Malaquias (17)
Quando se deixava o viaduto para trás, e para cima, das costas, a sensação opressiva que os corredores labirínticos das artérias da Cidade Baixa transmitiam a quem por eles circulava tornava-se ainda mais intensa, brutal, e Malaquias, que já vira de tudo, algumas coisas mais horrendas às duas e três vezes de cada vez, lembrar a cena na casa dos cunhados, os intestinos e os ossos da bacia, sentia-se enjoado, e não, não era do almoço ajantarado que comera, agoniado mesmo, com as vistas monocromáticas dos prédios que recurvavam a imundície degradada das suas fachadas para que as janelas pudessem olhar melhor quem lá vinha, tirar as medidas a Malaquias, medidas grandes, que a humildade de tamanho do Fiat Uno não servia de equívoco, milhares de olhos prometiam molho ao visitante, carne fresca para o mal que vivia naquele buraco feito no mundo e onde, diziam os folhetos turísticos, pouco ou nada, mais para o nada do que para o pouco, acontecia, com Malaquias a ponderar as vantagens da vomição, a sobrepô-las às dimensões interiores do automóvel e à multa que teria de pagar à empresa de aluguer se o devolvesse com os estofos vomitados, isso se o devolvesse, se as pessoas mal apessoadas pelas quais passava na rua não fizessem o que os seus esgares prometiam, que era deitar a mão ao carro assim que Malaquias virasse as costas, canibalizar-lhe as peças, levar-lhe o leitor de cd’s genérico, sonegar-lhe as jantes, roer-lhe os pneus até ficarem carecas, e depois logo se via se a antena de rádio serviria para alguma coisa sob aquele tampão de nuvens que obrigavam a tecnologia moderna de comunicação a recuar até ao Século XIII, Malaquias deixara de ter rede no seu telemóvel quando a descida do viaduto se tornou mais abrupta, e agora, sem rede, dava caça ao seu arqui-inimigo do peito, o Palhaço.
Às janelas por que passava assomavam rostos disformes e todos pareciam ter a cara pintada, Malaquias já estava a ver coisas, a ver coisas e a querer poder vomitar por causa daquele cheiro, aquele cheiro, Virgem Santíssima, Pai Nosso que estais aí para cima no Céu mas que não Te posso ver daqui de onde me encontro devido à capela de nuvens negras que me eriçam os pêlos das costas das mãos e dos dedos sempre que olho para elas, Malaquias já falava sozinho, já via a sua falecida sentada a seu lado no Fiat Uno, como se isso fosse possível, havia lá espaço para uma coisa dessas, ela no vestido com a que tinham enterrado, a perguntar-lhe se estava bem, se ele se sentia bem, se estava certo do que estava a fazer, se isto, se aquilo, ainda se aqueloutro era coisa que se fizesse e Malaquias, o Alucinado, dizia que sim a quase tudo, que não a uma ou outra pergunta, lembrava-se que tinha a pistola debaixo do braço, parecida com a Mula, mas menos comprida, menos impressionante de calibre, boa à mesma, contudo, para tratar da saúde, punha o cano da pistola na boca premia o gatilho e logo sentia as melhoras, a falecida sempre a intrigar e ele sempre a responder, uma conversa que se perdeu pelas ruas da Cidade Baixa, quase sempre nestes termos:
“Amor…”
“Sim, amor?”
“Que estás a fazer, amor?”
“O que tem de ser feito, amor.”
“Desde quando gostas de crianças, amor?”
“Não é questão de gostar delas, amor.”
“Porque quando eu quis ser mãe, amor, tu yadda yadda yadda yadda as queixas do costume, yadda yadda, não era a altura para se ter aquela conversa, yadda yadda yadda monólogo da vagina.”
“Estou a conduzir, amor…”
“Yadda yadda yadda conversa mesmo típica de gaja, yadda yadda morri sem parir e a culpa foi tua, yadda yadda yadda agora dás a volta ao mundo para salvar um miúdo de quem nem sequer gostas, yadda yadda yadda, amor.”
A falecida tinha razão, admitia Malaquias, mas era tão tarde para tanta coisa que ele nem se deu ao trabalho de o dizer em voz alta, assim frustrando os intentos do fantasma que abriu a porta e saiu do carro com este ainda em andamento, e se pôs a caminhar sem rumo definido pela calçada cariada da Cidade Baixa, apenas mais uma alma a penar por aquelas bandas, Malaquias estava a conduzir e tinha um trabalho a fazer, uma missão a cumprir, não podia agora procurar por um lugar onde estacionar e ir atrás da mulher, uma coisa de cada vez, primeiro o Palhaço, depois a mulher, falecida, memória de dias melhores que aquela e sítios melhores que aquele, que aquele tornara numa mera figura espectral de estilo enviesado, uma distracção, e Malaquias não podia deixar-se distrair, havia uma criança em risco, que o Palhaço se calhar já guarnecia com espargos frescos e courgete salteados no wok, ou que, se calhar, petiscara no caminho de volta, não que fosse de abrir o apetite, mas os apetites do Palhaço eram reconhecidamente diferentes dos da maioria das pessoas, ia-se a ver o sobrinho de Malaquias já ia a meio caminho do intestino grosso do assassino, por onde outras criancinhas haviam passado antes, e por onde, se dependesse de Malaquias, o Grande, mais nenhuma seria espremida.
O GPS do carro alugado tinha entregue a alma ao criador quando Malaquias digitara o seu destino, a Cidade Baixa não vinha nas orientações pré-gravadas que a voz da senhora bem educada debitaria no caso de se querer ir para outro lado qualquer, qualquer um servia, menos aquele, que nem os satélites conseguiam fotografar, obrigado por coisa nenhuma, tecnologia do Século XXI, Malaquias não teria outra opção que não a de se guiar a olho, de se deixar levar pelo seu sentido de orientação, pelo seu bom-senso, o que não estava a ser fácil pois o sentido de orientação enfiara a cabeça na areia e dera lugar ao tal vómito seco e irresistível e o bom-senso, se Malaquias quisesse ser sincero, agora que a falecida já ali não estava, podia ser, nunca fora dele o ponto mais forte nem se equipara para dar o seu contributo na resolução da tarefa em mãos, as ruas eram todas iguais, feias, porcas, esgotos a céu aberto, que era uma forma de dizer, irónica, sem dúvida, num lugar onde o céu permanecia fechado, como que para obras, como que para um balanço que nunca mais acabava, as ruas eram umas atrás das outras e todas iguais, perdendo-se nos caminhos escuros como se perdera Malaquias, o Grande.