidelidade desses novos seres por toda a eternidade, mas eles não carregariam as propriedades de sua existência, pois não passariam de vassalos contaminados pelo mal da morte em vida.
Ele desejava mais. Queria quebrar as barreiras impostas pela própria ordem natural. De acordo com sua lógica interior, se uma igual não pudesse lhe oferecer o que ele queria, talvez uma humana conseguisse. Assim ele tentou por diversas vezes encontrar uma mãe para o seu descendente, mas a fragilidade humana era incapaz de suportar tamanha bestialidade e todas acabavam por sucumbir antes da tarefa ser concluída. Entretanto, quando já achava impossível a concretização de suas pretensões, uma das inúmeras cobaias de suas mórbidas experiências resistiu... O sangue turvo e maldito, enfim, encontraria os caminhos através da vida...
Treze anos se passaram desde o nascimento daquele que seria a coroação de uma existência infinita. E, agora, era chegada a hora de romper os laços mundanos de tão especial criatura. Finalmente, ele reivindicaria para si a tutela do rapaz, e faria isso ainda naquela noite...
A madrugada seguia silenciosa, tão quieta como a aproximação sorrateira e furtiva, própria da raça noturna. A barreira em forma de muro pouco significava para ele, um leve impulso bastava para superar o contratempo. Com a suavidade de uma folha ao vento, ele pousou em seu objetivo.
O olhar de um mortal nada identificaria na escuridão, além de um brilho refletido em órbitas frias. Mas a humanidade passava longe de seu existir, seus olhos enxergavam cada detalhe escondido nas trevas. Logo, os contornos dos enormes cães não exibiam qualquer mistério para ele. As feras partiam decididas a estraçalhar a ousadia do invasor em seus domínios.
Ele não se moveu, não ensaiou qualquer reação, apenas aguardou. Os cães se aproximavam com as lâminas alvas expostas. Eles mastigavam o ar num ato involuntário e ansioso. Mas antes que pudessem consumar o ataque, um simples gesto por parte do alvo foi o suficiente para frustrar suas intenções.
Os animais foram afugentados por um predador que não conseguiam compreender, algo que não deveria caminhar entre os viventes. A fuga fora marcada pelo pavor evidenciado por um rastro úmido sobre o gramado.
Ele sentia o odor familiar no ar, um aroma que o transportava no tempo. O gosto amargo do sangue que provara no passado reacendia a fagulha de uma lembrança. Ela estava na varanda, inspirava a brisa fria da madrugada. A criatura admirava a força e a perseverança daquela mulher, afinal ela lutara pela própria vida com um vigor incomum aos mortais. E, além disso, conseguira desempenhar satisfatoriamente o papel que dela se esperava.
O ser podia se mover com a leveza do vento, mas, ainda assim, não conseguiu se ocultar do instinto da mãe do seu filho. Talvez a conexão que os unia respondesse, também, por anormalidades nas características inerentes à sua natureza.
Um grito quebrou o silêncio das altas horas. O horror que ela desejara com todas as forças esquecer, resolvera se materializar em carne e osso, mais uma vez, diante de seus olhos.
Ela corria pela casa. Em sua mente, o foco único de chegar ao quarto do filho para protegê-lo, embora não soubesse exatamente como. O desespero não poderia ser maior, assim ela pensava, mas os fatos seguintes trataram de contrariar suas certezas. O terror tomara de assalto seu peito. No alto da escadaria, desperto pelo som da perseguição, estava seu filho, tão exposto e indefeso quanto ela própria.
A porta caída ao chão anunciava a presença da razão do seu temor. Não havia benevolência nos olhos da criatura. Apenas ódio, dor e uma doentia satisfação se mostravam no pálido e mórbido semblante, o qual em nada lembrava o rosto delicado e cativante que conhecera muitos anos atrás.
O garoto se colocou entre a mãe e o invasor, uma tola demonstração de valentia. Um golpe leve, porém firme, o fez voar pela sala de estar. A mulher, a mesma que realizara o mais íntimo desejo que o coração seco daquele ser poderia ansiar, deveria ser merecedora de piedade. Sim, deveria. Mas não havia espaço para clemência no âmago de alguém tão vil.
As unhas negras projetaram-se em ganchos curvos, fixando-se como anzóis na carne da mulher. Ela não conseguia gritar ou chorar, nem mesmo implorar pela própria vida, ou pela do filho, que a tudo assistia.
O garoto se contorcia por causa da dor, mas não por aquela iniciada pela investida do maldito, nem mesmo pela proporcionada pelo aperto no coração, ao ver aquela a quem tanto amava sob o jugo do demônio. A dor que lhe consumia era inexplicável, corrompia sua alma, fazia arder uma fogueira em seu estômago.
A criatura sorriu ao ver o filho se debater em convulsão, e seu sorriso fez surgir a expressão máxima de sua face mais cruel. Um movimento rápido e preciso rasgou o tecido macio do pescoço de sua prisioneira. Os dentes ávidos abriam caminho para a voracidade. Ele sorvia a vida aos goles, mas não se fartou. A mulher tremia em seus braços, mas ainda respirava.
O demônio saltou com destreza para perto do garoto, e sem desviar o olhar, posicionou mãe e filho lado a lado. Então, ele falou, e sua voz era arrastada como o sibilar de uma serpente. “Beba! Beba se quiser viver! Sua vida depende disso.”
Num piscar de olhos, já havia desaparecido. A noite novamente recebia seu habitante mais nocivo, ao mesmo tempo em que a mulher e o menino se entreolhavam. Uma lágrima negra escorreu pelo rosto da criança.
“Beba, meu filho. Sorva meu sangue e viva. Eu já estou morta, mas você pode viver. Uma vida maldita, mas ainda assim, uma vida.”
A mulher cuspia sangue enquanto entrecortava as palavras. O menino experimentava uma amálgama de sentimentos, um duelo conflitante entre a ética e o desespero. Mas a sede era cruel, perversa, indomável. O sangue encharcava sua garganta, um néctar proibido e imoral. Ele queria resistir, mas a besta em seu interior era mais forte. Logo, o coração de sua mãe não palpitava mais. Porém, em suas veias corria uma força que jamais sonhara possuir.
Um turbilhão de tons e odores o dominou. Cada som era uma novidade, cada textura uma nova experiência. Mas ele tinha sede. O desejo pelo sangue brincava com sua consciência. Ele queria sair e se alimentar. No entanto, em meio ao fervor da situação, algo mais forte crescia em seu peito vazio e silencioso. A caça pela subsistência poderia esperar, afinal a presa que ele desejava ter entre as garras não serviria para seu sustento...
*Não deixem de conferir a conclusão desse conto na escrivaninha da minha amiga e escritora Tânia Souza.