O Vigiado

O Vigiado

Por Ramon Bacelar

-ACORDE!

A voz metálica e estridente jorrou dos alto falantes com a fúria incontida de um dilúvio bíblico, penetrou em seus ouvidos com uma frieza áspera que o obrigou a despertar do semi-torpor que se encontrava.

Não era a primeira vez que despertava com as veias bulbosas em ponto de erupção; nos últimos dias (ou seriam anos?) descobriu novas nuances e significados para adjetivos cuja superficialidade ilusória e enganadora só lhe serviram para confirmar suas suspeitas a respeito da vida e existência.

O que era uma mera voz metálica em face das inúmeras torturas físicas, psicológicas e emocionais que passou nos últimos...não se lembrava. Respirou fundo, sentiu as gotas de suor percorrem os sulcos e rugas de sua face, sentiu o ar pesado pressionar seu corpo, foi tomado de um novo torpor; abaixou a cabeça involuntariamente num gesto de carência materna e subitamente lhe veio a mente uma imagem de conforto que encerrava em si mesma toda a claridade e definição de uma fotografia em alta resolução: viu a face de Deus...e pensou nos adjetivos.

Inquietava-se com dificuldade na cama de campanha; era como se a escuridão enrijecesse seus músculos e agravasse seus movimentos: nadava num mar de piche.

-SENTADO!

Ouviu novamente a estridência nauseante e com velado desconforto se sentou. Ajeitou o colarinho de sua casaca branca que lhe irritava o pescoço com seu tecido áspero e suas costuras mal feitas: tinha a impressão de ter sido fabricada com os farrapos de um saco de estopa ou camisa de força.

Clic, click, click, um clarão ofuscante seguido de uma semipenumbra saudaram a chegada da luminosidade opaca e artificial de três lâmpadas ovóides situadas no centro do cubículo oval que, alimentado pela estéril claridade, passava a impressão de ser maior do que realmente era. Não alimentava ilusões: crenças e luzes, quando manipuladas por habilidosos ilusionistas, não passavam de meros instrumentos para auto-ilusão, auto-engano...

Uma vez acostumado a semi-claridade, girou o pescoço mecanicamente e imediatamente foi tomado por uma descarga de choque adrenalínico que enrijeceu seus músculos e vitrificou suas órbitas: estava cercado de faces.

Obedecendo a trajetória ovalada do cubículo (solitária psiquiátrica?), seus olhos percorreram o excêntrico semicírculo: uma barba por fazer aqui, um nariz aquilino ali...cabeças calvas, lábios ressecados, pescoços esqueléticos, gengivas negras e olhos, olhos que retribuíam sua angústia, ansiedade e curiosidade. Estafado visualmente por tentar definir as nuances e contornos das faces, cativo de uma penumbra tirânica e desonesta que lhe recusava, como um demiugo mesquinho e egoísta, a claridade absoluta, agora via estes rostos à luz de novas máscaras e disfarces: uma boca solitária que pateticamente balbuciava como um boneco de ventríloquo, uma cabeça que derretia e se desintegrava como uma face de cera próxima ao calor; rostos cadavéricos desprovidos de carne e abundantes em pele, semblantes sonambúlicos, bocas petrificadamente semiabertas como manequins em uma loja de departamentos, posturas impossíveis, peles comatosas, rugas em formas de aranhas (ou seriam aranhas em formas de rugas?) e em meio a essa artificialidade penumbrosa, olhos espreitavam como entidades vivas, reais. Retribuíam os olhares, pagavam impiedosamente na mesma moeda, retornavam toda angústia, desespero e o ódio irracional que sentia por essas faces. Irracional sim; não sabia porque as odiava tanto (como poderia odiar algo que não conhecia e “desconhecia”?), não sabia...

Não sabia porque estava sentado, porque suportava as torturas nem porque obedecia ordens; ultimamente nem tinha certeza de quem realmente era. Sentia-se vazio e insubstancial, uma leveza incômoda e pouco natural que parecia inflar a cada segundo: bexiga frágil sendo levada pelas mais irrisórias insignificâncias.

-EM PÉ!

Arrancado do seu devaneio, obedeceu involuntariamente; sentiu o chão gelado que o fez se distanciar definitivamente de sua relutante dormência sonambúlica: estava VIVO.

Ouviu passos no corredor; passos pesados, decididos: prenúncio de futuras aflições, camadas de significados e interpretações para adjetivos que, para mentes menos aventurosas e inquietas, pareciam gastos e sem potencial. Sentiu um leve abrandamento da já deficiente claridade e deduziu corretamente que os passos alcançaram a fresta da porta por onde a luminosidade leitosa penetrava timidamente no cubículo. Ouviu ruídos metálicos: ruídos ásperos e carregados como se objetos pesados fossem arrastados no chão de zinco: os ruídos, assim como os passos, vinham em sua direção.

-AAAAAAHHHHHHHH!!!!!

Tomado por um súbito horror, o grito escapou como um enxame de abelhas enlouquecidas, cortou o ar rarefeito e retornou aos seus ouvidos com potência triplicada. Com os tímpanos em erupção, paralisado pelo pânico como um demônio petrificado, olhou para os lados e pediu socorro as faces indistintas, mas só foi correspondido nos olhares. Uma vaga de ódio inadulterado o possuiu com a força de um maremoto. Por esta vez seu ódio tinha fundamento! Era um ódio racional: nascido do abandono que as faces o tinham deixado. Olhava-as com ódio redobrado: ódio, ódio, ódio e ria...ria...ria...

-VOCÊ!

Com a violência de uma represa arrebentada, um clarão de luz invadiu o cubículo e, definida pela almejada claridade absoluta, as silhuetas de seus captores e instrumentos invadiram sua retina, assim como as faces insensíveis que negaram ajuda a um irmão quando ele mais precisava.

Sua hora tinha chegado; girou o pescoço e finalmente percebeu: estava cercado de espelhos.

FIM

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Leiam A Vingança do Ghoul: http://casadasalmas.blogspot.com/2010/05/vinganca-do-ghoul.html

Ramon Bacelar é contista, crítico e ensaísta. Mantém um blog sobre cinema, quadrinhos, literatura e cultura underground (Maquinário da Noite: www.maquinariodanoite.blogspot.com) é colaborador do site Teia Cultural (www.teiacultural.com.br) e publica contos no Recanto das Letras ehttp://www.recantodasletras.com.br/autores/ramonbacelar e em seu site pessoal, Miragens Ofuscantes: http://www.miragensofuscantes.blogspot.com

Ramon Bacelar
Enviado por Ramon Bacelar em 25/05/2010
Reeditado em 28/05/2010
Código do texto: T2278330
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