Lovepoe Whitewood vai a biblioteca (Série Lovepoe Whitewood)
Para Luiz Poleto
Por Ramon Bacelar
Não era a primeira vez que Lovepoe Whitewood incomodava o soalho e inquietava a sala com seus passos ansiosos e vacilantes; nem a primeira vez que sua previsível rotina literária lhe martelava o cocuruto, mas não se lembrava de um dia em que sua antiga e fiel companheira de carvalho lhe tenha encarado com tamanha austeridade: pregos enferrujados, bases carcomidas, lascas afiadas; todos os componentes de sua estante, nos últimos meses, adquiriram um ar sinistro e ameaçador que involuntariamente intensificava a atmosfera de tediosa rotina semi-intelectualóide que impregnava o ar no antigo casarão e atormentava a não tão avançada massa cinzenta do nosso carismático protagonista.
Olhou para os lados, vasculhou por “dentro” e retornando o olhar de ameaçadora carência tediosa, detectou o problema: em suas prateleiras, enfileirados como um bando de lemingues aguardando sua hora, edições limitadas, numeradas, em capa dura, autografadas... A Múmia 17: A Procura da gaze e esparadrapo-Karis Borloff, Ofélia e os zumbis-Célio Celidôneo, O Retorno do Ghoul-Ralar Bacemon; Lobisomem vai a barbearia-Tony Ramos...
Olhou para sua estimada coleção de livros como se olhasse para um enorme, apetitoso e insubstancial bolo de casamento: o que lhes sobravam em beleza exterior, faltava em substância interior, e sua estante não agradecia...enfurecia.
Jogou-se no sofá fedorento e se pôs a meditar, mas quando o encadeamento lógico se viu ameaçado por uma preguiçosa e não tão substancial vaga de soneca... ZZZZZZZZZZZZZZZZZZ
SUBSTANCIAL (s-u-b-s-t-a-n-c-i-a-l) onze letras...onze letrinhas mágicas o arremessou em sua tediosa realidade, realidade esta que seria aniquilada por uma sábia decisão. Foi ao quarto e munido de um terno de velório e um chapéu coco que emprestava a sua ossuda e cadavérica face um ar de sutil e muito bem vindo anacronismo, desceu a escada, mas antes do pé esquerdo alcançar a área externa do pátio, com a mão na maçaneta... BLAAAMM... alcançou a calçada e, em um frenesi de ansiosa antecipação, foi em direção à sua mudança.
***
Com passos rápidos e ansiosos explorava a calçada com a energia e rapidez de um cangaceiro em crise de diarréia: ombros tocados, dedos pisados, cocôs amassados...Sebo São Miguel!!! Encarou a visão do paraíso...suspirou e das profundezas do tecido de estopa do seu bolso descobriu que não tinha um puto no bolso: a visão do inferno.
Com passos lentos de cabeça baixa meditou profundamente “e agora José?”; vasculhou a rasa cachola de conteúdo cinzento e dela retirou meros farrapos de insignificâncias que em nada auxiliaria na resolução do seu dilema, mas persistente que era, tentou, tentou e... das profundezas do pires que era o fundo do seu privilegiado cérebro de ameba, um farrapo de insignificância, com um empurrãozinho de sua fraca força de vontade, se materializou na forma de dez letrinhas:BIBLIOTECA, “IUUUHÚÚÚ é pra lá que eu vou!!”.
No caminho, com as retinas radiantes e os dentes sorridentes, pensou: “no cultivo de minha tardia maturidade intelectual, me fartarei de letras e parágrafos do mais fino feitio, degustarei símbolos e metáforas da mais pura safra, apreciarei uma pontuação adequada como quem aprecia um Hermitage La Chapelle, me perderei em sinuosos corredores de prosa labirintina, deleitarei em monólogos interiores cuja refinada propriedade de (bateu na cabeça para pegar no tombo)... e no caminho para uma existência mais substancial (falhou de novo)...e se minha estimada estante... SPLASSHHH... foi arrancado do fundo de sua meditação por uma rasa poça d’água na calçada da biblioteca que emprestou temporariamente a sua cadavérica face a aparência de um ídolo africano envernizado com óleo de peroba.
“ e se minha estimada estante de momento não pode ter a felicidade em se ver ocupada por substanciais substâncias, pelo menos se orgulhará do seu dono que agora ...” foi arrancado do seu estupor por um sonoro:
-Bom dia!!!! –Sorriu radiante a bibliotecária.
-Bom dia. Q-quero um livro...-Balbuciou constrangido, limpando os restos de água fedorenta de sua face.
-Huuummmm...sim?-Foi atacada por um enxame de mesmice e obviedade. Em sua mão A Múmia 18:A hora e a vez do esparadrapo, acenava para Whitewood com energético abandono.
-Quero um li...
-Claro! Me siga!-Ardeu a secretária após perceber a sintonia afetiva entre ele e a coisa em sua mão.
-Eu quero um...
-Pode deixar!!-Interrompeu a bibliotecária que continuou andando a passos rápidos.
Andou...andou.. andou...
***
Intimidado pelo cobertor penumbroso que era o interior da biblioteca, Lovepoe, com passos involuntariamente vacilantes e cautelosos, seguia a bibliotecária em curvas abruptas e corredores estreitos cujo contraditório senso de vastidão e opressão se fazia sentir em cada passo; olhou para os lados, para cima e se sentiu estranhamente confortado pelos livros e estantes, enquanto que o pó desprendido dos antigos tomos penetraram em suas narinas mais como um revigorante bálsamo que um prelúdio de inquietações alérgicas: se sentiu seguro no labirinto paradisíaco de letras e metáforas.
Andou...andou..., suou e quando o débil eco do seu chamado não se fez correspondido concluiu: estava só. Chamou novamente e ouviu sua voz se perder no caos arquitetônico; diminuiu os passos, examinando meticulosamente os títulos da estante, tocando, sentindo as delicadas curvaturas e a impressão em baixo relevo das lombadas de antigos tomos com forro de tecido e couro legítimo. Seguiu em linha reta, parcialmente bloqueado pela muralha de mofo e penumbra que se descortinava a passos mais rápidos que os seus e com uma ânsia pulsante que parecia emular as batidas do seu coração: a Ansiedade da Ansiedade. Mais uma curva e foi tomado por um cegante clarão de obscuridade que invadiu suas retinas com a astúcia de um desbravador ensandecido: de uma fresta de telha carcomida, um raio de luz solar se fez presente em forma de um intenso reflexo na placa de uma estante: LITERATURA FANTÁSTICA. Abriu os olhos e uma expressão de velada passividade desenhou-se em sua face o obrigando a descortinar um largo sorriso de alívio e satisfação que parecia abarcar toda a biblioteca: chegou ao seu destino.
Percorreu as estantes: olhou...procurou..não encontrou, continuou, insistiu, não desistiu, mas a busca não floriu: à sua frente modestas brochuras e edições de bolso com lombadas gastas e papel amarelado guardavam o mesmo conteúdo de suas luxuosas edições limitadas: títulos sonoros, capas inadequadas, pseudônimos esdrúxulos e textos terminalmente raquítecos. Foi tomado pela náusea e ennui que acompanham a pressão de uma rotina esmagadora; olhou para os livros com desmedido ódio e pensou “quem sou eu?”, levantou o pescoço e bradou: MAIS DO MESMO!!!!!; “quem?”, comandado por um impulso misterioso abaixou a cabeça num gesto de transtorno e arrependimento, suspirou... meditou e de uma seção inexplorada, vislumbrou autores desconhecidos seguidos por títulos estranhos em cujas palavras pareciam prenunciar promessas de satisfações substanciais e preenchimentos duradouros.
Abraçou um volume com a satisfação de quem supre uma carência emocional e como que comandado pela ansiedade dos movimentos de suas pálbebras e globos oculares abriu ao léu:inundado pela intensidade de contraste entre o fundo branco e o negro nanquim das fontes garrafais aparentemente escritas a mão, Lovepoe penetrava no universo de caracteres familiares e no hermetismo de parágrafos cuja significância e substancialidade lhe acenava timidamente, mas sua simplicidade de visão e pureza espírito absorveu alguns significados mas não abarcou a Totalidade: a Decepção da Decepção.
Com a cabeça baixa, como se possuído por um espírito obssessor, lutou, lutou...parágrafos e metáforas como icebergs instransponíveis feridos por ferramentas inadequadas, incapazes de abalar a rigidez dos significados, de derreter seu gelo interior. Olhou (“quem sou...?”), olhou... tentou..não vacilou... não abarcou: encarava o fundo branco da página como se olhasse o fundo de um lago cristalino que abalado por um seixo embriagado, perdia-se em crescentes ondulações aquosas e do fundo: letras e parágrafos ondulantes libertando-se das profundezas da brancura arenosa, desprendendo-se em movimentos ondulantes e sinuosos, invadindo suas retinas, indo em direção ao centro nervoso, turvando sua visão com a negritude oleosa do nanquim, entorpecendo e confundindo seus sentidos com sua obliqüidade e hermetismo; olhou para cima em busca de conforto e proteção, mas o baque surdo de sua testa de encontro ao chão não o fez perceber a intrusão de um odor ácido e ácrido em sua narinas, nem a urina quente que escorria na parte interna de suas coxas.
O toque frio do soalho em suas bochechas impulsionou seu pescoço a percorrer os limites da biblioteca em movimentos inconstantes e espasmódicos como um maquinário carente de lubrificação, e como uma substância líquida a procura de fortificação e solidez, agora sua visão tentava abarcar a miragem ondulante a sua frente: da alvura monótona das páginas semoventes, palavras, parágrafos e capítulos libertos da brancura tirana o intimidavam e oprimiam com movimentos e sinuosidades tão misteriosos e herméticos quanto os significados que carregavam; sentiu uma aspereza odorífica em suas narinas, um ruído áspero em seus ouvidos e um gosto amargo em sua língua: sentiu um F ferir sua garganta, um I atormentar sua visão enquanto um M de odor nauseabundo penetrava em sua narinas com a determinação de uma víbora no ato do ataque; blocos de palavras e capítulos integrais perfuravam seu centro nervoso com perguntas e pressões, clamando por interpretações que sua mente impotente regurgitava como um alimento indigesto; sua constituição esquelética pulsava e ofegava em contorções epilépticas. Arrastado pelo magnetismo das palavras para uma espiral de obscurantismo e esquecimento, seu pulmão se fechava num sufocante delírio de asfixia e movido por uma promessa de aniquilação absoluta, lentamente asfixiava-se pela erudição, pela arrogância da erudição cujo veneno-nanquim, como um polvo ensandecido, manchava sua pureza imaculada de um negrume absoluto, turvava sua visão e embotava seus sentidos(o Preenchimento do Preenchimento?). No inferno do delírio agonizante, em movimentos involuntários, suas mãos momentaneamente transmutadas em garras, como se para enegrecer em definitivo sua visão interior, pressionavam sua pálpebras em um aparente gesto de auto-enucleação, mas antes do badalar da Hora Final, sentiu um corpo estranho alertando seu tato e da periferia da visão vislumbrou um braço acima do seu peito e sentiu uma palma acariciando sua testa em movimentos circulares: A Consciência da Inconsciência.
Como um cadáver retornado a superfície, seus sentidos vacilantes tocaram a textura do real: despertou.
***
“Não fosse a bibliotecária...não, não pode ter...acho que...o livro talvez tenha...acho que não”, repousando em sua cama após a turbulência da tarde, tentava inutilmente organizar os fatos, mas o rotineiro embotamento do já deficiente encadeamento lógico agora ganhava nova força (estava embirutando?): recordava claramente do corpo lavado de urina e suor, dos paramédicos e das páginas escancaradas no soalho...páginas em branco...brancas... sem letras nem parágrafos (Capítulos?Onde?); TUUMM TUUMM, como um carro sem bateria esmurrou a caixola para pegar no tombo mas o que lhe retornou foi um dor intensa provocada pelo contato do seu punho em um cantante galo onde sua cabeça tinha ferido o soalho da biblioteca.
Como que para afastar pensamentos logicamente impuros de sua puríssima massa cinzenta decidiu se levantar e visitar sua fiel amiga. Encarou-a com novos olhos, e no lugar de ameaçadoras lascas, pontas e ferrugens, como um biotônico (o Fontoura é o bicho!), agora pregos e madeira trabalhavam em conjunto para a fortificação e consequente durabilidade de sua estante. Pegou um volume ao léu e despencou em sua antiga poltrona adornada com cocô de barata e carcomido por potentes e ácidos peidos (aquele que sai queimando as bordas): Lobisomem 47- Tony Ramos Strikes Back, virou a capa, pulou a introdução, saltou os capítulos e com um amplo sorriso de pura felicidade na face começou a ler o epílogo: esse Lovepoe entenderia.
FIM
Leiam e comentem:
A Vingança do Ghoul (Série Lovepoe Whitewood):
http://casadasalmas.blogspot.com/2010/05/vinganca-do-ghoul.html#comments
O Balanço:
http://www.arquivodobarreto.com/home/index.php?action=obra&id=103
Viagem ao Âmago:
http://www.estronho.com.br/contos-e-cronicas/279-contos-e-cronicas/4460-viagem-ao-amago.html
Ramon Bacelar é contista, crítico e ensaísta. Mantém um blog sobre cinema, quadrinhos, literatura e cultura underground (Maquinário da Noite: www.maquinariodanoite.blogspot.com) é colaborador do site Teia Cultural (www.teiacultural.com.br) e publica contos no Recanto das Letras http://www.recantodasletras.com.br/autores/ramonbacelar e em seu site pessoal, Miragens Ofuscantes: http://www.miragensofuscantes.blogspot.com