Malaquias (18)

Desviando o minúsculo Fiat Uno alugado do caminho dum enorme camião Kamaz amarelo que vinha na direcção contrária a abrir, Malaquias arrotou a última bolha de gás da Coca Cola Light emborcada ao almoço, há quanto tempo fora isso, não que estivesse com fome outra vez, mas parecia uma vida inteira atrás, um sonho que se evaporava no momento de acordar, vendo bem até que já mordia qualquer coisa, e, fisgando com perícia um excelente lugar para estacionar, guinou a preceito para a praceta cercada por prédios de trinta ou quarenta andares na zona da Cidade Baixa que lhe pareceu a tal que o tal contacto na Telefónica assegurava, bom, assegurava não, era mais um palpite que tinha, ter sido onde o sinal do telemóvel do Palhaço, “animo a criançada durante as festas de aniversários”, “ligue já”, “satisfação garantida”, se perdia sempre que o tentava localizar. Assim, Malaquias emergiu do automóvel e sacudiu-o dos pés até libertar o corpanzil da carroçaria do veículo, não foi fácil na vida poucas coisas eram, e caminhou a pé através do pavimento coberto de excrementos de cão, esperava ele que fossem de cão, o cheiro, meu Deus, o cheiro, sapatinhos Bruno Magli de verniz progressivamente cagado a cada passo que dava, não havia civismo no olho do cu do mundo, nem iluminação nocturna digna desse nome, a não ser o reclame em néon radioactivo do bar “Sol Morto” que Malaquias viu piscar-lhe o olho do outro lado da avenida por onde prostitutas, ou mulheres acaloradas, dividiam a calçada com passadores de droga, azeiteiros de meia branca, gandulos de meia tigela e demais gatunagem variada, que Malaquias tinha muitos anos daquilo, trinta, exactamente, carreira impecável a varrer das ruas gentinha de semelhante qualidade, movia-se à vontade nos meandros do entre-pernas da sociedade moderna, os olhares que lançavam eram coisa que não o incomodavam, sentia-se como um Sheriff acabado de chegar a uma cidade sem lei e a sensação assentava-lhe que nem uma luva, cuidado, aí vinha Malaquias, o Grande.

O aeróstato bípede envolto em bombazina de azuis marinhos entrou pelo bar aos solavancos por não conseguir adaptar rapidamente os olhos ao escuro do bar ainda mais escuro que o escuro da rua, e mais movimentado também, dando encontrões a gente de toda a espécie, nenhuma delas humana, que em nada ficavam a dever em sordidez para as que encontrara lá fora, Malaquias contava mentalmente os crimes que, assim que a vista se harmonizou com o ambiente, via acontecerem às claras à sua frente, incluindo, sem nenhuma ordem de preferência específica, tráfico de drogas, de mulheres, venda de bebidas a menores de idade, atentados ao pudor, ocultação de arma ilegal, caftinagem, meretrício, imigração ilegal, posse de animal exótico proibido, neste caso uma jibóia, actos ilícitos com um burro, violação de direitos de autor, música demasiado alta para o adiantado da hora, fogo posto, falsificação de moeda, zonas de fumo não devidamente assinaladas, consumo desenfreado de estupefacientes, estacionamento proibido, Malaquias perdeu-lhes a conta, avançando pelo mar de gente que se movia em ondas encapeladas, dopadas, embriagadas, e que ele apartava apertando-se pelo meio sem nunca esquecer um modesto “com licença” ou um bem-educado “perdão”, em direcção ao balcão, plantando a sua bandeira num banco alto que uma gaja alta havia vagado mesmo agora e pedindo, como se aquilo fosse do tipo de bebida que se servisse por ali, um vodka martini com um azeitona empalada num palito e, afinal, até serviam.

Degustando o digestivo, Malaquias, o apenas aparentemente peixe fora d’água, sentiu-se em casa, reviveu momentos como aquele em estabelecimentos, vá lá, parecidos do outro lado da colina, o “Sol Morto” seria o paraíso de qualquer fiscal se o mesmo se atrevesse a fazer-se ao viaduto número sete com quatro ou cinco livrinhos de multa, garantido que os preencheria a todos, que daria a ganhar uma fortuna ao Estado, aquilo estava maduro para a mãe de todas as rusgas, as coisas que se faziam à cara podre naquele sítio deixavam até Malaquias, que já vira de tudo e muitas vezes, de boca aberta, ou talvez fosse da fome que já andava à coca, o que é que seria que eles ali tinham que se comesse? O tipo sentado a seu lado disse-lhe que as pipocas eram boas, mas o tremoços nem por isso, Malaquias pediu as pipocas e os tremoços, e uma cerveja para enxaguar, e quando olhou por cima do ombro do seu novo amigo para espreitar as fotografias que ele estava a ver, o homem escondeu-as como quem esconde o jogo e Malaquias ficou sem a certeza se o grito prolongado que ouvira viera de alguma das tais fotos ou se fazia parte da banda sonora do bar e, quando tentou desenvolver um tema de conversa com o homem das fotografias, a tentativa feita num ambiente sonoro hostil não andou muito longe disto:

“Ando à procura duma certa pessoa.”

“Hm. Andamos todos.”

“Calculo que sim, mas não se trata disso.”

“As pessoas vêm para cá para se perderem, não para serem encontradas.”

“A pessoa a que me refiro pinta a cara.”

“Puta?”

“Palhaço.”

“Hm.”

Malaquias tirou do bolso interior do casaco Emporium Armani a página amarela rasgada onde o assassino de crianças se fazia anunciar com um enorme sorriso e promessas que não tencionava cumprir, e o homem das fotografias mirou-a com interesse, porém não muito agradado, não se comparava às suas, o enquadramento era mal amanhado, a revelação fora apressada, a impressão trapalhona, os números de telefone estavam visivelmente desfocados, o homem apontou para eles como quem pergunta a Malaquias se tinha experimentado telefonar-lhe e Malaquias encolheu os ombros de grande calado como quem encolhia os ombros, queria fazer-lhe uma surpresa, era o que o gesto dizia, e o outro percebeu mas não podia ajudá-lo, não conhecia o tipo que estava por trás da pintura de Palhaço nem sabia se algum morava por aquelas bandas, embora desconfiasse que sim, havia sempre um palhaço em todas as vizinhanças, era o universo a balançar o yin com o yang, talvez tivesse mais sorte se perguntasse a outra pessoa e Malaquias agradeceu, terminando as pipocas, estalando a casca ao último tremoço, que realmente não eram grande coisa, bebendo a espuma à caneca de cerveja e deixando o homem das fotografias voltar à sua vida, regressando ele à sua, à deriva no mar de gente, ao encontrões com uma mulher emaciada a carregava uma cópia de “As Flores do Mal”, bom livro, Malaquias lembrava-se da sua falecida lhe ter dito, que ela é que era a leitora lá de casa, o que agora não vinha ao caso, e sempre que indagava acerca de quem buscava as respostas que obtinha orbitavam na orla da má educação e da rudeza e, em traços gerais, eram estas:

“Palhaço és tu, gordo.”

“Deslarga, gordo.”

Malaquias, o Grande, talvez, mas o Gordo, nunca, não se deixou abater, nem pela falta de pistas nem pela falta de classe de quem interpelava, o “Sol Morto” estava cheio daquela sorte de gente e ele não se iria embora enquanto não tivesse a oportunidade de colocar a mesma pergunta a cada um dos criminosos que enchia o local, enquanto não esfregasse a página amarela no pálido de cada um dos seus focinhos, não queimasse nas suas memórias a imagem do palhaço sorridente, ou a lembrança dum homem enorme vestido de bombazina a fazer perguntas sobre um palhaço sorridente, a palavra seria passada adiante, era assim nos círculos da iniquidade, era assim que o trabalho se fazia, agitavam-se as águas e ficava-se à espera que as ondinhas trouxessem à costa o peixe mais apetecido, ele aparecia sempre, a paciência dizia-se que era uma virtude e, em virtude de o ser, Malaquias era obrigado por defeito de profissão, e até de vocação, a tê-la, e tinha-a, para dar e vender, era fruto que dava o ano inteiro, por isso aguardou pelo resultado da faina junto ao bar, sete bancos altos à esquerda do homem das polaroids, um novo balde de pipocas à frente, uma quarta travessa de tremoços aos lado, uma bárbara caneca bávara de cerveja entre ele e os petiscos, pagando ao barman conforme ia comendo, conforme ia bebendo, sempre com um olho empoleirado na nuca atento ao estabelecimento, tentando não recordar que o tempo talvez fosse um luxo que o sobrinho que lhe restava dum conjunto de dois completamente iguais entre si, um com, outro sem, não dispunha, mas não era a primeira vez que agia contra o relógio, trinta anos nas ruas e becos da Baía que, estava bem, não eram tão depravadas e depravados quanto o ambiente do “Sol Morto”, mas eram uma boa escola e, essa, Malaquias tinha-a toda, tinha, sim, senhor, e toda essa instrução dava-lhe jeito para perceber que o petiz que acabava de entrar no bar vinha com ela fisgada, varria o lugar com olhinhos astutos de gato persa, à procura de alguém, à sua procura, tão baixinho que não se via no meio da multidão agora que avançava na sua direcção, pessoas a assustarem-se à sua passagem como se um furão lhes tivesse abocanhado a barriga da perna, surgindo nas costas de Malaquias e puxando-lhe o casaco com mãos gordurosas e dizendo com uma voz fininha mas funda, de um menino que já vivera muitos anos:

“Eu levo-te ao Palhaço.”

Nuno Lopes
Enviado por Nuno Lopes em 24/05/2010
Código do texto: T2276568
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