Malaquias (22)
O sorriso do Palhaço brilhou na escuridão da escola primária abandonada enquanto os ecos das gargalhadas dele não se esgotavam de paredes nas quais ricochetear loucamente no corredor apertado, regressando sempre para assaltar os poucos sentidos que Malaquias, caído de joelhos aos pés da sobrinha empalada, ainda não jogara para longe, como fizera à pistola, que talvez lhe viesse a fazer falta, se é que a Malaquias ainda apetecia dar luta, dar caça ao monstro, cumprir a promessa que fizera a Tattoo, à sua espera lá fora, de lhe levar o coração do assassino, ainda a bater, ou quem sabe a língua que não parava de tagarelar, dizendo-lhe coisas como:
“Coitadinha passou o tempo todo a dizer que o tio a vinha salvar. Que o tio era Polícia. Que tinha uma pistola. Que matava palhaços maus.”
Falando, o Palhaço aproximava-se e, aproximando-se, velas colocadas junto à parede de cada lado do corredor acendiam-se à sua passagem, iluminando a sua figura desconjuntada, tornando-a real, revelando à luz inconstante o seu jaquetão de cauda coçado, de flanela aos quadrados vermelhos e vermelhos escuros, rasgões no tecido velho aos quais não faltavam os remendos coloridos, todas as cores possíveis, como a gravata mal amanhada ao pescoço e demasiado curta, na lapela uma flor que podia ter sido um girassol que ele trouxera do lado da colina onde ainda nascia o dia mas que agora estava morta, vitimada pela adversidade ambiental da Cidade Baixa onda nada que fosse bonito se aguentava muito tempo, o tacão dos sapatos de palhaço, cinquenta centímetros de verniz e biqueira redonda de madeira, a estalar no chão de entulho por cada passo que ele dava na direcção de Malaquias, como um leão a encurtar distância com a gazela, um leão comunicativo, sempre falando.
“Sou um palhaço mau, Sr. Polícia?”
As feições do monstro respondiam à sua própria pergunta, nada que fizesse aquela careta quando sorria podia ser bom, nada que mostrasse o amarelo afiado dos dentes poderia passar por bom, pobre ou rico ou sequer triste, aquele era um palhaço mau, mau como o pior dos males do mundo, um sorriso pintado que devorava criancinhas, batom encarnado-sangue desenhando lábios grossos imaginários em lábios finos, um esgar falso como o nariz vermelho seguro por um fio negro que se apertava num risco nas maçãs do rosto, e o olhos, negros, todos negros, onde espirais brancas rodavam cada uma para seu lado, reflectindo a luz das velas que continuavam a acender-se sozinhas, as suas pequenas flamas assemelhando-se aos cabelos vermelhos espetados da peruca demasiado gasta, acometida da calvície do tempo e mal presa sob as orelhas esguias do Palhaço.
“Também me vai dar um tiro na cabeça?”
Ia, se Malaquias ainda tivesse a pistola ou se a pistola ainda tivesse balas, se não as tivesse desperdiçado alvejando a escuridão para evitar alvejar a si mesmo, para sabotar o impulso que sentira ainda há pouco de se matar, vontade que nada tinha a ver consigo, realmente era contrária ao seu feitio, mas que por momentos lhe parecera a melhor ideia que tivera em toda a sua vida, um assomo de génio, uma ideia irresistível à qual conseguira, de alguma maneira, resistir, um fim que lograra precaver, mas agora a falta da pistola e das balas fazia-se sentir, embora o que Malaquias mais sentisse naquele instante fosse raiva, e em grandes quantidades, e um ódio que não lhe ficava atrás, e uma fúria que era como um mar a galgar os açudes da alma e a afogar todas as facetas boas dum homem bom, bom marido, bom polícia, bom com os punhos, que era tudo o que precisava para torcer o pescoço ao assassino dos cunhados e dos sobrinhos e duma porção de pequenitos e pequenitas ainda por apurar, aquele gajo ia apanhar, ui se ia, e pela medida grande, a maior que existisse, mas antes, sucedeu que houve esta seca, porém demorada, troca de palavras, que abriu com:
“Não me pode matar, Sr. Polícia.”
“Não posso? Porquê?”
“As crianças.”
“As crianças?”
“As crianças. Se me matasse, quem é que punha as queriduchas bem-dispostas? Quem é que as faria rir? Quem é que os pais deste mundo iam buscar para lhes animar as festinhas de aniversário? Pense lá bem, antes de me matar. Pense nas crianças.”
“Ó Palhaço, aqui entre nós que ninguém nos ouve…”
“Sim?”
“Nunca gostei de crianças.”
“Não?”
“Não as suporto.”
“Sério?”
“Sério.”
“Eu adoro-as.”
“São uma praga.”
“São fofinhas.”
“Irritam-me.”
“Deliciosas.”
“Transmitem doenças.”
“Estaladiças.”
“Monstrinhos interesseiros, todas elas.”
“Mas então… Se não foi para salvar aqui a queriducha da sua sobrinha, porque veio à Cidade Baixa?”
“Porque sou polícia. Trinta são os anos que tenho disto. Nunca deixei um patife escapar-me. Não hás-de ser o primeiro que se fica a rir de mim.”
“Veio cá para me prender?”
“Bom, não…”
“Para me matar?”
“Bingo.”
“Não pode matar-me, Sr. Polícia.”
“Porque não?”
“Não posso morrer.”
“Não podes ou não queres?”
“Não posso.”
“Não estou convencido.”
“Podia contar-lhe…”
“Conta.”
“Não vai acreditar.”
“Conta lá, ó Palhaço.”
“Cheguei com o primeiro circo que teve a infeliz ideia de passar por cá ainda a Cidade Baixa era um vilarejo e os habitantes tinham acabado de sacudir do pêlo os resquícios religiosos dos seus fundadores. Queriam diversão, nós precisávamos do dinheiro. Mas havia algo aqui no fundo do vale. Os nossos animais sentiram-no assim que descemos as colinas, mostraram-se agitados à chegada. Nos dias que se passaram, o nosso leão comeu um braço ao tratador. As focas devoraram-se umas às outras. Ao elefante pareceu boa ideia engolir a própria tromba. E a mim…
“Deu-te a fome.”
“Comecei a olhar para a pequenada e a imaginar se iam bem com batatinhas assadas. Com arroz de passas. Guisadas. Tinha um livro grotesco de receitas na minha cabeça e queria experimentar todos os pratos. E estava sempre com fome.”
“Sei o que isso é.”
“A loucura também se apoderou dos outros artistas. Tanto que o circo morreu aqui. A Cidade Baixa engoliu-o. Engole tudo.”
“Balelas.”
“Vai engoli-lo também, Sr. Polícia.”
“Ela que tente.”
“Quer dizer, vai se…”
“Sim? Se o quê?”
“Se eu não o comer primeiro.”
“Pensei que só deitavas o dente a crianças, Palhaço.”
“Mas também gosto de toucinho.”
“Morde aqui, então.”
O punho direito de Malaquias pôs fim à estúpida interlocução, amachucando o nariz de palhaço ao Palhaço, fazendo-o saltar daquela carantonha desengraçada, expondo à luz das velas que agora se encapelava com o rebuliço o buraco onde um nariz de gente deveria estar, a concavidade nasal duma caveira pintada para parecer viva, e o punho esquerdo veio como um raio logo a seguir ao outro, em cheio na queixada dentada do canibal, que se desengonçou e pendeu para o pescoço como se o monstro tivesse tido um acidente cardiovascular, não fora o caso, apenas um encontro imediato com os punhos, um atrás do outro, de Malaquias, outrora o Bombardeiro, o Palhaço a ir ao chão no mais recente nocaute ao primeiro assalto da sua recém-reactivada carreira de pugilista, prato frio que já fora antes servido a uma centena de guardas prisionais do Monte, dado a provar agora ao patife dos sapatos compridos, um deles a voar-lhe do pé, que não era um pé, apenas ossos, dedos de osso a espreitarem do peúgo roto, o Palhaço a encontrar-se no chão e a realinhar o maxilar num sorriso torto e a dizer:
“Au!”
Malaquias aproximou-se para lhe chegar mais um pouco, com que então imortal, o senhor Palhaço, coitadinho, não pode morrer, tirava-se já isso a limpo, agarrou-o pela gravata e pô-lo de pé para novas galhetas, iguais às outras, vindas do mesmo sítio que as outras, até transformar o monstro em pó de osso moído, mas o monstro não estava para ser saco de pancada e mordeu-lhe a mão que vinha para lhe bater outra vez, mordeu fundo, Malaquias soltou um urro, o Palhaço soltou-lhe um bocado de carne entre o polegar e o indicador, Malaquias soltou outro urro, o Palhaço mordeu-lhe o pulso ainda mais fundo, as mãos do Palhaço nasceram das mangas do casaco mofado e os dedos retorcidos e afiados cresceram dos buracos das luvas e as unhas cravaram-se nos ombros do Malaquias que, farto de urrar, desta vez aguentou a dor em silêncio e desferiu nova murraça a ver se conseguia soltar-se das dentadas do adversário, não conseguia, o bicho movia-se a uma velocidade estonteante, mordendo aqui, arranhando ali, ferrando-lhe ainda acolá, sempre arrancando nacos a Malaquias, que se sentia como se estivesse a ser devorado vivo, já a ter uma boa ideia no sentido de perceber as agonias por que passavam as vítimas daquele dentuças, desenhando jabs e uppercuts e bofetadas à Bud Spencer que apenas atingiam o ar, que apenas faziam morrer a chama às velas mais próximas, o Palhaço era um adversário digno do Bombardeiro dos tempos antigos da Academia e a falta da pistola, da fusquinha, começava a morder no espírito de Malaquias ainda mais fundo que os dentes do carrasco dos seus sobrinhos, as mordidelas multiplicavam-se e entre uma e outra o Palhaço gargalhava, gargarejava, zombava dos murros que se perdiam na boa vontade do polícia, aquele confronto a pender cada vez mais para o seu lado.
“Está-me a saber bem, Sr. Polícia.”
“Oscula-me os glúteos, Palhaço.”
Seria este o fim inglório de Malaquias, que não já o Grande?