A Balança (Parte 2-Final)
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Desperto com a frieza do chão invadindo meus sentidos, incomodando meus lábios; ruídos de carros distantes e vida corrida aguçam minha memória e o silêncio contínuo seguido de uma sutil inclinação do pescoço me revelam a imagem de um longo espaço vazio flanqueado por bancos de madeira: estou na Casa do Senhor. Tolhido de qualquer força física, como uma minhoca fugindo do anzol, rastejo ao banco da frente à procura de um obeso e generoso conforto espiritual. Me ajoelho e com as mãos empalmadas encaro A Face na cruz, a cruz em forma de ...T!! Dois zeros piscando !!! ELAAAA!!!!!! Com impulso adrenalínico fujo da Morada Herege e novamente desembesto avenida acima, e em meio a olhares estupefatos e cochicos no pé da orelha (mamãe, o que é iiiiisso?) alcanço a calçada do meu prédio; paro, suspiro, ofego,...turva... BUUUUURRRP...
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Desperto com a sensação de pele tocando pele, levanto o pescoço e a visão de uma gigantesca aranha com garras dominando minha face e sentidos, por um instante petrifica meus globos oculares; pisco os olhos e um impulso sensorial me aremessa em minha fria realidade: a bruxa caquética, acariciando minha mão num gesto de compaixão e solidariedade, me olha nos olhos e percebo que o que eu tomava por uma criatura prestes a me atacar nada mais era que suas rugas e pés de galinha embaçados pelo meu magro (que saudade!) sentido de visão. Retorno o olhar e a bruxa... era a bruxa (nota do editor: saudades da Preta Gil heeeiin?) e o que antes era um carnudo e delicioso lábio agora não passava de um imenso abismo exalante de uma substância vulgarmente conhecida como bafo de bode. Na medida que minha (velha) nova realidade gradualmente me martelava a cabeça como pesados e descartados sacos de gordura de lipo-aspiração, meus resquícios de vontade e auto-estima me davam o impulso final: me levanto e em retribuição ao meu magro senso de gratidão ela me retorna, num gesto de despedida, com sua costumeira voz de vinil arranhado.
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VÊ SE ANDA PUDIM DE BANHA!!
MAIS RÁPIDO CRIATURA SEBOSA, GORDUROSO FODIDO!!!!!
Subo pateticamente a escada em direção ao meu quarto enquanto vozes pressionam e atormentam meu espírito: o meu magro (novo) antigo eu, agora substituído pelo obeso (antigo) novo (e fodido) eu, com voz cavernosa e palavras afiadas, cava minha futura, larga e obesa sepultura. Entro no meu haré... agora transformado ao seu estado original: sofás furados, paredes cascudas, carpetes mofados e o perfume de bosta humana que exala do vaso atiça meu intestino...mas eu seguuuro. Passado o choque transicional e perfeitamente acomodado a minha (velha) nova realidade, me dirigo ao CRAAASSHHHHH, levanto a cabeça e como um periscópio embriagado vasculho o ex-harém-e-agora-lixão à procura da origem do baru CRASSSSSHHHHH, minha cabeça lateja mas eu procuro, vasculho ..., vidraças, mesas, cerâmicas e espelhos inteiros simbolizam a resposta que não me satisfaz e transmutam em vaporosos mistérios e obesas interrogações: tudo inteiro, inteiro, inteir...
-AAAAAAHHHHHHHHHH!!!!!!!!!!!!
Minha cabeça se inflama, arde e explode em convolutas pulsações internas, sinto um líquido quente escorrendo do nariz, passo os dedos e percebo que não passa de uma sensação; cabeça gira, visão turva, continuo procurando, vasculh...
-AAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHH!!!
CRASSSSHHHHHH, CRAAAASSHHHHHHH no inferno da batalha pela sobrevivência e reconquista da realidade absoluta giro involuntariamente o pescoço e me deparo com O Adversário: de cabeça erguida vou de encontro a fera e me estilhaço junto com o espelho, me cubro de vermelho REAL e reconquisto a realidade em sua totalidade: o barulho vinha de dentro: minha mente se estilhaça e meu cérebro se transforma num denso, nojento e gorduroso mingau. No inferno da visão alucinada olho ao redor e enxergo ELA... ELASSSS! Estou cercado de balanças que me intimidam com seus ameaçadores zeros piscantes, me subjugam com olhos enfurecidos e a falsidade de um pisca-pisca de natal.
PISCINA DE SEBO!! PÃO DE BANHA!!!
BANHUDO DOS INFERNOS!!!
SUPOSITÓRIO DE BALEIA!!!!!!!!
As vozes me atormentam, me perseguem, olho as balanças e agora elas (ou eu?) me direcionam gestos obscenos com línguas de metal e bocas de borracha, me defendo fechando os olhos mas não protego os ouvidos: se são as balanças, minha consciência estilhaçada , meu antigo (novo) eu ou meu novo (antigo) e fodidíssimo eu me recriminando pela minha(antiga) nova existência... estou confuso, o mundo roda, o chão cai, a mente lateja, a consciência... abro os olhos:
80, 95, 110, 130, 145 KG AAAAAHHHHH, avanço num inútil ataque externo a ameaça interna e bato com a cabeça na janela que me arremessa em direção ao chão: caio sentado. Imóvel e pensativo, aos poucos a respiração retorna ao seu ofegante normal. Descanso...descanso... medito...medito... e da periferia da minha mente um impulso me obriga involuntariamente abrir uma sorriso de felicidade: felicidade REAL. Me levanto e firme em meu objetivo em dar fim a minha mórbida realidade, alcanço a calçada.
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Retorno ao quarto com o mesmo sorriso e em minhas mãos um objeto de metal aguarda impaciente o seu uso.
Num suspiro de coragem me apronto, estilhaço todos os espelhos e em um gesto de bravura livro o objeto do papel pardo, ajusto-o, e num último suspiro de infelicidade (prenúncio de felicidades duradouras), coloco os pés na desgastada borracha de uma enferrujada e desregulada balança analógica que me mostra a mentira verdadeira e me arremessa a minha nova (nova) e eternamente feliz realidade: a vida é bela!!!!! BUUUURRRPPPP!!!!!
Nota do editor aos leitores: Tsss, tsss, tsss esse autor é caso perdido... tem que tratar do obeso cérebro num Spa.
FIM
Leiam e comentem:
O Balanço:
http://www.arquivodobarreto.com/home/index.php?action=obra&id=103
A Vingança do Ghoul:
http://casadasalmas.blogspot.com/2010/05/vinganca-do-ghoul.html#comments
Viagem ao Âmago:
http://www.estronho.com.br/contos-e-cronicas/279-contos-e-cronicas/4460-viagem-ao-amago.html
Ramon Bacelar é contista, crítico e ensaísta. Mantém um blog sobre cinema, quadrinhos, literatura e cultura underground (Maquinário da Noite: www.maquinariodanoite.blogspot.com) é colaborador do site Teia Cultural (www.teiacultural.com.br) e publica contos no Recanto das Letras http://www.recantodasletras.com.br/autores/ramonbacelar e em seu site pessoal, Miragens Ofuscantes: http://www.miragensofuscantes.blogspot.com