A soleira da porta

O sol vermelho se pôs atrás da casa e lançou sombras sobre as paredes de madeira: a árvore gigantesca no jardim era como um monolito de uma era onde todas as coisas são incomensuráveis e famintas, seus braços esqueléticos lembraram-me dos braços das sombras vivas, a escapar da boca da caverna.

Meus dentes doíam. Minha pele estava úmida, suja, e minha visão falhava; se pudesse fazer meus pés percorrerem a curta distância do gramado até a soleira da porta... Tudo dependia de meus pés.

Meu coração batia como um tambor. Era ensurdecedor e machucava meus tímpanos. E aquele terrível fardo se debatia nos meus braços, como algo maldito, repugnante.

Obriguei minhas pernas a trabalhar.

“Andem, mexam-se, andem!”

Minha boca sangrava. Parecia colada. Apalpei meu rosto e senti o sangue em minhas veias congelar.

“O que fizeram comigo!?”

Com os dedos inchados, pude sentir os pontos da costura ao redor dos meus lábios.

Haviam usado um fino fio de prata de lei.

Senti vontade de gritar, mas tudo que fiz foi prosseguir em minha tarefa.

A noite estava silenciosa, como meses atrás.

Tudo parecia igual. Estranhamente igual.

Aquela era a minha casa. Eu tinha o direito de entrar nela. Era o meu lar.

No que dependesse de mim, nada iria me impedir.

A cortina na janela do primeiro andar se mexeu.

“ Ele está em casa!”

Sim, ele estava. Eu ouvia seu coração bater. Era um som maravilhoso. Ouvia o som do seu sangue enchendo os órgãos internos. Parecia uma sinfonia.

Por um instante, meus pés se embaraçaram. Caí de joelhos. O embrulho me escapou, rolou pela grama e se desenrolou...

- Não! – eu o ouvi gritar. Ele saiu correndo de dentro de casa. – Como você pôde?

Eu estava no chão, grunhindo e me sufocando. A maldita prata.

Ouvi o choro. As notas agudas, desesperadas, saídas da boca do meu filhinho.

- Oh, meu Deus, como você pôde? – ele estava chorando, suas lágrimas escorriam pelo rosto em torrentes. – Sua maldita!

Eu não iria desistir. Levantei-me do chão. Agarrei meu pequenino, meu bebezinho. Ficara morto por tão pouco tempo que parecia ainda o mesmo.

Ele precisava ir para o seu bercinho.

Cambaleei até a casa. O homem que eu havia amado tanto agora corria de mim. Não fazia mal, todas as coisas morrem um dia, até o amor verdadeiro. Mais cedo ou mais tarde. Sempre morrem.

Faltava tão pouco. As corujas piavam na floresta. À essa hora, os morcegos estariam saindo da caverna.

Lembrei-me do cheiro da terra, misturado ao cheiro do incenso impregnado nas minhas roupas.

Um tiro de espingarda soou não muito longe.

“Não, não eles, por favor!”

Afinal, não daria tempo. Os cães de caça latiam excitados, subindo o morro, os caçadores vinham logo atrás.

O morto-vivo nos meus braços se remexia. Não parecia algo maldito. Ele era!

Subi os degraus da varanda. Ele estava lá, o meu amor, olhando para mim, petrificado de horror.

O primeiro tiro me atingiu com a força de uma bala de canhão, no lado do corpo. A dor foi quase insuportável. As lágrimas escorreram pelo meu rosto.

O segundo tiro me derrubou.

A porta estava tão próxima. Não acreditei que fosse falhar.

Meus tornozelos foram agarrados por presas dilacerantes.

Fui arrastada de volta ao gramado. Embora lutasse como não acreditava ser capaz, quando me arrancaram a criança das mãos, soube que tudo estava perdido.

- É um demônio! – disse um dos caçadores. – Como os outros! Vamos ter que matá-lo!

“Não!”

Iam cometer um erro. Ele não iria morrer outra vez. Era somente uma casca.

Tentei apontar para a casa. Sentia tanta dor, que não era capaz de mover um músculo.

Desenhado na soleira, sob o capacho, havia um símbolo antigo que eu deixara ali na primeira vez em que consegui sair do túmulo. Era feito com o meu sangue, o sangue dos amaldiçoados. O sinal que traria o fim ao meu filho demoníaco.

Eu só tinha que colocá-lo no berço, dentro de casa. O cheiro do sangue na entrada de casa atrairia um Ceifeiro Branco e tudo ficaria bem, outra vez. Eu poderia ficar em paz, sob a terra, mergulhada no Limbo. Como devia ser.

Mas, eu havia fracassado. Tudo havia fugido por entre os meus dedos renascidos e inúteis.

Senti o orifício do cano de uma espingarda de caça encostado no alto da minha cabeça.

Tão pouco para voltar para casa.

O som da detonação foi igual ao de um trovão. Alto e carregado de fúria, prenunciando uma terrível tempestade.

***

Eu via o interior escuro da caverna. Sabia que estava morta, de novo. Mãos frias me acariciaram a mandíbula dolorida.

- Meu anjo caído, conte-me como é o Paraíso. Tenho muita vontade de saber.

Um rosto muito pálido emergiu da escuridão. Ele estava tão perto. Os olhos eram tão brilhantes, tão límpidos... era lindo.

Meu Deus, o meu amado! Que monstro ele havia se tornado?

Andhromeda
Enviado por Andhromeda em 18/06/2010
Código do texto: T2326622
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