A Miragem Inconcebível
A MIRAGEM INCONCEBÍVEL
Por Ramon Bacelar
Engolindo em seco por horas a fio, não se deu conta da necessidade do esquecimento absoluto e nem percebeu que acabara de penetrar na Região das Miragens Inconcebíveis. O vento quente, em conjunção com o círculo fervente acima de sua cabeça, cuja aparente tarefa era de castigar sua garganta e minar sua energia vital, trabalhava secretamente na abolição dos sulcos de areia formados pelo lento arrastar de suas pernas nas dunas arenosas: era como se a natureza almejasse a aniquilação absoluta, o extermínio supremo de qualquer vestígio humano em seus aclives arenosos.
Sentiu os lábios como uma folha seca; a língua vacilante como um trapo de saco de estopa, lutava com movimentos e obrigava em vão que palavras de socorro invadissem a imensidão amarelada e ocupassem inutilmente os vácuos solitários.
Do seu ângulo de visão, o conforto de uma morada ou de um lago límpido eram apenas uma ilusão vaporosa, menos real que a imagem de uma alegria duradoura e tão substancial como uma miragem permanente. Não lhe restava nada mais senão contorcer, rastejar e almejar por algo que não conseguia visualizar nem definir, mas por um secreto impulso que não conseguia explicar...”almejava”.
Uma substãncia sólida arranhou o seu rosto e por um momento lhe veio a mente uma lembrança: a lembrança da esperança e uma imagem: a imagem de um cantil. Impulsivamente girou o corpo, agarrou o objeto sólido e num gesto desesperado levou-o a boca, mas a crespura e aspereza com que a substância desbravou sua garganta o fez concluir que tinha engolido areia e o que tinha tomado por um cantil não passava de areia petrificada que se despedaçou em sua mão junto com a sua esperança: abaixou a cabeça...”desmaiou”.
Quando despertou...achou que despertou, e por um momento sonhou: não se lembrou do que, mas identificou as sensações causadas pelo devaneio onírico, sensações que lhe deram por um curto espaço de tempo paz de espírito, enquanto outras faziam fila aguardando ansiosamente a chegada e lá atrás, austera e imponente a Sensação Suprema aguardava, ansiosa para intimidá-lo, dominá-lo, e inundá-lo de felicidade e vida líquida. Quando chegou, afogou-o com sua realidade úmida e refrescante, passava a mão na garganta e sentia seu pomo de adão se mover num frenesi de satisfação e saciação, queria congelar o tempo, transmutá-lo numa eternidade ou em uma úmida miragem perpétua, e de tanto que desejou, insistiu e pressionou, transformou involuntariamente a realidade do sonho no Pesadelo da Realidade: levantou a cabeça... “despertou”.
A aspereza em sua garganta o fez lembrar o arranho de cordas gastas de um violino sendo tocadas por um vento quente, que agora parecia dominar seu espírito e penetrar em seus poros como fios de aço em brasa; açoitava-o com uma fúria invisível e quentura impiedosa, transformando-o lentamente numa carcaça de humanidade, num monge arrependido e atormentado pela noção de que fora abandonado pelo Criador.
Quis gritar mas não conseguiu; tinha consciência da inutilidade do ato e a certeza que tamanha estupidez só serviria para prolongar o sofrimento e ressecar ainda mais suas cordas vocais, queria poupá-las para o Momento: o grito final.
Pensou em parar, mas concluiu que sem os movimentos, nem o atrito da areia e vento quente, sua morte seria mais tormentosa: iria acelerar para se distanciar da vida e chegar mais rápido a morada negra. Rastejou, rastejou e quando foi minado de qualquer energia resolveu dar um impulso ao seu desejo de morte rápida. Girou o pescoço em brasa e visualizou com as retinas em fogo um cantil transbordante de vida líquida semi-petrificada, recordou de imediato sua experiência anterior e soube que”não era”, tinha consciência da infinita capacidade ilusória desta absurda região dantesca e, sabendo que a saída não era saída, queria saciar a vida com a morte, ia beber a areia, degustá-la como se degusta um vinho de boa safra: ia matar a sede de morte e abandono da vida com a morte... e morreria feliz e saciado. Como um enófilo ensandecido levou a areia a boca e bebeu, bebeu, bebeu... e percebeu que o que descia em sua garganta tinha leveza, textura sedosa e... “sensação líquida”, percebeu, enquanto a vida lhe retornava, que fora salvo (ou enganado?) pela Miragem Inconcebível... enganadoramente inconcebível.
FIM
Leiam e comentem:
A Vingança do Ghoul:
http://casadasalmas.blogspot.com/2010/05/vinganca-do-ghoul.html#comments
Viagem ao Âmago:
http://www.estronho.com.br/contos-e-cronicas/279-contos-e-cronicas/4460-viagem-ao-amago.html
Ramon Bacelar é contista, crítico e ensaísta. Mantém um blog sobre cinema, quadrinhos, literatura e cultura underground (Maquinário da Noite: www.maquinariodanoite.blogspot.com) é colaborador do site Teia Cultural (www.teiacultural.com.br) e publica contos no Recanto das Letras http://www.recantodasletras.com.br/autores/ramonbacelar e em seu site pessoal, Miragens Ofuscantes: http://www.miragensofuscantes.blogspot.com