CRÔNICAS DA NOITE
Fadiga. Cansaço em cada músculo e articulação. Depois de mais uma jornada dupla de trabalho árduo, ela estava esgotada. Física e mentalmente. Embora seu corpo suplicasse por descanso, era em sua mente que residiam as maiores preocupações. O digital em sue pulso acusava quase onze horas da noite. Ela ansiava pela presença do coletivo. Desejava estar em casa o mais breve possível, ao lado dos filhos pequenos, os quais criava sozinha, com a ajuda dos céus e do suor em seu rosto.
A noite fechada e fria tratava de afugentar os transeuntes. No ponto de ônibus, somente ela a esperar. Um par de círculos amarelados quebrou a monotonia da escuridão. Sua fisionomia não se alterou, pois sabia que a luz dos faróis ao longe não correspondia às suas expectativas.
O veículo rasgou o asfalto em alta velocidade. No fim da via, executou uma manobra brusca e improvável. Marcas negras foram deixadas no chão. O chiado estridente perturbou a tranqüilidade da noite, fazendo com que a mulher levasse as mãos aos ouvidos num ato reflexo.
O automóvel retornava lentamente pela contramão, e o ritmo cardíaco da assustada mãe aumentava com sua aproximação. O farol alto em seu rosto a impedia de enxergar qualquer coisa, por conta disso não percebeu os contornos dos jovens caminhando em sua direção. Nas mãos traziam bastões e barras de ferro, e na cabeça péssimas intenções.
Ela não teve tempo para qualquer reação. Um violento golpe a acertou nas costelas antes mesmo da primeira ofensa. Caída no chão, recebia em seu corpo a fúria insana e gratuita. O rapaz que ficara no volante buzinava em sinal de pressa. Os insultos ainda ecoavam no ar quando o grito dos pneus mais uma vez foi ouvido.
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Ele se encolhia sob a proteção de uma marquise. Chumaços de jornal ocupavam espaço em suas axilas, como forma de manter o calor no corpo. Outras folhas, essas abertas, lhe serviam de cobertor, um revestimento de notícias antigas, enquanto caixas dobradas de papelão faziam as vezes de colchão.
Ele já teve dignidade. Em tempos que lhe parecem cada vez mais distantes, costumava ocupar uma posição decente na sociedade. Hoje, por conta dos infortúnios da vida, só consegue atrair olhares de pena, medo e desprezo, isso quando simplesmente não é ignorado, como se não passasse de uma mancha a macular a simetria das paredes cinzentas da cidade.
Seu estômago doía, por falta de alimento. Seus ossos doíam, pela falta de aquecimento. Seu coração doía, pela falta de perspectiva. O som da freada repentina o fez despertar do transe causado pelas desilusões. Ele esboçou um sorriso enquanto esfregava as mãos, talvez um prato de sopa trazido por uma alma caridosa pudesse aplacar suas frustrações. Mas, o que ele recebeu não poderia servir de alimento. O líquido despejado sobre seu corpo não domaria a selvageria da fome. Um palito em chamas girou no ar tocando nos trapos, que agora encharcados, lhe revestiam. Labaredas acenderam a noite. Combustível e pele ardiam em hedionda comunhão.
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Seu olhar mirava o vazio, a desolação de uma vida sem sentido. Talvez as árvores tristes do parque silencioso e vazio, no final daquela ladeira, exibissem mais ânimo do que ele jamais pudesse sonhar. Seus braços enlaçavam o próprio corpo, o gelo da noite era impiedoso, até mesmo para alguém tão amargurado. Suas pernas não compartilhavam do mesmo incômodo. Elas não percebiam o rigor do inverno, muito menos o toque cálido do verão. Na verdade, elas eram incapazes de sentir a mais tenra brisa.
Ele apertava com rancor a borracha das rodas. Lutava para evitar que as lágrimas descessem pela superfície do rosto marcado. Ele praguejava contra os desejos doentios do destino. Lamentava o próprio infortúnio.
O ruído do motor assaltou-lhe os ouvidos. Ele girou a cabeça, seus olhos puderam contemplar a ira insana estampada na fisionomia de uma pessoa tão jovem. As mãos do rapaz tocaram suas costas. A força do movimento impulsionou a cadeira através do declive. Ele tentava se agarrar da melhor maneira possível, enquanto descia em alta velocidade rumo ao inevitável.
A cadeira se chocou contra a saliência do meio-fio arremessando-o contra o gramado. Com a dor lhe dominando, ele olhou para trás e viu o grupo de jovens descendo a rua em sua direção. Ele se arrastava como podia pelo terreno. Mais do que nunca, maldizia a própria vida. Amaldiçoava a tão infeliz sina que lhe acompanhava.
Ele jurou para si mesmo. Implorou para que nada disso acontecesse de novo. Pediu aos céus piedade para aqueles garotos, pois eles eram vítimas das circunstâncias e não sabiam o que estavam fazendo.
Um pouco mais de uma hora havia se passado desde o primeiro ataque do bando. Desde o primeiro estrago da noite. Mas o desesperado homem não precisava e nem queria saber de horários. Ele não fazia a menor questão de ser torturado por relógios. Sua vida já era por demais regrada. O formigamento sempre lhe avisava do que era mais importante.
Paus e pedras açoitavam seu corpo. Ele implorava para que o deixassem em paz, mas os garotos respondiam aos apelos com palavras contra seu estado físico, contra a sua honra. O homem já não conseguia conter as lágrimas, a dor era insuportável. Mas não a que era proporcionada pelos insensatos rebeldes sem causa. O mal que lhe afligia vinha de dentro e não poderia ser contido. Ele só queria ficar em paz, lamentar a própria danação sem causar problemas a ninguém. Aquelas crianças não deveriam aparecer. Não precisavam estar ali.
O conhecido torpor dominou suas pernas. Os movimentos eram rápidos e involuntários. Ele rezava todas as noites para que elas permanecessem imóveis para sempre, pois nada de bom surgia quando elas ressuscitavam.
Os garotos abriram um círculo ao seu redor. As contrações no corpo do maldito não correspondiam a nada do que sempre viam nas ações maléficas e usuais que executavam. Eles tentaram correr, mas os revigorados membros do agredido se movimentavam com muito mais desenvoltura. Barras de ferros, cabos de enxada, pedras, nada disso era tão nocivo quanto a ponta dos dedos do homem, o qual, naquele momento, perturbava a noite com uma voz mais aterradora do que qualquer ruído de motor ou pneu.
O corpo de cada um dos agressores queimava, mas não com a dor palpável causada pelas chamas de uma fogueira. O que eles sentiam só era compreendido por aqueles que experimentavam o horror em essência crua e verdadeira. Algo que não dava brechas para arrependimentos, que não flertava com o perdão. Eles descobriram a pior forma de morrer: ser devorado vivo por uma anomalia da natureza, talvez uma aberração como eles próprios, mas que, ao menos, obedecia a um propósito simples, se alimentar de modo insaciável a cada ciclo.