O último abraço

Ao chegar em casa depois de mais um extenuante dia de trabalho, Oliveira afrouxou a gravata e tirou o paletó. A passos arrastados e pesados foi ao banheiro, abriu a torneira e mirou seus olhos no espelho. Estava muito cansado, exausto. Cansado do trabalho, do trânsito, da rotina, das memórias perturbadoras de um passado que gostaria de esquecer. Da solidão. Fez uma concha com as mãos, encheu-a com água e, ao abaixar a cabeça para refrescar o rosto notou que havia algumas gotas secas de sangue na pia. Não se lembrava de ter sangrado no dia anterior. Morava sozinho. Ficou imaginando quanto tempo aquelas gotas de sangue estavam ali. Então, lembrou-se que na semana passada seu nariz havia sangrado enquanto dormia deixando uma grande mancha na fronha. Nos últimos dias ele vinha sofrendo de hemorragias nasais frequentes devido ao diabetes não tratado, doença esta que dificultava a coagulação de sangue e vinha se agravando. Da última vez, sangrou na mesma noite em que havia sonhado com sua pequena irmã.

Apesar dos anos, Oliveira ainda sentia saudades dela. Quando crianças costumavam brincar juntos e, às vezes, como a maioria dos irmãos mais velhos, caçoava e zombava dela, de pirraça mesmo, coisa de moleque, para logo depois lhe fazer um agrado ou dar-lhe um doce, arrependido. Ela era um amor de menina, andava sempre segurando uma de suas bonecas. Sua fragilidade despertava nele um sentimento de proteção. Moravam em uma pequena cidade do interior paulista. Sua família não era rica mas nada lhes faltavam, tinham um lar feliz.

Na época ele era muito jovem para compreender a violência que fora a morte de sua irmã, a violência com que tiraram a vida da pequenina e colocou em luto por muito tempo a sua família. Em uma trágica tarde de um dia chuvoso de inverno, ela havia desaparecido para semanas depois seu corpo ser encontrado à beira de um córrego da cidade vizinha, já em estado de decomposição. Seu corpo fora violado por algum maníaco com distúrbios mentais, verdadeira besta do inferno e capacho de satã.

Às vezes, ele ainda chorava por ela. Sentia um pouco de culpa também. Daria a sua vida para poder abraçá-la mais uma vez, só mais uma vez, mesmo que por alguns instantes. Gostaria de tê-la visto crescer, tê-la provocado quando aparecesse em casa pela primeira vez com um namoradinho, coisas de irmão mais velho. Acima de tudo, gostaria de tê-la protegido da cruel foice do destino que a levou tão cedo. Cedo demais.

Sem enxugar seu rosto, Oliveira foi para o quarto imerso na penumbra levemente iluminada pela luz do banheiro que vinha do corredor. A mancha de seu sangue ainda estava ali na fronha. Aninhou-se na cama e em posição fetal agarrou o travesseiro do mesmo modo como sua irmã costumava fazer com sua boneca quando ficava triste. A tristeza alojou-se em seu peito, sentiu vontade de chorar mas não conseguiu. A solidão era enorme, como se um vazio imenso crescesse ao seu redor invadindo pouco a pouco o seu interior. Estava exausto demais, cansado de tudo.

Oliveira adormeceu sem ter trocado de roupa, ali, agarrado ao travesseiro. Adormeceu e não sonhou. Ao acordar no meio da madrugada espantou-se com a imagem de uma menina que pairava a sua frente como uma alma penada. Sonolento, forçou a vista naquela semi-escuridão e reconheceu sua irmã. Seu vestido tinha manchas de sangue seco e sua pele estava pálida como um boneco de cera. Tinha as mesmas feições de como a lembrava, mas sua expressão era triste e sombria, como se gritasse toda a violência e maldade humanas que pesava sobre ela. Ela não dizia nada, estava ali parada com um olhar petrificado que o fazia agonizar silenciosamente. Até que, com os olhos marejados, ela disse:

- Estou com frio... muito frio.

Instintivamente Oliveira se levantou, lentamente foi em sua direção e com ternura a abraçou. Seu corpinho gelado estremeceu. Seu coração apertou e ele desejou intensamente que todo o calor do seu corpo fosse para o corpo dela; que todo o sangue que corria em suas veias corresse nas veia dela; que a sua vida acabasse para que ela voltasse a viver. Naquele instante, emanava de seu ser todo o amor do mundo, um amor puro e genuíno. Amor maior não poderia existir. Chorou como um menino que um dia foi.

Depois de abraçá-la, a primeira coisa que lhe passou pela cabeça foi pedir perdão por não tê-la protegido mas, entre soluços, as palavras simplesmente não saíram. Ela mudou o semblante como se o compreendesse, esboçou um pequeno sorriso e segurou a sua mão. Como se ela o conduzisse em meio a luz que se abria, juntos voltaram a antiga casa onde moravam há muitos anos atrás. Parecia um sonho. Reconheceu a sua casa, os móveis, tudo lhe era familiar ali. Estavam envoltos de uma luz serena e amorosa. Lá, enfim, sentiu uma paz inundando a sua alma como há muito não sentia.

No dia seguinte e nos próximos que se seguiram, o telefone de sua casa tocou, em vão, insistentemente.

Junho de 2010