A MARCA
“... ao adentrarmos nas cercanias de Sighisoara, deixamos para trás as linhas tortuosas da trilha incrustada aos pés dos Cárpatos e seguimos por uma reta através dos domínios mórbidos de uma vegetação incrivelmente fechada. Os troncos escuros das árvores se estendiam por muitos metros. As copas se mesclavam como num só corpo, formando assim uma espécie de telhado, o qual, dadas as circunstâncias, impediam, até mesmo, que a severa nevasca tornasse alva a irregularidade do solo.
Embora os açoites oriundos dos céus não conseguissem nos atingir de maneira direta, vez ou outra era possível perceber as investidas do vento por entre as frestas da carruagem. Era como se estivéssemos em um corredor estreito, pelo qual as correntes gélidas atravessavam e nos atingiam com imensa velocidade. A caixa de madeira balançava com os solavancos da natureza. O castelo, meu destino, ainda estava distante. Eu olhava para o condutor e me perguntava como ele conseguia resistir à tamanha adversidade.
O trote repetitivo dos cavalos. O rangido das rodas. O silvo irritante das lufadas recorrentes. Ruídos singulares que compunham a sinfonia de uma noite quase morta. Era natural supor que os seres noturnos permanecessem entocados, mesmo diante do irresistível chamado de seus hábitos. A busca pelo alimento não era recomendada diante de tamanho rigor, sorte daqueles que se precaveram e, agora, podiam usufruir da recompensa no calor de seus abrigos.
Um arrepio me acometeu de súbito. Não posso garantir que a manifestação não tivera origem na sensação térmica que baixava cada vez mais. Mas também não posso negar que fui invadida por um sentimento ruim, algo que me pareceu ter vindo com a última corrente serpenteante. Uma espécie de mal estar, que culminou com a percepção de um odor nauseante.
O cocheiro imprimiu mais velocidade ao ritmo dos cavalos. Talvez ele compartilhe da mesma impressão desagradável que dominou minha alma e se espalhou pelo meu corpo como uma pestilência. Afasto levemente as cortinas à minha frente. Vejo o pesado casaco de pele do condutor tremulando como uma flâmula. O homem, com o corpo arqueado, sacode incessantemente as rédeas, enquanto estala no ar o contorno esguio de um chicote.
Sinto a angústia me enlaçar em seu domínio. Tento falar com o guia, mas nada obtenho em reposta, além do silêncio tétrico. Deslizo a peça de cetim para o lado. Deixo meu destino a cargo da destreza do desconhecido. Clamo para que a incerteza não perturbe seu raciocínio, peço que a serenidade o abençoe, pois já duvido das minhas próprias convicções.
Por alguns instantes deixo o vazio preencher meus pensamentos. Fecho os olhos. Procuro fazer com que a escuridão e o calor proporcionados pela manta sobre meu rosto funcionem como um transporte para fora daquela situação. Viajo em devaneios. Não sei por quanto tempo permaneci alheia à realidade.
Quando despertei da minha fuga interior, percebi que a velocidade da carruagem diminuíra consideravelmente. Agradeci aos céus pela salvação. De certo a habilidade do condutor conseguira nos livrar da aura maligna que circundava pelo interior da floresta.
Com o ânimo renovado, tentei, mais uma vez, estabelecer contato com o guia do vagão. Porém, ao esfregar o vidro turvo da pequena janela com minha mão enluvada, fui tomada pelo mais absoluto desespero. O assento de condução estava vazio. O cocheiro havia desaparecido. A carruagem seguia desgovernada. Para minha sorte, ou assim imagino, os animais não pareciam muito estimulados a seguir viagem, então, lentamente, pararam.
Permaneço no interior da cabine. Recuso-me a perscrutar o desconhecido. Enquanto escrevo essas linhas, olho para o lado de fora e nada vejo além da mais completa escuridão, se bem que escuridão não seria a palavra apropriada para descrever o cenário diante de mim. Acredito que não há um vocábulo em nosso idioma que seja capaz de representar com perfeição a mescla de trevas e melancolia a qual me refiro.
Os cavalos estão agitados, parecem amedrontados. Ainda assim, eles se recusam a prosseguir. Tenho a impressão de que suas patas não obedecem às instruções de fuga ordenadas pelo instinto de sobrevivência, alarme próprio dos animais em perigo.
Não tenho alternativas, preciso entender o que está acontecendo e aqui dentro não obterei respostas. Estico o braço a fim de alcançar a lanterna presa à lateral da carruagem, a única que ainda resiste acesa. O tremeluzir da chama brinca com minha percepção. Posso jurar ter visto, ainda que por alguns instantes, um brilho diferente em meio ao negrume externo. Antes de sair, faço uma última oração, peço proteção aos céus para que eu possa, mais uma vez, contemplar a luz de um novo dia...”
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Maldição! Não consigo acreditar em tudo que está acontecendo. Como fui tolo! Por que não insisti mais? Eu jamais poderia tê-la deixado partir sozinha rumo ao desconhecido, por maior que fosse essa a sua teimosia. O que recebo agora? Apenas a mala com algumas peças de roupa e esse diário. Fora tudo o que restou de tão malfadada jornada. A carruagem vazia. Nenhum sinal do condutor, tampouco de minha amada. Nem mesmo os cavalos foram vistos! Eu deveria ter desconfiado que a leitura de um testamento num lugar tão remoto seria passível de complicações. Mal sabíamos da existência de tal parente distante...
As terras tristes, além Cárpatos, sempre foram tratadas como malditas. Nada de bom pode surgir num lugar assim. Até mesmo os nativos evitam transitar pelos arredores de Sighisoara ao cair da noite, sobretudo no inverno. Mas ela fez questão de não dar ouvidos aos rumores e às crendices. Como eu lamento por isso! Ela me proibiu de acompanhá-la, pois assim era a exigência do recém falecido. Minha dama não se incomodou de partir só, de seguir altiva pelas trilhas indicadas no mapa.
Agora estou só. Tenho como companhia apenas as memórias dessas palavras estampadas na brancura do papel. Na capa do pequeno caderno, as marcas ressequidas de uma gota de sangue. Ainda sinto o cheiro do seu perfume no ar. Vejo seu rosto em cada recanto. Sinto sua presença nos bordados delicados do dossel. Não! Não posso viver assim! Preciso descobrir o que aconteceu àquela que escolhi para viver ao meu lado.
Seguirei seu rastro através de cada ponto daquela terra amaldiçoada. Desvendarei os segredos de cada sombra. Tenho esperança de encontrá-la viva e sã, e se for da vontade divina, assim será.
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Faz três dias desde que deixei a segurança e a hospitalidade de Brasov. A neve despenca impiedosamente, mas sei que as intempéries do tempo formam a menor de minhas preocupações. O guia que contratei só me levará até o arco inferior dos Cárpatos, ninguém mais ousa atravessar aquela área após os acontecimentos recentes. Dali em diante, estarei por minha conta e risco.
A floresta negra é mais densa do que eu poderia supor, embora o relato do diário não deixasse dúvidas quanto à composição cerrada da vegetação. Vejo a luminosidade fraca da lanterna do guia se perder em meio à força da nevasca. Preciso vencer os domínios da mata, pois meu destino se encontra no fim da trilha à minha frente. O cavalo avança de modo vacilante. Mesmo com a chama do candeeiro, a visibilidade é quase nula. Às minhas costas, pouco vejo devido à neve, diante de mim, entendo uma nova concepção de trevas.
Quanto mais avanço pelo corredor sombrio, mais distante do meu objetivo parece que fico. Já não consigo perceber a área aberta atrás de mim. A sensação que tenho é a de estar num mundo diferente, alheio a qualquer vestígio de civilização, longe, até mesmo, da fúria incontida da natureza.
Ouço um sussurrar no ar. Sinto um aroma putrefato me invadir as narinas. Tenho a impressão de que ambos são sintomas da alucinação que está prestes a me agarrar. Um nevoeiro inexplicável se espalha em todas as direções. Desço da montaria, pois o animal se recusa a seguir caminho, de qualquer forma.
O cavalo se prostra sobre as patas como se algo o ameaçasse. Aperto o cano do rifle, apontando-o em todas as direções. Juro, pelo túmulo do meu pai, ter visto uma silhueta por entre a névoa. Não hesito em apertar o gatilho. Sempre fui um bom atirador, jamais poderia ter errado naquela distância ínfima. Porém, para minha completa desolação, o homem, ou o que quer que eu tenha visto, simplesmente desapareceu, sem ter sido atingido.
O nevoeiro se torna uma barreira intransponível. Ouço o relinchar do cavalo, mas não consigo localizá-lo. O animal parece sofrer em mórbida agonia. Os ruídos de sua dor ecoam em todas as direções. Meu Deus! Teria minha amada passado por semelhante provação? Se o responsável pelo seu desaparecimento estivesse ali, eu o mandaria para as profundezas do inferno com minhas próprias mãos!
O silêncio reina por alguns instantes. Decido caminhar, mesmo sem saber para onde ir. A voz rouca no ar e o cheiro insuportável não só retornam, como parecem estar mais intensos. Entretanto, o nevoeiro lentamente se dilui, e uma claridade rubra toma seu lugar. Assisto, com horror, a fonte de tão perturbadora luminosidade: as órbitas incandescentes na face de uma ameaçadora criatura, um incomparável cão negro.
Ele parecia sorrir de forma diabólica e cínica. Esboçava um sorriso enfeitado por fileiras alvas e aguçadas, sobretudo as presas, destacadas pelos longos caninos. Ergui o rifle, tendo a criatura como alvo. Mas desta vez não haveria erro, mirei entre seus olhos.
Disparei com toda a raiva contida em meu coração. Mas, ao contrário do que eu imaginava, o impacto não atingiu o ser. Na verdade, o golpe fora sentido por mim, mas não com a ardência própria do chumbo, e sim com uma dor muita mais profunda.
Não sei explicar como aconteceu, mas não havia mais cão algum diante de mim. Era um homem. Sim, um homem. Com um olhar que transbordava ódio em vermelho vivo. Ele havia se movido como o vento, e, sem que eu pudesse ensaiar qualquer reação, já estava com os dentes cravados em meu pescoço.
Senti a consciência me abandonar... a dor absurda cedeu lugar a um torpor indescritível...a vida escorria do meu corpo com a mesma desenvoltura com que meu sangue era roubado...
Não sei onde juntei forças para resistir. Talvez na vontade de rever minha escolhida, pois a imagem de seu rosto era um elixir revigorante para meu espírito em pedaços. Com as mãos limpas, empurrei o demônio para longe de mim e corri.
Corri a esmo. Fugi pela vida. Implorei por uma fagulha de energia. Minha respiração oscilava, meu sangue jorrava como as águas límpidas de uma nascente. A escuridão à minha volta parecia se apoderar de tudo, então, mergulhei em sua vontade...
Abri os olhos. Ouvi o chamado de um anjo. Talvez a morte já tivesse me alcançado e, naquele momento, eu estivesse adentrando pelos portais do paraíso. Meu nome. Sem dúvida era meu nome sendo proferido por uma voz doce e conhecida. Minha amada vinha me buscar, com certeza era ela.
Seus cabelos esvoaçavam ao vento. Seus olhos exibiam fulgor. Seu sorriso, embora diferente da lembrança em minha mente, cintilava em vivacidade. Ela me chamava, me oferecia descanso. Estiquei o braço e senti o toque frio de sua mão. Não pude conter as lágrimas quando o gelo dos seus lábios me alcançou. Se eu ainda não estivesse morto, entendi que já estava preparado para tal, pois não haveria conforto maior para minha alma.
Uma voz arrastada se fez ouvir, identifiquei-a no mesmo instante. O odor da morte estava no ar. O ser maldito proferia uma ordem: “Acabe logo com isso”. Senti o beijo de minha amada pela última vez. Um beijo longo e decidido, o qual selaria, para sempre, a minha existência, deixando em meu pescoço uma inconfundível e eterna marca.
* Sighisoara e Brasov são distritos romenos da região da Transilvânia.
* Cárpatos - cadeia de montanhas da Europa Central