Malaquias (20)
A escola tinha morrido há muito tempo, há tanto tempo que Malaquias mal reconhecia o local como tendo sido uma escola, e o que estava ali era uma assombração dum estabelecimento de ensino, uma escola primária assombrada, olha que grande ideia, insulada do resto da Cidade Baixa por um muro baixo de onde nasciam espigões metálicos negros apontados num repto de desafio ao telheiro impassível de nuvens demasiado altivas para o baixo que se dependuravam, um muro que nalgumas secções surgia derrubado em cascatas de pedra, noutras ainda de pé, indeciso como tudo por ali, sem saber se vai, se fica, um estado reflectido na última refeição de Malaquias, pipocas e tremoços subindo e descendo entre a boca e a boca do estômago, Malaquias sentia-se indisposto, vómito seco e transpiração desaguando em gorgolões, coração que era um tambor tumultuoso a bater-lhe carregado no peito, os olhos dele revirados para o portão alto de ferro velho e entortado onde ainda se conseguiam ler algumas das letras que se safaram aos actos de vandalismo do passar do tempo, ainda dizendo “Escola Primária” em letras esparsas sobre o arco do portão, entrosadas em palavras com falhas, como numa boca cheia de dentes pretos, podres, e Malaquias, o Grande, estatuária barriguda erguida à indecisão do lado de fora do portão enferrujado, vago entre o atravessar para o outro lado ou, muito pelo contrário, não, agora que ali estava sentia que pendia mais para o não, que a mulher se calhar até tinha razão, que ele, que nunca gostara especialmente de crianças, viera até ao fim do mundo com a esperança de salvar uma, e mesmo que fosse sobrinho dele, ou sobrinha, impossível saber qual dos gémeos ainda estaria vivo, o melhor que tinha a fazer era dar meia-volta, ir para casa, entregar-se à policia, escapar à loucura, se ainda fosse possível, tinha fé que fosse, queria acreditar que sim, e viver o resto da sua vida a ver o sol, mesmo que fosse aos quadradinhos, sempre o veria nascer e pôr-se nas linhas dum horizonte que ali, na Cidade Baixa, não existia, mas não podia, Tattoo estava a olhar para ele, a vê-lo tremer e disse-lhe:
“Não vai entrar?”
“Cala-te, puto.”
“Ele está lá dentro.”
“Cala-te, puto.”
“Pensei que queria apanhá-lo.”
“Puto…”
“Do que está à espera?”
“Cala-te.”
“Tem de vingar a minha mana.”
“Cala-…”
“Não consigo matá-lo sozinho.”
“…te.”
A voz do miúdo roía as pontas aos nervos de Malaquias, por isso era bom que se calasse, favor do tamanho do mundo que lhe fazia, melhor que não o chagasse, crianças tinham o condão de o exasperar, mas aquela começava a competir pela taça, pelo ouro, e melhor faria em calar-se, o miúdo que não pensasse que era o Palhaço que o assustava, que tirava Malaquias, o Grande, do sério daquela maneira, trinta anos a fazer o que fazia, fazendo-o melhor que ninguém, o problema era o sítio onde estava, não a escola, ou o que restava dela, mas a Cidade Baixa, o maldito buraco negro na Terra feito com o tacão da bota de Deus, sim, era isso, só podia ser, o Palhaço não, desse não tinha pavor, não tinha medo de ninguém, muito menos desse criminoso torpe, ao qual continuava a querer muito chegar a roupa ao pêlo, mais, ainda acarinhava nos recantos menos encantadores da mente cada uma das coisas agradáveis que planeava fazer ao canibal das trombas pintadas assim que lhe pusesse as mãos em cima, mas calma, era preciso ter calma, era preciso que aquela vertigem, que não era medo, amansasse, que a roda parasse e que, se calhar, vomitasse, eram ideias assim que faziam o mundo andar à volta, e Malaquias arqueou para o lado, aguentou-se de pé com uma mão espalmada no muro da escola.
“Blegh.”
E vomitou em jacto contra o muro da escola a cerveja e os tremoços e as pipocas com manteiga e talvez o almoço, fosse lá o que fosse que ele comera, já não se lembrara do quê nem do quando, nem conseguia reconhecer nada de entre os pedaços regurgitados sob pressão para os pés, conteúdos estomacais a lavarem à pistola o sangue e os miolos e os intestinos de anjo caído dos céus em cheio nos seus sapatos e, de repente, Malaquias sentia-se melhor, não bem, não chegava a tanto que se sentisse bem, ainda, mas melhor, para já, nada mau, e nem se importou com a porcaria na costura manual dos Bruno Magli que trazia calçados nem no mal empregado que era ter trazido aquele par para ali, limpou a boca com as costas da mão esquerda, cuspiu saliva azeda, três ou quatro vezes, só então deu por sentir a grandeza retornar ao seu estado de espírito, sentiu-se Grande outra vez, corrigiu a postura, a coluna regressou à posição vertical, fazendo-se novamente crescido para o mundo, as cores voltaram à sua face e a vontade férrea ao seu semblante, uma vontade indomável, ecoando a determinação exibida na penitenciária do Monte, superando até os níveis de adrenalina que o levaram a inscrever o seu nome na lista de pesadelos que iriam interromper amiúde o sono de muitos, se não de todos, os guardas prisionais ao longo do resto das suas vidas envergonhadas, era esse Malaquias, o Evadido, que enfim endireitava o corpo em frente às grades omissas do portão da escola primária, mas não só, era também Malaquias, o Bombardeiro, e Malaquias, o Astuto, e Malaquias, o Incansável, e muitos outros Malaquias mais, todos eles o qualquer coisa digna de nota, o adjectivo nos píncaros do positivismo pessoal, do elogioso configurado a preceito, recuperando do que afinal não era a chegada, para ficar, como um parente indesejado, da demência, mas sim, e apenas, uma pontinha de indigestão, quem sabe se não deveria ter seguido o conselho do tipo das polaroids com vozes dentro sobre não tocar nos tremoços, os tremoços é que o haviam lixado, e ele que os comera só por comer, às vezes Malaquias era assim, o Comilão, a falecida bem que o avisava, tantas vezes quantas depois lhe dizia que bem o tinha avisado, em vão, enfim, não estar agora a pensar na reverenciada falecida naquele momento era um conselho que Malaquias estendia a si mesmo, a loucura expurgada do seu organismo junto com os tremoços tóxicos, aproveitar agora que a saúde mental regressava em força para fazer o que viera ali fazer, e fazê-lo bem feito, e duma vez para sempre, Malaquias olhou para o rapaz que o mirava, descrente, e em voz baixa trocaram impressões a fazerem muito lembrar as seguintes:
“Pensei que não ia parar de vomitar.”
“Foi só qualquer coisa que comi, puto.”
“Comeu muito dessa coisa, então.”
“Já me sinto melhor.”
Tattoo, dizia o miúdo que se chamava, impossível confirmar a sua história, Malaquias continuava a achar o puto algo estranho, quer fosse pela sua roupa num preto solene dois números acima da sua largura de ombros, quer fosse pelo rosto quase sempre fechado, lábios apertados largando agora alucinados num lesto palavreado sobre o Palhaço, adversário de ambos em particular e em geral de todas as crianças de tenra idade, circunlóquio que só fazia sentido quando dito no contexto da bizarra pessoa do Palhaço, que gostava delas tenrinhas, para comer, e que chegara à Cidade Baixa vindo do nevoeiro que todas as manhãs se depositava nos estreitos arquitectónicos para negar a luz do sol aos seus habitantes, que já tinham problemas de sobra, tinham mesmo um excedente de fundamentos que os levavam, por exemplo, a saltar das suas janelas, das varandas dos viadutos, não havia necessidade de se juntar a antropofagia juvenil à coluna do “não, nunca” no deve e haver de motivos para se viver, ou não, ali, ninguém se mudava para um sítio onde nada acontecia pelas melhores razões, quem chegava vinha para piorar o que já estava mau ou para tirar proveito do pior que os outros faziam, e o Palhaço nesse sentido acumulava, o pior palhaço é aquele que se ri das suas próprias palhaçadas e que, não satisfeito, comia o seu público, e que um dia fora contratado para a festinha fim de ano da escola da irmã de Tattoo, número de telefone levantado por alguém do concelho directivo duma página das páginas amarelas, de debaixo da imagem dum palhaço sorridente mas que não mostrava os dentes, não os mostrava até ser tarde demais, para não estragar a surpresa, e que surpresa, nham-nham, e o Palhaço apresentou-se a horas no local certo, sem dúvida parecido com aquele local, onde Malaquias ouvia Tattoo contar a história à sombra do muro, e enquanto o diabo esfregava o olho comeu a primeira turma numa das salas, seguindo a festa na sala ao lado, com a turma seguinte, e assim sucessivamente, foi um festim, lá pelo meio comendo a mana de Tattoo, Tattoo até duvidava que a tivesse saboreado, a comer à pressa daquele jeito, a enfardar, duvidava que tivesse apreciado a doçura da sua mana, a sua candura, que o assassino só podia ver as escolas primárias como estabelecimentos de comida rápida, como aqueles restaurantes do coma-tudo-o-que-conseguir-comer, o sacana comia, não era um gourmet, estava mais para galifão, para um Sebastião come tudo, tudo, mas mesmo tudo, incluindo a mana de Tattoo.
“Tinha só seis anos.”
“Pulha!”
O Palhaço não dava ares de quem quisesse saber, marchava tudo, e os restos que porventura ficassem para trás mal davam para irem condignamente a enterrar, deixando os pais agarrados à saudade que as fotografias da descendência por ele mastigada, se era que mastigava, se era que não engolia simplesmente aquilo que trincava, tornavam dolorosamente insuportável, como se a negação de um qualquer futuro a petizes desbarbados fosse o condimento indispensável para dar aquele gostinho especial à dieta do monstro, tal como, quiçá, ele gozasse o prato cheio de loucura que servia às famílias afligidas pela sua fome voraz, multiplicando o número de vítimas num itálico a posteriori, devastando famílias inteiras, como fora o caso da de Tattoo, convencendo o miúdo de que o Palhaço não era humano, não podia ser, uma criatura assim podia lá agora ser de carne e osso, como ele e como Malaquias eram, mas alguma vez?
“O Palhaço só pode ser o Diabo.”
“Não te preocupes.”
“Como se mata o Diabo?”
“Não sei, puto, mas garanto-te que me vou divertir à brava a tentar descobrir.”