As Duas Mulheres
Sentado na pequena escadaria da entrada de minha casa, observava, com um sarcástico sorriso no rosto, aquela horrível e ridícula mulher que trajava um vestido velho de um vermelho desbotado. A mulher mancava de forma grotesca. Principiava uma manhã nublada e abafada. Aos poucos, um vento insalubre de uma chuva enfermiça iniciou a soprar. A mulher avançava mancando com uma irritante lentidão. Porém, eu ria. Ria de sua insuportável fealdade, de seu ridículo manquejar, de seus odiosos cabelos castanhos, curtos e sujos, completamente desgrenhados e embaraçados. Sua tez morena parecia exageradamente queimada pelo sol. Seus enormes olhos rodeados por repugnantes olheiras transmitiam a sensação de um profundo rancor e vingança, um terrível ódio reprimido.
As finas gotículas de uma deprimente garoa começaram a cair, mas a mulher prosseguia em seu arrastado e odiento manquejar. De seu rosto comprido, gotejava a garoa mesclada à coriza amarelenta que escorria de seu desproporcional nariz. Seu velho vestido desbotado já principiava a grudar em seu corpo deformado e de imenso abdômen. Era uma cena insanamente grotesca, e não consegui segurar meu riso
A mulher fitou-me com o canto dos olhos, com um visível rancor. Até que lentamente desapareceu, coberta pelas densas árvores que margeavam a rua sem calçamento.
Levantei-me da escadaria e, quando me dirigia à cozinha, ouvi batidas vagarosas na porta. Voltei-me, e qual não foi me susto ao ser canhestramente surpreendido pelo rosto repulsivo da mulher manca. Seus olhos escuros e esbugalhados dardejavam-me com ironia e malignidade. Seus lábios ressecados, lacerados, exprimiam um abjeto sorriso que me causava enjôos. Não havia como ignorar em todo horror de sua expressão um desejo transtornado de vingança.
Saí desvairado pela porta dos fundos, jamais sentira uma sensação tão demolidora de medo. Era algo como um medo ancestral, em estado puro, advindo de horrores do inconsciente coletivo. Havia algo de anomalamente perverso na fisionomia daquela mulher (ou deveria dizer, daquela bruxa?)...
Fugindo pelos fundos do pátio, atravessando o quintal de um vizinho, atingi a rua, correndo com todas as minhas forças. Após alguns minutos, parei e atrevi-me a olhar para trás. Nenhum sinal da hedionda mulher. Mais aliviado, mas não tranquilo, passei a caminhar pelas ruas imundas. O dia encontrava-se nervosamente sombrio. A garoa era irritante, e eu enlameava meus pés sem perceber. Aos poucos, passei a ouvir o tique-taque de um relógio, mas não conseguia distinguir de onde ele provinha. Sei apenas que era algo enlouquecedor. Transmitia a impressão de ser onipresente. Onde quer que fosse, ouvia o mesmo tique-taque incessante, invariável, odiosamente insano.
Pessoas passavam apressadas por mim, olhando seus relógios com extrema angústia e nervosismo. Várias traziam expressões de desespero, colocando suas mãos à cabeça e arrancando os cabelos. Algumas choravam. Creio que todas, como eu, ouviam os torturantes tique-taques.
Avançava sofrivelmente por entre toda espécie de lixo. Foi só então que percebi que estava com lodo quase até os joelhos. Pisava em animais apodrecidos, em pilhas elétricas deterioradas, em restos de comidas gordurosas, sacolas plásticas enroscavam-se em meus pés, que já sangravam. Havia cortes por todos os lados de minhas pernas. Pelo caminho, eu esmagava garrafas quebradas e latas de alumínio vazias. No desespero de sair de casa, não calçara meus sapatos. A chuva engrossara. E os trovões confundiam-se com os tique-taques que ameaçava minha sanidade.
Alguns vermes geneticamente modificados que vagavam pela lama infecta começaram a penetrar pelos ferimentos de minhas pernas, alimentando-se de meu sangue. A dor era insuportável. Lentamente, crescia o número de pessoas que passavam por mim pelas ruas miasmáticas. Suas expressões eram cada vez mais desesperadas. Olhavam seus relógios, mas nenhum deles funcionava. Não era deles que provinha o diabólico tique-taque.
Ligavam seus celulares, falavam berrando com alguém, mas eu não conseguia definir o que diziam. Só sei que os vermes, quando aquelas pessoas gritavam, surgiam às dezenas em suas gargantas, como em um sintoma típico de uma grave infestação por lombrigas.
Iniciei a sentir uma estranha dor de cabeça. Comprei numa farmácia um analgésico. Foi inútil. Carros ultramodernos conduzidos por altos executivos atropelavam brutalmente cachorros e pedestres, para em seguida espatifar-se contra prédios em desmoronamento. Minha dor de cabeça se intensificava de forma alarmante. Ao observar com mais atenção os homens e mulheres que perambulavam devastados pelas ruas, percebi que também eles sofriam com terríveis dores de cabeça. Por tal motivo arrancavam os cabelos. Creio que tão impiedosa cefaleia era causada pelo incessante e insuportável tique-taque.
Foi então que as cabeças das pessoas começaram a explodir. Antes disso, percebi que seus olhos congestionavam-se violentamente de sangue, enquanto urravam de dor. Então, a cabeça explodia, e o sangue espalhava-se por todos os lados. Minha camisa branca tingia-se de vermelho sanguinolento. Alguns indivíduos, nos instantes imediatos à explosão de sua cabeça, lamentavam profundamente o fato de que no outro dia estariam impossibilitados de trabalhar, pois já teriam morrido. Centenas de cabeças já haviam explodido, quando senti que em breve chegaria minha vez. Um desespero cósmico fez tremer minha alma.
Nesse instante, avistei novamente a mulher manca. Vinha em minha direção. Dessa vez, não de maneira lenta e arrastada, mas com rapidez canhestra, grotesca, uma marcha verdadeiramente assustadora. Porém, nunca deixava de manquejar. Trazia os olhos quase que fora das órbitas e um sorriso debochado em seu rosto de maligna deformidade. Avançava a passo célere em minha direção. Com as mãos na cabeça, fugi alucinado, tropeçando em lixo e em cadáveres.
Ao passar por uma casa antiga e parcialmente arruinada, vi que alguém me observava com um enorme par de olhos fixos e escuros. Detive-me. Olhei ao redor. Principiava a anoitecer. A porta abriu-se rapidamente. A moça que me observava limitou-se a ordenar:
- Entra! Aqui ela não entrará, agora.
Obedeci, aliviado. O ambiente em que entrei encontrava-se em uma densa penumbra. Somente duas velas o iluminavam. Pude perceber que era uma casa bastante antiga, tanto pela sua arquitetura interna, quanto pelos móveis e pela decoração. Esta, embora eu não pudesse contemplá-la satisfatoriamente devido à escassa luminosidade, era um tanto estranha, perturbadora, eu diria. Havia quadros com retratos de pessoas aparentemente muito antigas, e todos passavam a impressão que me fitavam de forma sentenciosa. Distingui também algumas pinturas clássicas. Duas eram de Da Vinci, outras, de Bosch e algumas, de Rembrandt.
Havia espessas teias de aranha em todos os cantos. Alguns animais que deviam ser gatos (deviam, mas não pude ter certeza) escondiam-se sorrateiramente atrás dos móveis. Apesar do clima tétrico, sentia-me relativamente bem naquela casa (pudera, depois de todos os horrores por que passei nas ruas dantescas). Ali não ouvia os aflitivos tique-taques e, consequentemente, minha dor de cabeça cessara por completo. Mas uma inquietação profunda me atormentava...
A moça pediu-me que sentasse. Era bela, muito bela... porém... estranha. Apesar de toda sua beleza, não sei dizer com termos racionais o porquê, ela de alguma forma indefinível lembrava a horrenda mulher manca que me perseguia. Trajava um lindo vestido de um intenso vermelho que lembrava o odioso vestido de vermelho desbotado daquela bruxa. Seus cabelos, como os da manca, eram castanhos, contudo, um pouco mais longos e bem mais lisos, perfeitamente limpos e penteados.
Seus belos olhos, também castanhos, eram igualmente enormes, porém, não apresentavam olheiras, não aparentavam saltar das órbitas, não expressavam nem insanidade nem ódio, mas uma esquisita ternura, uma inquietante cordialidade e uma viva inteligência. Os olhares que ela me dirigia transmitiam simultaneamente uma sensação de bem-estar e de estranhamento. Um receio, uma constante inquietação.
Seu corpo era perfeitamente esbelto, seu porte irrepreensível chamava de imediato a atenção pela extrema elegância. Nada tinha, portanto, da deformidade hedionda daquela bruxa manca. No entanto, e isso eu não consigo explicar, algo na moça enquanto ela caminhava trazia à mente a marcha pavorosa daquela mulher infernal.
Após sentar-me, a moça declarou seu nome. Chamava-se Aurora. Perguntou-me se eu aceitaria um chá. Aceitei, e logo me trouxe um chá que ela já havia preparado. Provei do chá com certo receio e cautela. Era delicioso. Mas não identifiquei seu sabor. Ao questioná-la sobre qual seria, ela respondeu-me de forma alarmantemente misteriosa:
- Certas coisas não devem ser ditas... pelo menos por enquanto...
Gelei ao ouvir essas palavras. Não exatamente pelo que elas poderiam significar, o que já constituiria um forte motivo, mas devido ao tom com que foram proferidas. Sua voz, de fria e tranquila beleza, irradiava, ao mesmo tempo, doçura e gravidade, uma clássica cordialidade unida a uma expressão sombria de autoridade e ameaça.
Mesmo em minha angustiante apreensão para compreender o que estava acontecendo, não sentira, até então, nenhuma espécie de real mal-estar na presença daquela bela mulher. Mas em minha terrível curiosidade, perguntei-lhe nervoso quem poderia ser a bestial mulher manca que me perseguia com tanta perversidade. Ela limitou-se a dizer o seguinte, em sua serena elegância, esboçando um sutil e indecifrável sorriso:
- Já está amanhecendo... Veja!
Voltei o rosto para meu lado direito e divisei ao fundo duas imensas janelas góticas cobertas por duas vastas cortinas escarlates. A moça ergueu-se e abriu lentamente as cortinas. Pelos vidros cristalinos das janelas, vislumbrei a irradiação de uma anormal luminosidade que alternava colorações avermelhadas, levemente azuis, tenuemente roxas, e, mais intermitentemente, verde-escuras.
Em seguida, a bela moça abriu uma pequena porta por onde essa estranha luminosidade penetrou como uma densa névoa fosforescente. Pediu-me que me levantasse e me dirigisse até a porta. Ao chegar a um passo da entrada, fui assombrosamente surpreendido por uma visão deslumbrante até o absurdo. Ao longe, uma vastidão de campos e matas estendia-se até onde alcançava a vista. Era um horizonte infinito que parecia se perder em um universo de colorações avermelhadas. Creio que muito ao longe relampejava... Nas planícies mais próximas de meu ponto de observação, cobertas de exuberante vegetação anormal, brilhava a luminosidade estranhamente colorida, como se esta não fosse oriunda do sol, ou, pelo menos, do sol que conhecemos.
As nuvens envoltas por tais luzes assumiam formas espectrais, fantasmagóricas. Era impossível definir de qual ponto do espaço as luzes eram oriundas. Oscilavam como ondulações pelas atmosferas que refulgiam transbordantes de suas sobrenaturais luminosidades. Enquanto contemplava estarrecido aquele lancinante espetáculo, não percebi que Aurora me observava com perscrutadora atenção. Quanto a mim, tentava elaborar em minha mente algum tipo de explicação. Só sei que sentia uma profunda tristeza. O que presenciava, apesar de fantástico, não era de forma alguma feliz ou apaziguador. Pelo contrário, transmitia uma sensação quase insuportável de melancolia.
Ao deitar meus olhos àqueles horizontes sem fim e avermelhados, senti um desânimo desolador. Seria algum efeito daquele misterioso chá? Lembrei-me então do tique-taque perturbador que havia cessado. Nesse exato instante, Aurora proferiu algumas frases que para mim soaram completamente desconexas. Sua voz parecia flutuar ecoante pelo ar carregado daquelas luzes coloridas. O que pude depreender do que a moça disse era algo relacionado ao relógio. Olhei para o alto da porta, de maneira esquisitamente mecânica. Ali estava o relógio funcionando, mas sem emitir o som dos tique-taques.
Cheguei a imaginar que tudo fosse um sonho. Mas sabia que estava acordado. Ou não sabia? Afinal, de que é que sabemos? Como se lesse meus pensamentos, a moça sussurrou-me aos ouvidos que o que sabemos é o que sangramos. E beijou-me nos lábios, e da minha boca derramaram-se copiosas golfadas de sangue. Em seguida, disse-me ela para que olhasse para a porta por onde eu havia entrado.
Olhei. Pelo lado de fora da porta, pude distinguir as feições repulsivas da bruxa manca, observando-me fatalmente com seus olhos arregalados e devoradores, com seu escabroso sorriso de defunto. Um arrepio diabólico percorreu minha espinha. Nada pude dizer. Senti-me paralisado. Mal conseguia mover-me, parecia que algo pesava sobre meus ombros. Meu pulso estava fraco. Foi Aurora que quebrou o fúnebre silêncio:
- Agora tu deves ir através dessas luzes e dessas paisagens. Sabes o que tem lá? Lá vibra o Horizonte do Infinito.
Aurora pronunciou tais palavras como se cantasse uma missa, e novamente um calafrio percorreu o meu corpo. Porém, a sensação de tal calafrio era substancialmente diversa daquela que senti devido à visão ominosa da bruxa.
Poderia dizer que os calafrios eram diametralmente opostos, suas sensações vibravam de um extremo ao outro, como se fossem dois pólos de uma mesma corrente elétrica... As conclusões irracionais a que tal constatação me levou tenho receio de mencioná-las agora. Uma comoção de sublime fatalidade fervilhou em minha psique. Estaria salvo? Estaria perdido? Ou simplesmente morto? Ou nada disso?
Começou a soar uma música... Era uma flauta desolada. Legítima melodia de Fim. Não sei de onde ela surgira. As notas daquela música eram de uma tristíssima estranheza. Adejava pelo ar como uma sentença. Confundia-se com as nuvens fantasmais envolvidas pelas absurdas colorações.
Senti um perfume trágico de incensos. Aurora entrou e abriu a porta para a bruxa manca. Levou-a para um canto da sala, e imaginei que cochichavam. Quanto a mim, deveria partir. Mergulhei nas névoas de luzes anômalas em direção ao horizonte que aparentava não ter fim. Mal consegui caminhar. Não tive coragem de olhar para trás. A caminhada seria penosa. E a flauta do Fim me acompanhava. Agora já é um piano...
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