O Olho no Relâmpago
Acordei-me estranhamente sobressaltado. Consultei o relógio, exatamente 3h51m da madrugada. Havia sonhado com inenarráveis imagens exacerbadas, febris, em uma profunda atmosfera de iminência. Não revelarei ao leitor tais imagens. Como disse, são inenarráveis. A noite era gelada, sombria, e um vento intenso e inquietante varria os ares numa fúria insana. Mas havia algo de anormal naquele quase vendaval. O som que produzia não era tão-somente uivos e gemidos típicos do Minuano invernal, eram vozes, algumas, com características humanas. Sim, tenho certeza, posso afirmar ao leitor que nitidamente ouvi ressoar pela noite o meu nome. Alguém me chamou, era uma voz suave e etérea, melíflua, uma celestial voz feminina. E sei que provinha do vento. Mas não era a única. Outras vozes vibravam medonhas nos meus tímpanos. E estas, absurdas, hediondas, martelavam sobrenaturalmente macabras. Como disse, não eram os naturais uivos do vento. Eram lamentações deprimentes, gritos humanos e inumanos em uma língua para mim desconhecida, grunhidos infernais, cavernosos, como que oriundos de infandas cordas vocais de bestas e monstros, vociferações guturais de imundos demônios.
Levantei-me. Naturalmente, estando eu profundamente inquieto (mas não amedrontado), queria saber a origem daquelas vozes e, ainda mais, quem clamava por meu nome através do vento. Abri a janela. Para meu íntimo assombro, não havia nenhuma das características do local onde me encontrava, ou pelo menos acreditava, e tinha certeza, encontrar-me no instante em que fui dormir. Somente minha casa ainda permanecia; das restantes, simplesmente, não havia o mínimo vestígio. Sob a noite negra, meus olhos atônitos contemplavam uma planície desolada e sem fim, melancolicamente vazia, seja de construções, objetos ou seres. Porém, discerni, quebrando a insuportável monotonia uma estreita e interminável estrada cruzando a planície hedionda. Digo estrada pelo fato de que possuía uma coloração diversa do restante da planície, apresentando tons mais claros e acinzentados, enquanto as regiões que a cercavam tinham uma tonalidade escura, violácea.
Olhei para o céu. Empalideci e o sangue gelou-me nas veias, quando presenciei tão pungente horror: creio que podia “ver” o vento. Os sons demoníacos que me perturbavam originavam-se de uma hoste de espíritos, ou qualquer tipo de seres incorpóreos, imateriais, infestavam todo o espaço noturno. Não possuíam uma forma definida, constantemente metamorfoseavam-se em imagens absurdas, todas repulsivas, diabólicas, apresentando diferentes colorações, sendo a violeta, a negra e a amarela as principais. No entanto, eram cores doentias, do negativo raio do infravermelho. E aquelas... coisas eram o vento, ou estavam indissociavelmente amalgamadas a ele, pois eram elas que sopravam, erguendo enormes nuvens de poeira da terra despovoada e berrando e gemendo de maneira verdadeiramente perturbada. Pareciam também emitir uma opaca luz enfermiça, que transmitia uma sensação angustiante impossível de descrever. E eles cruzavam o céu freneticamente, formavam redemoinhos, faziam brilhar sordidamente determinados cantos do céu, em constelações infernais, em um espetáculo fantasticamente horripilante.
Não obstante tanto assombro, a voz feminina continuava invocando meu nome pela escuridão, e dela, infelizmente, ainda ignorava a origem. Intentei observar melhor entre os espíritos (ou entre o vento) com o propósito de identificar de onde ela provinha, mas foi inútil. Foi então que ao longe, no horizonte carregado, vislumbrei um imenso relâmpago, cuja luz feriu meus olhos de forma insólita, muito mais intensa e penetrante do que um raio comum, e, tudo levando a crer que a causa foi o próprio relâmpago, uma sugestão, uma estranha influência recaiu sobre minha mente... Ela impetrava-me irresistível desejo de descer até a planície, percorrer aquela trilha ominosa, imergindo-me entre os espíritos, no vendaval, até atingir o exato local do relâmpago, que de tempos em tempos repetia-se de forma absolutamente idêntica. E o fiz, desesperado, com a alma inflamada, segui como um louco o fulgor terrível e transcendental daquele relâmpago que ironizava minha sanidade...
Contudo, à medida que avançava na estrada cinzenta, o vento satânico principiou-se a acalmar, e seus entes informes, a desaparecer enigmaticamente. Considerei muito estranha tão repentina tranqüilidade. Não era a calma que sucede a tempestade, mas a que precede uma pior. Minha intuição alertou-me. Gradualmente, nas imediações da estrada, percebi formas engendrando-se das pesadas atmosferas. Eram seres humanos, às centenas, ou imagens dos mesmos. Ao meu lado direito, todos trajavam roupas de batalha, típicas da 2ª Guerra Mundial, com nefastos armamentos. Todos me olhavam sinistramente, com um ar de maligno deboche, e principiou-se uma cena aterradora de genocídio. Assassinavam-se mutuamente, com inimaginável crueldade, enquanto a mim gritavam: “Olha, esta é a humanidade, este é o homem!”; e degolavam seus rivais, arrancavam suas vísceras, metralhavam seus cérebros fazendo-os saltar aos pedaços; traziam mulheres não sei de onde e as estupravam brutalmente, mastigando seus seios e dilacerando seus órgãos genitais, enquanto seus filhos eram fuzilados diante de seus olhos ensangüentados. Com punhais extirpavam os olhos dos inimigos, injetavam-lhes venenos, arrancavam-lhes os dedos, até que, de morte em morte, restou um único soldado que se suicidou com um tiro na boca.
Já ao meu lado esquerdo, a perversidade extrema assumiu outra forma. Agora, outros homens, trazendo diversos animais, bradavam-me a fatídica sentença: “Vê, esta é a humanidade, este é o ser humano”; e iniciou-se uma sessão de tortura e assassinato de uma infinidade de animais inocentes e indefesos. Quebravam, a picaretas, os crânios de dóceis filhotes de focas, abriam o ventre de gatos vivos e extirpavam seus intestinos, indiferentes aos seus berros. Derramavam substâncias corrosivas nos olhos de coelhos, queimavam rabos e patas de cachorros imobilizados por correntes... “Basta! Basta!”, eu resmungava comigo, completamente abatido, caindo por terra quase inconsciente, mergulhado em meu próprio choro.
Creio que desmaiei por alguns minutos. Quando retomei a consciência, tudo havia cessado, e reinava um silencio sepulcral. Nem mesmo uma brisa soprava. Mas, para meu assombro, novamente refulgiu o relâmpago a poucos metros de onde eu ergui-me. Era gigantesco, porém inofensivo, pois pude verificar que o raio era unicamente luz. Aproximei-me, e a voz feérica soou, elevada, profunda, chamando por mim. O relâmpago tornou-se constante, isto é, já não era propriamente um relâmpago, mas algo como um jato de anômala luz, e a voz ordenou-me: “Posta-te debaixo do raio”. Obedeci, e ao fazê-lo, perplexo, distingui, ao alto, um titânico olho no centro da irradiação luminosa. Apresentava-se sob todas as cores do espectro do arco-íris, alternadamente, e ao seu redor abriam-se portas para ignotas regiões. Então contemplei sóis brilhando em longínquos horizontes, anjos e fadas beijando-se apaixonadas, águias cruzando os céus violáceos... E vi vaga-lumes dirigindo-se a uma áurea lua, náiades pairando sobre mares escuros, majestosas árvores gotejando orvalho... E as portas fecharam-se, enquanto o olho voltou-se para mim em grave expressão. E ressoou a voz feminina, tendo eu a definitiva sensação de que ela provinha de dentro de mim, de minha alma, como se fosse a voz da consciência... a ser ouvida e seguida por toda a eternidade.
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