A MENINA-DEMÔNIO
A lâmina serrilhada se movimentava com velocidade pela carne ainda fresca da morta. Quem olhasse para o rosto delicado e sereno da jovem estirada na mesa, nunca poderia imaginar a intensidade dos tormentos nos quais estivera envolvida nas últimas horas. O néctar da vida brotava em resposta às insistentes investidas dos metálicos e aguçados dentes da faca, escorrendo em filetes pela nudez pálida do corpo estendido sobre o mármore. Uma poça encarnada maculava a brancura tétrica do assoalho, o gotejar cadenciado que lhe dava origem assemelhava-se, em ritmo, à chuva salgada que vertia da fronte do padre.
Ele não gostava de ser chamado assim, não mais, não desde que abdicara dos seus desígnios eclesiásticos. As antigas convicções e o sacerdócio já não comportavam a grandeza de sua verdadeira vocação nessa vida. Agora ele era apenas um homem, um instrumento do poder divino, mas ainda assim, somente um homem.
Devo confessar que em todos esses anos que o acompanho, jamais o vi tomado por tamanha tensão. Mas não posso condená-lo por isso, a situação é, de fato, apreensiva. Ele não pode e nem tem autorização da família para exercer tamanha profanação no recém cadáver. Todos ainda choram pela fatalidade, mas seria mais difícil ainda tentar explicar suas intenções. Suas mãos tremem pela pressa, pelo desejo de expurgar o mal que ainda resiste naquele invólucro carnal.
Preciso vigiar a porta, impedir que alguém invada o ambiente e, sem entender as reais intenções do padre, interrompa suas ações. A desculpa encontrada de que ele livraria qualquer vestígio maligno do corpo da jovem certamente não incluiria, na cabeça da desorientada mãe, uma grotesca mutilação da filha. Mas ele não tem escolha, e eu confio na sua intuição, afinal, esta nunca falhara anteriormente.
Pobre criança! Um triste fim para alguém tão jovem! Vi nos olhos do padre quando este se deparou com a menina, ainda viva, de que seria muito difícil reverter a situação. Se ainda fosse chamado mais cedo! Entretanto, o ceticismo e a ignorância são fatores determinantes no insucesso de tão árdua tarefa.
Quando chegamos à residência, encontramos uma multidão na porta, era possível que todo o vilarejo estivesse no local. Velas acesas se misturavam a choro e lamento. Um corredor se abriu enquanto passávamos, muitos se benziam e clamavam aos céus por ajuda.
Dentro da casa, um policial tentava acalmar a mãe da jovem atormentada, enquanto esta se apresentava empoleirada como uma ave no corrimão da escadaria que levava ao segundo pavimento. Um outro policial a mantinha sob a mira de uma espingarda. Seus olhos se mostravam completamente negros, assim como todo o entorno da pele acima do nariz. Seu queixo tremia incessantemente, como se estivesse abraçada pelo mais absoluto frio. Suas unhas escuras permaneciam cravadas na garganta do irmão gêmeo. Aos seus pés, jazia uma outra menina, uma amiga dos irmãos, com a traquéia dilacerada e coberta pelo próprio sangue.
Os movimentos da garota eram rápido e curtos, o policial ameaçava atirar se ela não soltasse o refém. O padre percebeu a gravidade da situação, uma tragédia maior ainda poderia acontecer se ele não assumisse o controle. Ele pedia para que o homem da lei abaixasse a arma, no qual fora categoricamente contrariado. Vendo-se sem alternativa, ele se colocou entre a linha de fogo e o alvo, mantendo o olhar fixo na perturbada menina. Conforme ele se aproximava, mais ela apertava o pescoço do irmão, fazendo verter riscos avermelhados na pele do rapaz. Este estava desacordado, um alento em meio ao horror da cena, pelo menos estava sendo poupado de algo que poderia traumatizá-lo para o resto da vida.
Enquanto nos dirigíamos para o local, ficamos sabendo que os irmãos sempre foram um exemplo de normalidade, nunca haviam apresentado quaisquer sinais de transtornos espirituais ou psíquicos. E nem mesmo haviam saído do vilarejo até a semana anterior, quando passaram alguns dias com o pai que vivia na cidade por ter se divorciado. Os casos sem antecedentes sempre eram os mais difíceis, não havia um ponto de partida, o tempo era um inimigo ardiloso.
O padre andava de um lado para o outro, hesitava em avançar. O demônio no corpo da menina não se comportava de maneira usual, era reservado, não praguejava nem se debatia, parecia guardar no silêncio sua maior ameaça. Uma mancha negra se movimentava como uma onda sob a pele sem cor da incorporada. Todo seu corpo era objeto de tal investida. O fenômeno não passou despercebido pelos olhos atentos do padre. De sua valise, ele sacou um recipiente com a água límpida de uma nascente, e o atirou sobre a endemoninhada. O vidro se partiu com o choque, o local atingido pelo líquido se tornou azulado, mas em poucos instantes recobrava a palidez do restante do corpo.
O demônio soltou um vapor denso pelas narinas, mas não fez nada além disso. Parecia desafiar o inimigo com o olhar. Da maleta, o antigo reverendo buscou um punhado da terra enegrecida de um cemitério, e num ato similar ao anterior, atirou os particulados contra a ameaça. Os grãos do solo sagrado mantiveram-se por alguns segundos grudados no corpo da jovem, criando várias manchas em tons de marrom e cinza. Mas, foi só, nenhum outro efeito fez surgir na criatura além de um sorriso debochado e animalesco.
O padre continuava a analisar a melhor maneira de combater o clandestino no plano terrestre. Era imprescindível ser preciso em sua nova investida, se ele estivesse certo, o demônio soltaria o garoto imediatamente. Com movimentos simultâneos, ele atingiu a cabeça da garota com um outro recipiente e com a chama de um isqueiro travado. Labaredas surgiram altas e vermelhas, acompanhadas de gargalhadas bestais. O fogo se extinguiu sem que a menina soltasse o irmão ou atentasse contra sua vida. Ela parecia se deliciar com o desespero dos inúteis diante de seus pés.
Era próprio dos demônios a necessidade de auto-afirmação, e esse não era tão diferente, afinal. O padre pôde perceber a origem de sua linhagem, o seu apego a esse plano. A manifestação presente naquela sala não se atrelava às minúcias da água, nem à estrutura da terra, tampouco aos apelos das chamas, aquele ser que corrompia a ingenuidade da menina era um representante da pior estirpe infernal, ele era uma demônio de sangue. Não era um daqueles que tomam a vítima como uma casca, eles são absorvidos pela essência humana, por conseguinte, mais difíceis de serem extirpados.
A criatura erguia o menino como um troféu, lambendo as linhas rubras de seu pescoço, assim como as próprias unhas. O rosto da jovem já não apresentava qualquer sinal de suavidade, os músculos estavam retraídos e deformados, numa amálgama de dor, sofrimento e doentia satisfação. O demônio mostrava sua face sob a pele juvenil!
Seu tronco inflava ao passo que ruidosos roncos escapavam da boca semicerrada. O policial ameaçava atirar, o padre gritava em pedidos de calma. Ele sacou uma espécie de corda de seu repertório e pôs-se a manipulá-la com habilidade e urgência, pois a menina-demônio parecia ter se cansado de jogar e mostrava-se inquieta sobre a madeira do corrimão.
Então, com uma lâmina, ele abriu um talho no próprio braço, fazendo verter o líquido vivo. Em seguida, deslizou o emaranhado de fios sobre o ferimento, batizando-o com o próprio sangue. O padre parecia determinado e certo do que fazer, e partiu na direção da criatura. Ele gritava palavras de ordem numa língua incompreendida pelos presentes, mas que não apresentava segredos para o demônio. A garota respondia em semelhante dialeto e insinuava, com gestos, que estaria pronta a dilacerar a garganta do irmão.
O purificador de almas não se intimidou e tampouco recuou, manteve-se em firme marcha apesar da ameaça. No fundo ele estava convicto de que o demônio blefava, pois em sua mente haveria algo muito maior do que a morte simples e justa do indefeso em suas garras.
A poucos metros de distância, o padre lançou sua arma, um laço com algum propósito definido, envolvendo o pescoço da garota. O toque dos filamentos ensangüentados queimou-lhe a pele, fazendo surgir uma fumaça escura e levando-a a largar o irmão. O demônio urrava de dor e ódio, e a manifestação de sua ira roubaria a coragem da mais valente das criaturas.
Não havia mais meticulosidade em seus atos, o ser não escolhia movimentos, se debatia e vociferava palavras ininteligíveis. O corrimão desabou com tamanha fúria, o padre foi puxado pela corda e seu destino parecia traçado quando um estampido se fez ouvir. A garota tombava com um projétil instalado em sua cabeça, embora nenhum ferimento ali se mostrasse. O homem largou a corda e levou as mãos à cabeça, ele gritava em reprovação. A voz da mãe fez coro ao desespero do renegado sacerdote. Desvencilhando-se do policial que a segurava, ela alcançou o outro, passando a socá-lo e a acusá-lo de assassino.
Foi quando algo chamou a atenção do padre, fazendo-o perceber que precisava agir rapidamente. Tomando a jovem morta nos braços, ele correu para a cozinha, dizendo que precisava livrá-la dos vestígios demoníacos que por ventura ainda pudessem fazer morada em seu corpo. A mulher gritava para que ele largasse sua filha, eu tentava acalmá-la, buscava fazê-la compreender que o mal ainda resistia. Não sei se foi por um instante de serenidade, ou por obra da brandura em minha voz. O que posso dizer é que ela cedeu, mesmo sob lágrimas sentidas, deixou que o padre levasse a menina morta para um último ato de purificação.
A jovem jazia sobre a superfície fria da mesa da cozinha. O padre havia achado algo em sua pele, a provável porta de entrada para sua alma. Era uma tatuagem. Uma estranha ave em tinta negra. Uma blasfêmia certamente adquirida na recente viagem.
Com a lâmina virgem, ele cortava a pele da morta, o sangue escorria numa cena hedionda. O suor pingava de sua testa, mesclando-se no vermelho vivo. Ele tinha pressa, precisava arrancar aquela marca maldita do corpo da jovem, era imprescindível submergir o pedaço de pele em sangue oferecido de bom grado, só assim conseguiria anular os efeitos devastadores de tal criatura.
Meu coração estava acelerado, não haveria como explicar o que se passava naquele recinto. Ouvi a voz do padre dizer que havia conseguido, entretanto, um grito agudo acompanhou a afirmação. Deixei a porta e corri de encontro a ele. A pele marcada pela tatuagem estava, naquele momento, grudada em seu rosto. Ele se debatia no chão, tentando arrancar aquilo que lhe atacava com tamanha sofreguidão. A ave negra tomava toda a extensão do seu rosto, levando-me ao desespero. Tomei a faca caída e inseri a ponta da lâmina entre a tatuagem e a pele do padre, fazendo força para arrancar o vestígio do demônio.
Os dentes serrilhados do metal feriam o rosto do meu amigo, mas eu não poderia recuar. Imprimi toda a força do meu corpo para arrancar o mal. Quando a tatuagem cedeu, fui jogado para trás. O rosto do padre estava desfigurado, os ossos estavam à mostra, o horror tomou conta da minha visão.
Com muito custo, ele conseguiu proferir algumas palavras antes de abandonar de uma vez por todas a vida: “Eu vi...eu vi...são...são...dois...”
Então percebi, tarde demais, a presença às minhas costas. Era o irmão gêmeo da menina morta, com as mãos lavadas em sangue roubado, um sorriso bestial no rosto e uma tatuagem negra no peito.
Ele caminhou suavemente ao meu lado, recolheu do chão o pedaço de pele e recolocou a tatuagem no corpo da irmã. Um profundo pesar tomou conta da minha alma. A última coisa de que me lembro foi de ter visto a jovem se levantar do mármore, e de perceber, inerte, os demônios gêmeos caminhando em minha direção. Depois disso, só a escuridão.