O CORPO.

Estava lá, afinal. Ou esteve. Mas de uma forma ou de outra estava lá, não estava? O corpo, estendido no chão, envolto em sangue grosso e escuro, os olhos – Duas safiras azul-mar – mirando o céu, arregalados como se tivessem visto o próprio demônio. E vai saber se não, pela forma como morrera. Cá tenho minhas dúvidas.

Estivera em rodeios por aquelas bandas desde o início da noite, o que diziam. Parecia nervosa, comedida, zonza, atrapalhada, chorava e murmurava mantras inaudíveis. Caminhou de lado a lado por horas a fio, sem tomar rumo certo. Alguns a viram, mas não se dispuseram a parar. Não era mesmo da conta de ninguém seus problemas. Que fosse enlouquecer em outros cantos. Por Deus ou por qualquer outra força desconhecida fora parar justamente ali, naquela esquina, naquela maldita noite de luar.

Permaneceu estirada sobre o concreto por sabe-se lá quanto tempo, até que lhe viessem buscar, e mesmo assim não se perdeu sua feição angelical de menina nova, e ainda que jazida em sangue parecia meramente adormecida, como a princesa dos contos para crianças.

Uma mão segurou-lhe as pernas. Braços troncudos agarraram-lhe por debaixo dos ombros, mas não foi necessária força para erguê-la. Era leve como pluma, e quando seu braço chocou contra a parede da loja de frente num movimento involuntário e partiu-se com um estalo, descobriram o quão frágil também era.

Vestia branco, disseram uns. Vestia bege, retrucaram outros. Ninguém sabia o que vestia, mas fosse o que fosse, agora tingira-se de rubro e fora porcamente retalhado na altura de seu ventre, levando tecido, pele, músculo, veias, deixada a perder a vida enquanto lhe restasse sangue no corpo.

Fora assassinato. Fora assalto. Fora destino. E num dos pés da moça lhe faltava um dedo, o menor, que não fora cortado, mas partido e arrancado a puxões pelo estado transfigurado do tecido epitelial e da localização desconexa das falanges restantes.

Quando o corpo desencostou do chão e foi ajeitado no saco de isolamento, algo caiu de dentro das vestes. Uma foto e uma carta grampeada a ela. Como detetive a investigar o misterioso e grotesco caso, me dei o direito de abri-la e lê-la, pedindo perdão àquela pobre alma, onde quer que estivesse agora a vagar, por violar seu documento pessoal. Mas o que li em seguida foi mais do que meu coração fraco pelo segundo infarte em menos de dois anos poderia suportar.

Não quis terminar a leitura, não quis comentá-la com mais ninguém. Olhei a foto. Uma bonita foto, uma paisagem paradisíaca ao fundo e um casal jovem em foco. Ela, linda, cabelos em cachos, olhos azul-mar, incríveis. Moldava-lhe a face corada o sorriso mais lindo que eu já vira em vida. A alegria da juventude lhe tomava da maneira mais sublime. Ele, sombrio, quase nefasto, abraçado a ela pela cintura, meio sorriso safado nos lábios, olhos e cabelos escuros. Não havia vida nele, não havia amor nele. NÃO HAVIA AMOR NELE.

Yamiel Delacour
Enviado por Yamiel Delacour em 04/07/2010
Reeditado em 04/07/2010
Código do texto: T2357604
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