Malaquias (23)

Malaquias estava, aos poucos e uma dentada de cada vez, a ser devorado mas, também aos poucos, a deixar-se levar pelo entusiasmo do combate e a parar de se importar com cada um dos pedacinhos de si que o Palhaço lhe levava, a maior parte das vezes que ele mordia só apanhava banha, nada que lhe fizesse muita falta, pior eram os rasgões na farpela, no seu fatinho de bombazina azul-marinho, paciência, fora um erro trazê-lo para a Cidade Baixa, agora era tarde para pensar nisso, tinha com que se entreter, ocupado a voltar a acertar um murro no monstro risonho, um murro que fosse, era difícil, o Palhaço fincava-lhe as dentolas e esquivava-se, fintava e esquivava-se, um oponente à altura do gabarito do Bombardeiro, agilidade e elasticidade não lhe faltavam, e aquelas mãos cheias de dígitos de gume afiado pareciam as pás duma hélice dupla, cortavam o ar morto das ruínas da escola primária antes de cortarem a pele e a banha, quase nunca carne, de Malaquias, que já mal notava, a dor nem registava, estava a levar uma coça das valentes e nem isso lhe registava nos processos desenfreados do cérebro, há muito tempo que não se metia numa briga daquelas, que não se sentia tão vivo, não era só o adversário que sorria loucamente na escuridão que as poucas velas que não tinham sido derrubadas ou apagadas tentavam em vão manter à distância no corredor e, no meio da peleja, conversavam:

“Mordo, mordo, mas não lhe chego às carnes, Sr. Polícia.”

“Então, pára quieto que é para apanhares.”

“Já pensou em fazer dieta?”

“Não vale a pena. Todos os quilos que perco acabam por me encontrar mais tarde. São como os cães. Seguem-me até casa.”

Malaquias falhou mais um soco potencialmente bem dado caso tivesse o mesmo conectado com alguma parte do rosto onde se esboçava aquele terno sorriso de AVC do Palhaço, Malaquias era mais forte mas o adversário era mais lesto, movia-se tão rapidamente que se tornava difícil vê-lo, certos momentos era como se não estivesse ali e Malaquias combatesse uma sombra, talvez a sua, ou um fantasma de mandíbula assanhada e dentes afilados, e então surgia à sua frente a acicatá-lo, a desafiá-lo para que lhe acertasse um cachação dos dele, a ver se conseguia, a ver se ele deixava, para logo a seguir, tão logo que era difícil descrever, aparecer atrás do polícia e morder-lhe o cachaço, com a frustração a crescer em Malaquias ao mesmo ritmo que o gozo que estava a tirar daquela altercação, e a irradiar de si para o Palhaço, o que era melhor ainda, também a fartar-se de abocanhar nada a não ser banha de agente de autoridade, por isso é que ele comia criancinhas, mais chicha, mais à superfície da pele, mesmo as mais gordinhas, gostar de toucinho era uma coisa mas aquilo, era outra, completamente diferente, anda por cima Malaquias não parecia muito importunado pela dor que o Palhaço sabia lhe estar a causar com as suas mordidelas, por aquele andar ainda estariam ali quando o dia voltasse a nascer na Cidade Baixa, que era como quem dizia, se fosse optimista, dali a muito tempo, perdidos numa dança em que um não morria e o outro não almoçava e só porque o canibal de biqueira longa era imortal não significava que podia esperar que o outro se cansasse, Malaquias não dava ares de se cansar, ou de suar, que mais depressa aquele exercício todo lhe consumiria as adiposidades escondidas no fato de gosto duvidoso, agora esfarrapado, do que as mandíbulas do Palhaço, mas não tão depressa quanto isso, não seria por aí que o combate se resolveria.

Para Malaquias, a resolução daquele impasse passava por um dos seus murros de mão direita, dando um passo à frente, juntando o peso do corpo, desnecessário dizer que o mesmo era considerável, à mesma e afinal dito, ao movimento do ombro direito para acrescentar um par de pontinhos na escala de Richter, não de Mercali, a de Mercali era para meninas, à catástrofe que se abateria sobre a focinheira esburacada do Palhaço e se isso não o abalasse, Malaquias talvez ficasse sem ideias, cedo demais para pensar nisso, para se preocupar com isso, estava a divertir-se tanto, a esquecer-se das tragédias pessoais e das más influências que a Cidade Baixa jogava sobre si e o seu espírito, Malaquias estava a levar uma abada mas ele era homem para aguentar o pior que o adversário tinha para dar, era esse tipo de lutador, era Cassius Clay antes da conversão ao islamismo, e o Palhaço era uma bailarina, nada mais do que uma bailarina do toca-e-foge, do morde-e-esquiva, com um par de passos e pouco mais que isso de movimentos, suficiente para a criançada mas Malaquias não era nenhum miúdo, era um homem, era um polícia, quantos anos daquilo ele tinha, digam lá, aposto que sabem de cor, trinta, pois então, e mais troféus de boxe amador que Muhammed Ali tinha de profissional, as coisas que ele sabia fazer com os punhos, aos outros, a doer, sem misericórdia, era só dar uma bem dada nos cornos do Palhaço, era só adivinhar para onde ele se ia esquivar a seguir, não a seguir, mas três movimentos a seguir, porque ele era assim tão rápido, adivinhar-lhe o passo seguinte não adiantava, Malaquias metia lá o murro e o sacana já lá não estava, era preciso prever o terceiro passo a seguir ao que o Palhaço, quase demasiado rápido para que o seu movimento fosse captado pelo olho humano, iria dar, e Malaquias era a paciência em pessoa, a pachorra personificada, ninguém sabia como ele esperar, de olho no momento certo, estratega insuperável do ringue, espera lá que já cospes, põe-te lá a jeito, ó Palhaço, que já te selo o destino à moda do Bombardeiro, não tens assim muito espaço aqui no corredor, escolheste mal o covil, pior ainda o adversário, vamos lá pôr à prova essa tua teoria de imortalidade.

“Gordo.”

“Chama-me nomes, Palhaço.”

“Sebento.”

“Chama-me nomes.”

Malaquias estava nas nuvens, não aquelas baixas logo acima da Cidade Baixa, mas nas nuvens de que se fala quando se fala no Paraíso, apreendendo perseverantemente a técnica do adversário, dando-lhe os flancos para ele se entreter a mordê-los, a arranhá-los, mas sem que alcançasse a carne e muito menos algum órgão vital, mesmo tendo já a cara toda escalavrada, as papadas do pescoço abocanhadas, o Palhaço lutava como uma miúda, sobrenatural, porém uma miúda, saltitona e indisciplinada, era uma pena, mas não deixava de ser perigoso, mortífero, mesmo, porque mais tarde ou mais cedo iria abrir um alvéolo na muralha de toucinho de Malaquias e depois a sua velocidade faria o resto, bem capaz era ele de lhe saltar para dentro do corpo e comê-lo por dentro, devorá-lo como os sobrinhos devoravam doces, engolindo sem mastigar, e então toda a aprendizagem que o Bombardeiro recebera no corpo sobre o estilo de combate do Palhaço, estilo mariposa, seria em vão, seria debalde, mesmo a divertir-se como estava o antigo campeão da Academia de Polícia não perdia de vista os riscos que corria.

“Então e esses nomes?”

“Buchaaaaaahahahahahahahahaaaa!”

Isso, pensava Malaquias, distrai esse sacana, faz de conta que não sabes como o derrotar, deixa que o peito dele se encha de triunfalismo, ignora os dentes dele no teu mamilo esquerdo, ignora o teu mamilo esquerdo dentro da boca dele, ignora as feridas superficiais que ele te causa, és Malaquias, o Bombardeiro, já te fizeram muito pior em combates, ele que leve a tua orelha direita, ele que leva a esquerda e meio quilo de banha de ambas as nádegas agora que as calças se romperam no rabo, não prestes atenção ao teu sangue nos lábios do Palhaço, finge que tens uma quantidade interminável do produto, finge que os mamilos voltam a crescer, e espera, espera pelo teu momento, já consegues perceber dois movimentos à frente do que ele está a fazer agora, só mais um, adivinha mais um, profetisa a terceira deslocação dele, vaticina a terceira mordida a seguir a esta que te arrancou a ponta do nariz, mais narina, menos narina, ignora que estás a ficar desfigurado ao ponto de da próxima vez que te vires ao espelho não seres capaz de te reconhecer, deixa-o comer as partes de ti que não fazem falta enquanto tentas ler-lhe os pensamentos, calcular-lhe os impulsos, prepara esse murro de direita, prepara aquilo que o teu treinador na polícia chamava de “a Bombarda” e os adversários “a bomba atómica”, atenção aos pés, atenção, espera, ele aí vem, espera, não te precipites, podes não ter outra oportunidade, espera, isso, isso, espera.

Agora!

Tau!

A Bombarda.

Em cheio no meio da cara de feio do Palhaço, osso ressoando a fender-se contra os nós dos dedos de Malaquias, a despedaçar aquele sorriso doentio, aquela irrequieta mandíbula inferior, aquela fileira de dentes sanguinários, a cabeça dele a abanar na inércia do pescoço e este a não conseguir suster toda a força do surpreendente impacto, Palhaço, Bombarda, Bombarda, Palhaço, e a quebrar-se com um estalido seco, apoteótico, verdadeira banda sonora dum triunfo merecido, o canibal a ir ao tapete à luz da última vela que se deixou ficar para trás para assistir até ao fim ao combate do século, e que fim, valia bem o preço do bilhete, do pay-per-view, o corpo do palhaço caído para um lado e a sua cabeça a apontar para o outro, a tentar falar, falhando mas, se conseguisse proferir as suas últimas palavras, teria dito:

“O Sr. Polícia não entende, não posso morr…”

“Cala-te, Palhaço. Ainda não acabei.”

O próprio Malaquias soprou a última vela para que fosse a escuridão a única testemunha do que ele se preparava para fazer a seguir.

Nuno Lopes
Enviado por Nuno Lopes em 31/05/2010
Código do texto: T2290988
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