Malaquias (21)

A Polícia tinha-lhe ficado com a mula por motivos de prova de crime mas Malaquias, o Grande, não era homem que facilmente se apanhasse em falta no que a artigos de arsenal dizia respeito e, à falta da mula, pistola com que matara ao engano Cats Bamber, um palhaço acidental, não O Palhaço que estava a pontos de limpar de qualquer tipo de sebo, a sua mão foi ao sovaco buscar a fusquinha, revólver de meia dúzia de tiros com um cano mais curto que o da mula mas de calibre exactamente igual, Malaquias até lhe tinha mais carinho que à outra, o tamanho nem sempre importava, e ele nem era do tipo que precisasse de uma pistola comprida para compensar coisa nenhuma, ninguém tinha nada a ver com isso mas a sua esposa, em viva, costumava-lhe gabar o canhão, perguntava-lhe entre risota jovial se ele tirara licença para o porte daquela arma, o marido dizia sempre que não, que era de fábrica, não carecia, segue para bingo, a fusquinha segura na mão direita e a esquerda a empurrar o portão que abria sob protesto e com lamúrias para as ruínas da escola primária onde Tattoo, o miúdo rancoroso, com boas razões para o ser, garantia se escondia o Palhaço, o tal, aquele ao que vinham, o come-crianças, nham-nham, comera-lhe a mana, seis anos tinha ela, pai despejou-a pela sanita abaixo, mãe tornou-se um anjo, nham, e Malaquias, não obstante toda essa tragédia, a perder algum tempo a tentar falar com ele, um diálogo sussurrado em que houve oportunidade para se dizerem coisas da qualidade de:

“Puto, tu ficas.”

“Não! Também vou.”

“Estouro-te uma rótula, puto.”

“Força. Vou ao pé-coxinho.”

“Dava-te cabo das duas mas as balas são capazes de me fazer falta.”

“Precisa de ajuda. Posso ajudar.”

“Se o Palhaço está mesmo ali dentro, já ajudaste.”

“Mas é que quero mesmo matá-lo.”

“Trago-te um bocado dele para matares.”

“O coração?”

“Se ele tiver um.”

Malaquias não botava fé que o monstro tivesse coração mas, tendo, ele faria tudo ao seu alcance para o trazer, ainda a bater, se possível, para que Tattoo pudesse espezinhá-lo com os seus sapatinhos envernizados, essa promessa foi lançada com um aceno de cabeça recíproco, os olhos do rapaz demonstravam grandes doses de confiança de que o avantajado polícia faria por cumprir o seu compromisso, e este, notando essa esperança, encheu o peito de brio e caminhou de forma assertiva para o pátio da escola onde outrora crianças teriam brincado durante o recreio, devorado os conteúdos das suas lancheiras carinhosamente forradas pela comidinha da mãe, ou da avó, Malaquias conseguia ver uma menina de totós a oscilar o corpo no baloiço de que apenas restava a armação de metal ferrugem, quase conseguia ouvir os aros do assento retesarem-se sob o peso da criança e gemerem nos ganchos da armação, os sons que outras crianças faziam à volta dessa menina, à espera que fosse a vez deles para andar no baloiço, e tentou imaginar aquele pátio iluminado pelo mesmo sol que sorria todos os dias aos miúdos do outro lado das colinas, mas falhou, não conseguia conceber que a Cidade Baixa alguma vez tivesse tido dias e, por isso, os sons fantasmas desapareceram no vento mal cheiroso que vinha do sul.

Malaquias aproximou-se do edifício da escola caminhando pesadamente ao lado da parede onde todas as janelas exibiam cruzetas completamente despidas de vidro, despidas de tudo, apenas perfeitos quadrados de escuridão intensa que não convidavam a que se espreitasse através deles, e Malaquias não o fez, avançando com a sua atenção à frente dos seus passos e a pistola, a fusquinha, prima da mula, segura em ambas as mãos suspensas na extensão total dos braços, postura aprendida num manual há mais de trinta anos, nunca esquecida, de como abordar um cenário duvidoso ou uma situação potencialmente perigosa, que ele era propenso a seguir as regras, não que não fosse capaz de jogar mão de improvisos, que era, de ter jogo de cintura, que a tinha, mesmo que a sua cintura ficasse logo abaixo do peito, que era onde o cinto conseguia alguma tracção, Malaquias trazia em si o necessário para demonstrar dinamismo nos calores dos momentos, Bruno Magli vomitados a pisar a terra do que um dia, se dia houvera, fora o recreio das crianças que os pais enviavam àquela escola, ali ao fundo, junto do pilar do bebedouro que já não existia, três miúdas e uma corda de saltar, quatro rapazes passavam por elas em perseguição a uma bola, risos, gritos infantis, bons tempos que o vento do presente levava para longe.

A porta principal da escola era alta, dupla, e metade estava aberta, desaparecida dos gonzos, engolida pela mesma escuridão que Malaquias, o Polícia sem Medo, se preparava para invadir de pistola em riste e sem esperança dos seus olhos se adaptarem àquele nível de trevas ou do seu estômago deflectir o cheirete que o atingiu na cara afogueada assim que ficou de frente para a entrada, um fedor que não era a pó nem a antiguidade mas sim a carcaça decomposta e a carniça mais recente, Malaquias entrou no que parecia ser um talho que não estava nos conformes quanto aos regulamentos que defendiam a saúde pública, três passadas no interior e a pouca luz de fora rendera-se incondicionalmente e tudo o que via era o que pressentia pelo som dos sapatos a pisarem entulho feito de lascas dos tijolos, pedaços de madeira, coisas que estalavam sob o peso dele, coisas moles e escorregadias, coisas que ele não via e dava graças a Deus por não as ver, cada vez mais dentro de um buraco dentro de outro buraco, andava em frente mas parecia descer, talvez Tattoo tivesse razão quando dizia que o Palhaço só podia ser o Diabo, talvez fosse, e Malaquias descesse a caminho do Inferno, pensamento que não lhe trazia grande temor, não era atreito a caçago, no máximo sentia algum agastamento por não conseguir ver patavina e, apesar do pivete a carne morta, alguma fome agora que o estômago estava novamente vazio e ele, sem nada em que focalizar toda a impressionante energia mental de que dispunha, se punha a pensar em comida.

Encontrou o corredor indo de encontro à parede e depois apalpando-a indecorosamente até dar com o acesso seguinte, que deu, e virando como nos manuais a pistola para o corredor antes de a seguir com o corpo, dando consigo numa menor largueza entre as paredes, dando consigo a conseguir ver as paredes que o ladeavam, percebendo que havia luz ao fim do, por assim dizer, túnel, oscilando na ponta dos trinta ou quarenta passos que Malaquias deu, um de cada vez muito lentamente, respirando pesadamente, olhando atentamente, até alcançar a vela única, grossa e indecisa na sua verticalidade ondulante, meio derretida, na bifurcação que seguia à esquerda e à direita, Malaquias optando pela direita porque era nessa direcção que lá longe se via outra vela e uma figura que a segurava imobilizada encostada à parede.

“Quieto aí!”

Sem resposta, Malaquias, trinta anos daquilo, não exactamente aquilo, mas parecido, avançou para a pessoa que, conforme ele se aproximava, ia aos seus olhos deprimindo de tamanho, a sombra que a luz da candeia lançava encolhendo das formas de adulto escorreito para as de jovem franzino e destas para as de uma criança, mas não uma criança qualquer, a fusquinha tremeu nas mãos do tio que via por terra a esperança de ainda conseguir salvar um dos sobrinhos gémeos, porque ali estava a sobrinha, gémeo sem, portanto, presa à parede por um espigão que a segurava no lugar como se fosse um naco de carne no matadouro, que era o que a escola se tinha tornado, os bracinhos dela posicionados como se estivesse em plena cerimónia de comunhão, empunhando a vela, e ela apesar de ter os olhos abertos não estava viva, e apesar de ter a boca aberta não dizia nada e mesmo não dizendo nada repreendia Malaquias por mais uma vez ter chegado tarde, e Malaquias apertou a pistola na sua mão quando a Cidade Baixa arremessou sobre ele toda a toxicidade da sua iniquidade aproveitando a brecha que tamanho desapontamento abria no espírito daquele homem para o aliciar com fantasias de suicídio, nem era preciso subir ao topo de um prédio, alguns anjos não precisavam de voar, não quando tinham uma pistola da mão e uma boca aberta num grito surdo ou uma cabeça do tamanho de Malaquias que, convenhamos, era impossível falhar e então um tiro soou no esconso da antiga escola primária, agitando a noite que nela vivia, apenas por um momento, apagando para sempre a luz que vivia no topo da vela.

Silêncio, o parágrafo mais curto num conto negro.

Mais curto ainda, silêncio.

Silêncio.

Sil…

Soou um novo tiro e mais outro e mais outro e mais outro e mais outro e então um clique no vazio que ecoou pela escuridão e mais outro e mais outro e mais outro e um grito de algum sentimento indescritível e mais outro e mais outro que originou um eco e mais outro e mais outro e Malaquias atirando a pistola contra coisa nenhuma e a fusquinha batendo num obstáculo que não se via e noutro e noutro antes de cair algures longe dali e Malaquias jogando as mãos à sobrinha para arrancá-la da parede mas ela não vinha porque estava bem presa e o sangue dela escorregava nas mãos do tio que tinha chegado demasiado tarde para a salvar e não conseguindo sequer levá-la dali para fora e Malaquias que nunca mais seria o Grande caindo de joelhos aos pés da sobrinha chorando até que uma gargalhada e mais outra e mais outra soaram e lhe gelaram os ossos e finalmente uma voz disse:

“Nham-nham.”

Nuno Lopes
Enviado por Nuno Lopes em 31/05/2010
Código do texto: T2290982
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